Há alguém, em sã consciência, que realmente acredita que dinheiro público deve ser usado para pagar por um tipo de psicoterapia que, além de não contar com nenhuma base científica, tem, entre seus princípios, a ideia de que toda família deve seguir uma hierarquia patriarcal rígida; que o papel ideal da mulher é servir e obedecer ao marido em tudo; e que casos de incesto muitas vezes acontecem porque a mulher, sentindo-se culpada por não servir ao marido bem o bastante, acaba, inconscientemente, “oferecendo-lhe” a filha?
Deve haver. Porque essa terapia, chamada Constelação Familiar, é bancada, no Brasil, pelo SUS, como parte do Programa Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). Defensores do PNPIC batem repetidamente na tecla de que as modalidades oferecidas ali são “milenares” e refletem séculos de sabedoria popular acumulada.
Mas isso é pura fanfic: como já apontamos em textos anteriores (por exemplo, este e este), boa parte das ditas PICs abraçadas no Brasil tem inventor conhecido (não raro, com ficha policial, como no caso da quiropraxia e da naturopatia) e são criações historicamente recentes – dos séculos 18 e 19 – ou recentíssimas, do finado século 20.
No caso específico da Constelação Familiar, seu criador, o alemão Anton Suitbert “Bert” Hellinger, caminhava sobre a terra até pouco tempo atrás – morreu em setembro último, aos 95 anos. Começou a atuar como psicoterapeuta nos anos 70, após deixar a batina (era padre católico, jesuíta). O livro fundamental de sua doutrina, “A Simetria Oculta do Amor”, é da década de 90. Sua invenção é o oposto exato de um “saber popular”, sem dono, livre e desimpedido, que (ainda de acordo com a fanfic das PICs) não pode ser patenteado para gerar lucro e, por isso, é atacado pelo capitalismo cruel.
Na contramão disso tudo, o site oficial de Hellinger é povoado por sinais de marca registrada. Assim: Constelação Familiar Hellinger®, Sciencia Hellinger®. Ali também é possível encontrar propagandas de algo chamado Cosmic Power®, que parece ser mais uma tentativa genérica de usar o jargão da física quântica para vender o “poder” do pensamento positivo.
A pseudociência
As sessões clássicas de Constelação Familiar são coletivas. Há um cliente, ou paciente; um “constelador”; e os demais participantes, chamados “representantes”, assumem o papel de parentes, vivos ou mortos, desse cliente. Falando assim parece apenas uma espécie de psicodrama, ou um teatro de improviso que permite ao paciente “botar os bichos para fora” e dizer umas verdades ao “pai” chato ou ao “tio” bolsomínion, mas não é assim que funciona.
Segundo Hellinger, as pessoas que representam os parentes do paciente passam a ter pensamentos, sentimentos e sensações físicas (incluindo sintomas de saúde) muito próximos aos dos originais, mesmo sem nunca tê-los visto: o suposto fenômeno já foi comparado à possessão espiritual ou reencarnação.
Em “A Simetria Oculta do Amor”, lemos que Bert Hellinger “recusa-se a especular sobre a causa” do efeito, mas em publicações mais recentes, e na internet, invocam-se “campos quânticos de informação” e até mesmo o “campo morfogenético” postulado pelo parapsicólogo britânico Rupert Sheldrake.
A probabilidade de campos assim existirem, no entanto, é comparável à de haver unicórnios na Lua (quem quiser mais detalhes sobre o porquê disso, pode encontrar informações extras aqui, aqui, e aqui). Toda a ideia de que pensamentos e emoções “vibram” no espaço, em algum tipo de éter ou campo eletromagnético, e podem ser sintonizados como canais de TV, é pseudocientífica em si; incluir as "vibrações" dos mortos no cardápio já avança no campo da religião.
Hellinger e seus discípulos são pródigos em relatos de situações em que o jogo de representação parece gerar identificações entre representante e representado de alto grau de precisão e imensa intensidade emocional. Por mais que esses eventos sejam impressionantes – e certamente são, o que os torna, também, perigosos em termos de saúde mental – não é necessário apelar para nenhum efeito paranormal para explica-los.
Existe a expectativa prévia dos participantes, a carga emocional inerente ao processo, as pistas e as informações não-verbais (postura, gestual, olhar), transmitidas pela forma como o cliente lida com os representantes, a intenção coletiva de colaborar. Há muito de teatro de improviso envolvido, ainda que os “atores” não percebam, no caso, que estão encenando uma ficção, seguindo deixas uns dos outros.
E há também as armadilhas da memória. A memória humana não é um DVD que registra tudo e pode ser assistido de novo a qualquer momento. Cada vez que nos lembramos de algo, o cérebro reconstrói toda a situação, e nessas reconstruções, muitas vezes, lacunas são preenchidas com dedução, imaginação e fragmentos de memórias diversas, semelhantes, sem que percebamos.
Essa função “autopreencher” da memória faz com que as lembranças que temos de interações com figuras como médiuns, cartomantes, astrólogos etc contenham muito mais informação relevante e precisa do que realmente foi apresentado pelo profissional.
