A enorme influência cultural dos Estados Unidos sobre o restante do planeta permitiu que tivéssemos acesso ao rock’n’roll, ao jazz e ao cinema de Walt Disney, Steven Spielberg e Orson Welles, mas não sem efeitos colaterais graves. Aparentemente, não existe uma só ideia ruim gestada ao norte do Rio Grande que não encontre seguidores por aqui.
Imagino que cada leitor será capaz de citar alguns exemplos favoritos, mas para efeitos deste artigo, tenho um específico em mente: quiropraxia, uma técnica de manipulação da espinha vertebral e do pescoço que, muitas vezes, força essas estruturas além de seu limite natural de flexibilidade, podendo causar dores, ou mesmo lesões graves. A evidência científica acumulada sugere fortemente que a modalidade, além de perigosa, é inútil para qualquer tipo de problema de saúde.
Alguns quiropatas mais circunspectos anunciam a técnica apenas como forma de alívio de tensões musculares e de certos tipos de dor nas costas, mas nos EUA já houve quem a promovesse, até, como cura para diabetes. Há profissionais que oferecem tratamento quiroprático para cólicas de bebê. O fundador da prática acreditava que 95% das doenças poderiam ser curadas por ela.
Ao contrário do mito propalado pelos defensores das práticas ditas “integrativas e complementares”, a maioria delas não tem milhares de anos, nem é fruto de sabedoria popular acumulada ao longo de gerações. Na verdade, é bem recente, tem data e local de nascimento conhecidos e a única “sabedoria” por trás delas é um palpite, que um dia ocorreu a alguém vaidoso demais para reconhecer uma má ideia quando ela brota da própria cabeça.
A quiropraxia não é exceção. Foi inventada por um carismático canadense – radicado no estado americano de Iowa – no fim do século 19. Em 1895, Daniel David (D.D.) Palmer, que até então praticava uma modalidade de charlatanismo médico popular na época, a “cura magnética”, disse ter curado a surdez de um paciente dando-lhe um tranco na espinha vertebral. O mesmo processo teria, depois, curado um paciente cardíaco. Palmer também contava a história de que a técnica lhe havia sido revelada pelo espírito de um médico morto.
A tese de Palmer era de que a saúde humana depende do fluxo livre de uma tal de “inteligência inata”, e que “subluxações” na coluna vertebral impedem esse fluxo.
“Subluxação” é um termo médico com significado preciso – o deslocamento parcial de uma junta –, mas em quiropraxia quer dizer alguma outra coisa: um “dano” na junta que pode não ter nenhuma manifestação física, para além da impressão pessoal do quiropata. Um guia da Organização Mundial da Saúde diz que a subluxação, no sentido quiroprático, é “essencialmente uma entidade funcional”.
Como acontece com boa parte das ideias malucas que prosperam nos Estados Unidos, a quiropraxia logo virou, ao mesmo tempo, uma religião e um negócio. Palmer foi processado por charlatanismo, passou algum tempo preso em 1906, e chegou a se comparar a Maomé e Jesus. Seu filho, B.J. Palmer, enriqueceu vendendo cursos e também uma bugiganga elétrica, chamada neurocalômetro, para “detectar subluxações” (na verdade, o aparelho era um tipo de termômetro). Ele também dava palestras no rádio.
Com o passar do tempo, a prática tornou-se bastante popular na América do Norte e na Inglaterra, preservando sempre essa aura mezzo-religiosa, mezzo-business. Em 1963, a Associação Médica dos Estados Unidos criou um Comitê de Charlatanismo com o objetivo expresso de combater a quiropraxia. O caso foi parar na Justiça, que decidiu que os médicos estavam praticando concorrência desleal. (Não é piada).
De lá para cá, a quiropraxia viveu uma divisão em duas correntes: os mixers, que aceitam alguns fatos da ciência moderna – mas que, dependendo do profissional, agregam ainda outras crendices pseudocientíficas como naturopatia, acupuntura, homeopatia, etc, ao “mix” – e os straights, que seguem os ensinamentos de Palmer à risca e ainda subscrevem à crença de “uma só causa, uma só cura” para todas as doenças. No caso, subluxações como causa e manipulação espinhal como cura.
Parte dos mixers, principalmente no Canadá, tem tentado se aproximar da ciência, oferecendo apenas manipulações para problemas osteomusculares. Mas, nos países onda a prática é popular, também é comum encontrar quiropatas na linha de frente de movimentos perigosos para a saúde pública, como a rejeição a vacinas. D.D. Palmer era, pessoalmente, um crítico feroz da ideia de vacinação.
No mundo de língua inglesa, a quiropraxia acabou, por uma série de vicissitudes históricas, incorporada à cultura e dando origem a uma série de categorias profissionais, com conexões políticas e interesses econômicos estabelecidos, o que torna o enfrentamento social dessa prática pseudocientífica bem mais complexo.
No Brasil, o governo federal, em sua infinita sabedoria, decidiu importar um problema que não tínhamos e integrar a quiropraxia ao SUS, o que aconteceu em 2017. A prática veio somar-se outros cavalos de Tróia abraçados pelo sistema público de saúde, como homeopatia, antroposofia e naturopatia, que também têm cultura e história de aversão a vacinas.
À legitimação pelo SUS segue-se a aceitação burocrática por entidades que deveriam ter um controle técnico-científico melhor sobre o que fazem, nem se fosse para preservar a própria reputação: no início do mês, o Instituto de Psiquiatria da USP estava oferecendo sessões de quiropraxia como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência