Darwin vs. Godzilla

Apocalipse Now
20 jan 2024
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brontossauro em filme de 1925

 

Assistir à série “Monarch: Legado de Monstros” e, em seguida, a “Godzilla: King of Monsters” deixa bem claro que Godzilla e seus amigos (Mothra, Ebirah, Rodan, Gidorah...) não são exatamente criaturas de ficção científica – em que se espera que os elementos fantásticos emerjam a partir da extrapolação de realidades científicas –, mas estão muito mais próximos do reino da fantasia, gênero que é o herdeiro mais direto da mitologia e dos contos de fadas.

Essa conversa toda pode soar como mero pedantismo (que importa a taxonomia da história, desde que ela seja boa?), e em geral, quando o assunto é ficção, tendo a sair correndo cada vez que alguém ameaça levar esquemas de caixinha taxonômica muito a sério, mas a atual onda de filmes e seriados de monstros – se você ainda não foi ver “Godzilla Minus One” no cinema, não sabe o que está perdendo – chama a atenção por mostrar com grande clareza que hoje, fora dos contextos explicitamente religiosos, o mito mais eficaz é o que mimetiza a linguagem da ciência.

Monstros gigantes e super-heróis são os mitos originais dos últimos 100 anos, e desde a explosão do planeta Krypton em 1938 – antes, até: desde que um brontossauro destruiu partes de Londres no filme “O Mundo Perdido”, de 1925 – que cada uma desses mitos vem numa embalagem “científica”.

(Imagens do filme ilustram este artigo.)

O brontossauro à solta em Londres, aliás, prefigura quase tudo que veríamos depois com Godzilla: as pessoas correndo em pânico pelas ruas; buscando refúgio em estações de metrô; o monstro derrubando prédios e pontes. Até a mãe com criança de colo que cai na rua e escapa por pouco de ser pisoteada pela criatura está lá. E se Godzilla é um mito sobre a natureza perturbada pela tecnologia – armas nucleares, no caso – “Mundo Perdido” é um mito sobre a natureza perturbada pelo colonialismo (o brontossauro chegou a Londres depois de ser capturado na Amazônia).

 

Ecologia

Uma mitologia que imita a linguagem da ciência para contar histórias sobre seres vivos extraordinários vai acabar, em algum momento, tendo de encarar a questão da evolução, mais ou menos como uma mitologia que se apropria da linguagem da ciência para contar histórias sobre impérios galácticos vai acabar, em algum momento, tendo de encarar a questão do limite da velocidade da luz no vácuo.

Fantasias espaciais têm um amplo cardápio de opções mais ou menos canônicas para lidar com as complicações descobertas por Albert Einstein – de “portais estelares” a “saltos no hiperespaço” –, mas as fantasias biológicas, infelizmente, ainda não acharam um jeito elegante de contornar os problemas que uma atenção adequada ao trabalho de Charles Darwin deveria levar a seus enredos. Já comentei um pouco a respeito disso em um artigo anterior sobre Jornada nas Estrelas, mas é claro que, no caso do universo dos monstros, os problemas são ainda maiores.

Uma galáxia toda habitada por alienígenas com cara de atores humanos usando próteses faciais ainda pode ser “explicada”, com uma boa dose de boa vontade, como palco de evolução convergente – a seleção natural encontrando soluções parecidas para problemas parecidos, ainda que em mundos diferentes –, mas monstros do tamanho de arranha-céus, cuja única pegada ecológica é a destruição de uma cidade ou outra, de vez em quando, são muito mais difíceis de encaixar.

Afinal, um animal que esteja vivo hoje deve ter tido pais, avós, toda uma linhagem. Provavelmente também terá irmãos, primos, um(a) parceiro(a) de acasalamento, filhotes. Há outros animais (ou plantas) que ele e seus companheiros de espécie consomem como alimento, deixando sementes, cascas, ossos para trás. E a digestão de todo esse alimento, por toda essa população, também há de deixar vestígios. No caso de seres como Godzilla e King Kong, vestígios consideráveis.