Há experimentos em que sessões com um “vidente” foram gravadas e a gravação, depois, confrontada com as memórias do cliente a respeito do que foi dito na consulta. Em geral, o que é realmente dito, e consta no conteúdo gravado, é muito mais vago e impreciso do que aquilo que o cliente se lembra de ter ouvido. O livro “The Full Facts of Cold Reading”, do mágico britânico Ian Rowland, traz alguns exemplos.
Processos semelhantes atuam também na Constelação familiar.
Lugar de mulher é...
Mas, afinal, qual o efeito terapêutico esperado? O site oficial de Hellinger explica: “Para cada pessoa só existe um lugar certo na família. Uma vez que você tenha tomado este lugar, surge uma nova perspectiva que te torna capaz de agir”. Então, para superar seus problemas, o paciente deve reconhecer e aceitar seu “devido lugar”.
E que “devido lugar” é esse? Hellinger pode ter deixado o clero católico, mas sua visão de família nunca deixou de ser igual à dos mais reacionários entre os católicos conservadores: uma estrutura altamente hierarquizada, com o pai, havendo condições ideais, no papel de monarca absoluto.
“O amor é geralmente bem servido quando uma mulher segue o marido na língua, na família e na cultura, e quando concorda que os filhos devem segui-lo também”, diz ele em “A Simetria Oculta do Amor”. “Isso parece bom e natural para a mulher”. Mais adiante: “As famílias com que temos trabalhado funcionam melhor quando a mulher cuida da responsabilidade primária do bem-estar interno da família, e o homem é responsável pela segurança da família no mundo, e ela segue sua liderança”.
O pai da doutrina fala muito em “parceria entre iguais” numa relação, mas uma leitura atenta mostra que sua ideia de igualdade é melhor definida como a de “iguais em papéis separados”, ou “iguais, mas cada um no seu lugar”.
Há uma concepção quase medieval de privilégios e prerrogativas que cabem a cada parte. Violações dessas prerrogativas podem levar ao crime: “Numa forma comum, o incesto é uma tentativa de compensar um desequilíbrio no dar e receber dentro da família – geralmente, mas nem sempre, entre os pais”, diz o criador da doutrina. “Quando este é o caso, o perpetrador teve algo negado; por exemplo, o que essa pessoa faz pela família não recebe o reconhecimento devido”.
Hellinger reconhece que o predomínio do homem nem sempre é possível, que há situações em que se faz necessário que a mulher assuma a liderança, mas para ele essas são situações instáveis e perigosas. “Então a mulher não deve seguir o marido, mas precisa aceitar que as crianças o sigam, enquanto ele as conduz à maior segurança da esfera de influência da família dele”, sentencia. Situações em que não só a mulher, mas também a família da mulher, precisa assumir um papel de liderança requerem “cuidado extra”.
O fundamento da família, diz ele, é “a atração sexual entre homem e mulher”. Hellinger acredita, ainda, que o sentimento de culpa em relação aos filhos que um cônjuge pode sentir ao desejar separar-se é bom para a família; e que a homossexualidade pode surgir quando uma criança é pressionada a assumir o lugar de “uma pessoa do sexo oposto no sistema” familiar.
Efeitos
Essa visão da centralidade do poder patriarcal e do sexo heterossexual leva a outros postulados chocantes, como o do incesto, apresentado no início deste texto (segundo Hellinger, o modelo que vê o incesto como um crime cometido contra a criança geralmente “não ajuda em nada”), e a ideia de que qualquer relação sexual, mesmo estupro, deixa laços emocionais indissolúveis entre os envolvidos: todo ato sexual cria amarras afetivas que são independentes de qualquer amor que um dos envolvidos sinta (ou não) pelo outro.
No livro “Acknowledging What Is: Conversations with Bert Hellinger”, o pai da Constelação Familiar afirma que vítimas de abuso sexual infantil que se tornam prostitutas fazem isso por amor inconsciente ao abusador – para carregar a culpa dele.
Essas não são “meras” opiniões: são visões paradigmáticas que orientam ações terapêuticas. O paciente ouve que deve encontrar seu lugar adequado no sistema familiar, e esse lugar é definido por uma hierarquia rígida e sexista. Vítimas de abuso sexual ou violência doméstica devem “reconhecer” o laço de amor que as une ao abusador, bem como assumir uma parcela da culpa.
Os efeitos disso na cabeça de pessoas que já estão, de algum modo, confusas ou precisando de ajuda – afinal, foram procurar a terapia – pode, para usar um eufemismo, não ser dos melhores.
A Constelação Familiar passou a fazer parte do PNPIC em março do ano passado; o Ministério da Saúde divulgou a notícia com indisfarçado orgulho. Grupos que defendem as PICs, achando – ou fingindo achar – que não defendem nada menos inocente do que chá de boldo e rodas de costura para idosos, não levantaram objeção. A Fiocruz até fez um par de vídeos promocionais a respeito (este e este), vídeos que curiosamente omitem o papel autocrático do macho na “ordem do amor” propagada pela doutrina.
Já há casos de ações judiciais em que a Constelação Familiar foi usada na conciliação entre as partes, principalmente em Varas de Família. Dado o caráter machista e hierárquico da doutrina, não é difícil imaginar para que lado essas "conciliações" pendem.
É o seu dinheiro trabalhando.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência