Fake news do século passado: o Monstro de Loch Ness

Apocalipse Now
28 nov 2020
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Nessie

 

Políticos sempre lançaram mão da mentira. Assassinatos de reputação acontecem, pelo menos, desde que o caso contra o filósofo ateniense Sócrates foi a julgamento, em 399 AEC. Órgãos de imprensa, mesmo os mais sérios, volta e meia cedem à tentação de publicar histórias duvidosas sob o pretexto de que “ninguém provou que não é verdade”.

Fatos assim costumam ser elencados como argumento por quem defende a ideia de que a preocupação atual com “fake news” (definidas como material inverídico deliberadamente “embalado” como notícia) e desinformação é exagerada – de que o problema sempre existiu, e é claro que precisa ser combatido, mas não é mais preocupante hoje do que era ontem e, ora bolas, não vamos exagerar.

Não exagerar é um daqueles imperativos a que ninguém se opõe, já que “exagerado” é, por definição, algo que passou da medida, criando, na melhor das hipóteses, um desperdício de recursos e, na pior, uma histeria coletiva – uma catástrofe. A questão crucial é definir o que se entende por exagero. Encontrar a medida certa, entre os extremos do pânico moral e da mera negligência.

Para nos ajudar a pensar nisso, vamos dar uma olhada no impacto secular de uma peça de “fake news” – relativamente inócua – da época do papel e tinta.

 

O monstro

Em 1983, o livro “The Loch Ness Mystery Solved,” de Ronald Binns, obteve aquele feito raro no mundo da literatura sobre mistérios do mundo real: apresentou, de fato, a solução do problema. Em pouco mais de 200 páginas, Binns destrincha cuidadosamente o caso do lago escocês, mostrando como uma série de testemunhos vagos, notícias sensacionalistas, fraudes e brincadeiras (porque, claro, o ser humano é um animal intratável) acabou moldando a narrativa de uma criatura pré-histórica vivendo em Loch Ness.

Em 2017, Binns publicou um novo volume, “The Loch Ness Mystery Reloaded”, em que revisita a evidência coligida para o livro de 1983, atualiza alguns pontos – por exemplo, incluindo a confissão do criador do dinossauro de brinquedo que gerou a famosa foto do monstro de 1934 (a "Fotografia do Cirurgião", que todo mundo já viu um dia, impressa em jornal ou na TV, e que abre este artigo) e reinterpreta a gênese do mito sob o enfoque atual das "fake news".

O momento zero da lenda do Monstro de Loch Ness pode ser rastreado a duas notas publicadas, em maio de 1933, na imprensa escocesa – mais precisamente, nos jornais Inverness Courier e Northern Chronicle – afirmando que um casal havia avistado uma criatura, "seu corpo semelhante ao de uma baleia", no lago. As notas não traziam nome do jornalista responsável, mas Binns aponta que ambas tiveram o mesmo autor: Alex Campbell, um guarda-pesca do lago e correspondente jornalístico nas horas vagas. Nas décadas seguintes, Campbell viria a se tornar uma espécie de astro no mundo dos caçadores de monstros, alegando ter visto a criatura de Loch Ness nada menos do que dezoito vezes (sem jamais ter uma máquina fotográfica à mão).

"A lendária notícia de 2 de maio de 1933 começa com a falsa alegação de que 'há gerações' o Lago Ness era conhecido como o lar de 'um monstro assustador'", escreve Binns no livro de 2017, comentando, um pouco adiante, que o texto se inscreve muito bem na categoria definida pelo jornalista britânico Nick Davies como "notícias da Terra Plana". Citando Davies, Binn aponta três características das "Notícias da Terra Plana": uma afirmação duvidosa apresentada sem análise crítica; a figura responsável pela história (e os interesses por trás dela) permanece oculta; e a história é "inserida nas artérias da mídia", circulando pelo mundo sem ser checada.

 

A evidência

A sensação criada pela publicação original parece ter surpreendido Campbell. "Tendo inventado o Monstro de Loch Ness, ele ficou espantado com a crescente massa de evidência a favor de sua fantasia pessoal", escreve Binns. "Ele passou a acreditar na própria ficção". Essa "crescente massa de evidência" incluía desde depoimentos de pessoas que, influenciadas pela mídia, interpretavam qualquer anomalia na superfície do lago como sinal do "monstro" até fraudes – como a "Foto do Cirurgião".

A origem da imagem foi revelada em 1994, numa reportagem investigativa publicada no jornal The Sunday Telegraph, marcando dos 60 anos da divulgação original. O cirurgião que supostamente fez o clique, Robert Wilson, na verdade apenas emprestou o nome para os verdadeiros autores da brincadeira, que precisavam que uma figura respeitável assumisse a autoria do feito.

O que a imagem mostra, diz a reportagem do Telegraph, é um submarino de brinquedo com uma "cabeça" de plástico. Binns se diverte apontando os diversos especialistas – incluindo fotógrafos e cientistas – que, ao longo das décadas, afirmaram que a foto era verdadeira, por conta deste ou daquele detalhe.

Ele cita, por exemplo, dois oceanógrafos canadenses que chegaram a apresentar um paper numa conferência, em 1987, afirmando que a foto não só era verdadeira como também usando dados de velocidade do vento e perturbação da água para calcular o tamanho da parte visível do monstro: 120 centímetros acima do nível da água. Na verdade, o modelo de brinquedo tinha 30 centímetros de altura.

O autor chama atenção para o modo como "uma brincadeira arbitrária criou uma bola de neve inesperada". "Os participantes da fraude esqueceram-se dela e tocaram suas vidas, sem perceber que a fotografia geraria décadas de comentários".

 

Fadas e tuítes

Esta história, assim como a das Fadas de Cottingley, outra brincadeira que escapou ao controle dos idealizadores (no caso, idealizadoras) e produziu consequências inesperadas por décadas, pode servir de alerta para os tempos atuais. Se um par de notas publicadas anonimamente na imprensa escocesa foi capaz de criar uma indústria como a do Monstro de Loch Ness, do que postagens "inocentes" nas redes socais são capazes?

A preocupação atual com “fake news” decorre, em grande parte, de desenvolvimentos tecnológicos recentes, como a ascensão das redes sociais, que possibilita a disseminação rápida de mensagens e reduz o tempo de reflexão, e o surgimento da figura do “influenciador”, que muitas vezes assume o papel de uma espécie de “pós-jornalista” ou “pós-especialista”.

Vale a pena relembrar os critérios de Nick Davies para classificar algo como uma “notícia da Terra Plana”: afirmação duvidosa, apresentada sem análise crítica; a figura responsável pela história (e os interesses por trás dela) permanece oculta; e a história é "inserida nas artérias da mídia", circulando pelo mundo sem ser checada.

“Jornalismo sem checagem”, escreveu ele no livro “Flat Earth News”, “é como um corpo humano sem sistema imune. Se o propósito fundamental do jornalismo é dizer a verdade, então decorre que a função fundamental dos jornalistas é checar e rejeitar qualquer coisa que seja falsa”.

Quando Davies cunhou a expressão “Notícia da Terra Plana”, ele estava preocupado com a busca frenética por audiência na mídia tradicional, o que em sua avaliação levava a padrões relaxados de qualidade e veracidade; e com o modo pelo qual falhas sistêmicas do jornalismo podem acabar refletidas em políticas públicas, já que a percepção de quais são os reais problemas de uma sociedade, ainda mais nas democracias liberais, acaba sendo moldada pela cobertura jornalística. Ou, nas palavras do próprio Davies:

“Uma notícia da Terra Plana pode acabar passando para lá e para cá entre o governo e a mídia, como uma bola de barro numa brincadeira infantil, até que, entre si, os envolvidos criam algo que encanta a imaginação mas que, na verdade, é só um monte de sujeira”.

Transplantando essas considerações – apresentadas em 2007, no contexto de um ecossistema de mídias corporativas que competiam apenas entre si – para o mundo atual, onde guerras de narrativa são travadas em plataformas em que a própria ideia de checagem profissional é novidade (e alvo de resistência), parece difícil ver como exagero as preocupações com “fake news”.

É claro que mesmo problemas reais podem receber soluções falsas, e a tentação de fazer bobagem, só para dar a impressão de que se está fazendo alguma coisa, deve ser resistida. Mas encontrar soluções certas passa por reconhecer a gravidade do problema.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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