Quando o assunto é um lagarto gigante que cospe fogo radioativo, seria de se esperar uma pegada ecológica um pouquinho maior do que um rastro de destruição pelo centro de Tóquio (ou de San Francisco, no “Godzilla” de 2014). Mesmo que o animal seja o último da espécie, onde estão os ossos de seus ancestrais? Os restos de seu alimento? Suas fezes?

O problema ganha dimensões ainda maiores quando vemos um cenário como “Monsterverse” da série “Monarch” e dos filmes americanos recentes envolvendo Godzilla, os demais monstros clássicos do cinema japonês e King Kong: quantas espécies titânicas formadas por um único indivíduo podem, com alguma razoabilidade, existir ao mesmo tempo?

 

Caçadores de monstros

Esse fato – não existe animal isolado, sem impacto ecológico – é, aliás, um dos principais desafios enfrentados por “caçadores de monstros” do mundo real, que insistem em buscar o Pé-Grande ou o Monstro do Lago Ness. Há um artigo muito interessante de 2008 que trata exatamente da diferença de entendimento do processo científico entre pesquisadores profissionais e hobbistas caçadores de Pé-Grande. Diz um trecho:

“Os cientistas profissionais que fazem pouco caso do Pé-Grande argumentaram que os amadores não têm ideia do que estão fazendo. Não têm a metodologias e os modelos teóricos necessários para entender por que a criatura não faz sentido do ponto de vista biológico, comportamental e ponto de vista evolutivo. Os amadores que acreditam que a criatura é real não estariam se baseando em evidência, mas em crença cega e pensamento mágico. Alguns cientistas acham que é indigno levar a sério as divagações de caipiras malucos ou de fanáticos que, erroneamente, confundem criaturas normais com monstros.

“Ironicamente, há um elemento de ressentimento contra os profissionais nas fileiras dos amadores, e por algumas das mesmas razões. Os amadores acusaram os profissionais de serem espertalhões isolados em seus laboratórios e bibliotecas, sem ideia da realidade ‘lá fora’. A formação acadêmica cegou-os. Seus diplomas e títulos sofisticados deixaram-nos inteligentes demais para seu próprio bem. Seus modelos teóricos não permitem que levem a ‘evidência’ em consideração”.

 

 

O poder do mito

Essa retórica da tensão entre os estereótipos do “caipira maluco” e do “espertalhão acadêmico”, entre “mundo real” e “laboratório”, repete-se em inúmeras outras áreas, como ufologia, medicina alternativa e – talvez o mais nevrálgico hoje em dia – vacinação.

Ela também é muito bem capturada na ficção: “Monarch”, o seriado, gira todo em torno de cientistas rebeldes que se unem a um “caipira” que conhece bem o “mundo real” e desafiam o consenso dos especialistas. Com algumas poucas adaptações, nesse mesmo esquema narrativo Godzilla poderia ser sobre um cara que tomou vacina para COVID-19, virou um jacaré radioativo gigante e teve sua existência abafada pela farmacêutica capitalista marxista Monarch – até que ficou tarde demais.

brontossauro em 1925

 

Na cultura contemporânea, mitos têm mais impacto quando vêm embalados numa linguagem que imita a da ciência, ou pelo menos aquilo que soa como “ciência” ao senso comum. Contadores de histórias estão sintonizados nisso, o que é perfeitamente razoável e compreensível.

Mas problemas graves podem surgir quando o que deveria ser apenas um esquema narrativo vira modelo de realidade na cabeça das pessoas, e quando o simulacro é confundido com discurso científico legítimo. Interesses venais exploram essa confusão, prometendo resultados míticos (juventude eterna, curas instantâneas, riqueza sem esforço) com suposta “autoridade científica”.

Spoiler: no final da primeira temporada da série “Monarch”, há uma tentativa de tratar da ecologia dos monstros, postulando que ela existe, mas em outra dimensão – os titãs que aparecem na superfície terrestre chegam aqui por meio de portais (essa solução não é original: a DC Comics usou-a para resolver seu problema particular de Terra Oca na série de quadrinhos “Warlord”, “O Guerreiro” no Brasil). É uma solução que, a rigor, não soluciona, apenas chuta a bola no mato. Mas, e daí? Em se tratando de ficção, vale tudo – desde que funcione como narrativa. É a realidade que é mais exigente.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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