A pseudociência de Star Trek

Resenha
26 dez 2022
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USS Enterprise

 

Os fãs da franquia “Star Trek” (que no meu tempo se chamava “Jornada nas Estrelas”) vivem uma Era de Ouro: séries antigas – incluindo a original, que começou tudo – estão disponíveis em streaming, e novos produtos – as séries derivadas “Discovery”, “Picard” e “Strange New Worlds” (“SNW”), as animações “Prodigy” e “Lower Decks” – surgem numa velocidade que é difícil de acompanhar.

De minha parte, sou um fã das antigas: ainda me lembro da decepção que era quando algum canal da TV aberta brasileira parava de passar a série, e aí era uma espera (às vezes, de anos) até algum outro resolver exibi-la. Morando no interior paulista, para mim foi uma angústia quando “Deep Space Nine” estreou numa estação cujo sinal era muito ruim em minha cidade.

Não me lembro de quando vi a série original pela primeira vez, mas me lembro de que, quando “Star Trek” fez a transição para o cinema em 1979, no filme de Robert Wise, os protagonistas James Kirk (William Shatner), Spock (Leonard Nimoy), Leonard McCoy (DeForest Kelley), Montgomery Scott (James Doohan) e a nave estelar Enterprise já eram velhos conhecidos. E eu só tinha oito anos. Hoje em dia, dada a escassez de tempo e de atenção que são as marcas do mundo contemporâneo, limito-me a acompanhar “Picard” e “SNW” e a rever os filmes feitos para cinema, de vez em quando.

Portanto, quando um cinema aqui perto de casa resolveu fazer uma exibição comemorativa dos 40 anos de “A Ira de Khan” (lançado originalmente em 1982), corri para garantir o ingresso. E lá no meio do filme tive uma pequena epifania: o Universo de Star Trek é pseudocientífico!

O que não representa necessariamente um problema (ao contrário do que muitos imaginam, ficção científica existe para fazer pensar e divertir, não para preparar para o ENEM), mas numa franquia que sempre fez bastante esforço para manter uma aura de bona fides científica (Isaac Asimov foi consultor no primeiro filme, e o livro “A Física de Star Trek” tem prefácio de Stephen Hawking!), a constatação foi meio chocante.

 

Gênesis

E o que me fez pular da cadeira? A descrição do Projeto Gênesis, o “mcguffin” (isto é, o “tesouro” ou “objeto de desejo”) em torno do qual giram os filmes “A Ira de Khan” e “À Procura de Spock”. Com certeza eu já tinha ouvido e lido a mesma descrição dezenas de vezes, assistindo ao filme ou nas adaptações do roteiro para literatura e quadrinhos, mas foi só agora, em 2022, que as implicações, digamos, clicaram. O projeto é definido, na tela do cinema, pela personagem Dra. Carol Markus (interpretada pela atriz Bibi Besch) como:

 

“Um processo pelo qual a estrutura molecular é reorganizada no nível subatômico, em matéria geradora de vida de igual massa”.

 

Essa fala implica algum tipo de distinção fundamental, em nível subatômico, entre matéria “comum” e matéria “geradora de vida”. Isso é vitalismo – a doutrina de que existe alguma diferença essencial entre uma molécula qualquer e uma molécula que faz parte do corpo de um ser vivo –, uma crença pseudocientífica.  

Para ser justo, tanto o roteiro original do filme quanto a novelização feita pela grande escritora de ficção científica Vonda McIntyre tentam, heroicamente, escapar dessa implicação. No roteiro (disponível online), lemos que Gênesis é: 

 

“Um processo pelo qual a estrutura molecular de qualquer tipo de matéria pode ser restruturada – transformada – em qualquer outra coisa de igual massa”.

 

Já o livro de McIntyre passa três páginas descrevendo o processo e evitando escrupulosamente sugerir qualquer tipo de diferença essencial entre matéria viva e inerte. No entanto, o cânone é definido pelo que aparece na tela. Portanto, estamos presos num Universo (ficcional) vitalista.

Este não é, claro, o único ponto em que a realidade de Star Trek diverge na nossa, incorporando, como fatos estabelecidos, conceitos que, no nosso Universo, são pseudocientíficos.

Depois de meu leve choque com “A Ira de Khan”, lembrei-me também de que a realidade de Star Trek é dualista – isto é, nela existe uma distinção fundamental entre corpo e mente; a personalidade não é um produto do cérebro, mas algo que pode existir fora dele: é assim que os vulcanos conseguem transferir e preservar seus “katras”, definidos, no filme “À Procura de Spock”, como “a verdadeira essência, tudo que não é do corpo”.

E, claro, a franquia sempre abraçou com gosto o tema dos deuses astronautas. Eles aparecem explicitamente no episódio da segunda temporada da série original “Who Mourns for Adonais?”, no episódio da série animada “How Sharper Than a Serpent's Tooth” e permeia todas as temporadas de todos os produtos da franquia, marcadas pela aparição recorrente de forças alienígenas onipotentes ou transcendentais que acabam sendo confundidas com (ou comparadas a) divindades.

Existe até uma frase meio maliciosa, atribuída ao escritor de ficção científica Harlan Ellison, de que o criador de Star Trek, Gene Roddenberry, na verdade “só teve uma ideia na vida”: “A Enterprise encontra Deus, e Deus está louco ou é uma criança”.

 

DNA de ET

Essa corrente temática em particular foi integrada de modo tão profundo ao cânone da série que acabou virando a explicação oficial de por que a maioria das espécies alienígenas inteligentes encontradas nas viagens da Enterprise se parecem com terráqueos usando maquiagem: DNA humanoide foi semeado pela galáxia bilhões de anos atrás, por uma espécie alienígena misteriosa.

Esse fato espantoso é apresentado num episódio da sexta temporada da série “A Nova Geração”, “The Chase”, e em termos científicos é uma das maiores tolices já vistas na série. Basicamente, pressupõe um tipo de essencialismo biológico vinculado à molécula de DNA e um tipo de evolução dirigida que tem mais em comum com o criacionismo bíblico do que com ciência e evolução.

Em geral, os roteiristas de Star Trek parecem ter se preocupado (pelo menos um pouco) em dar algum verniz de respeitabilidade científica ao uso ficcional que fazem da física (dobra espacial, buracos negros, wormholes, viagens no tempo etc.), mas deixaram a fantasia correr solta quando o assunto é biologia e evolução.

Mais uma vez, não há nada de essencialmente errado nisso: ficção científica não é divulgação científica. Mas conheço alguns biólogos evolutivos que ficaram frustrados – sentiram-se meio traídos – depois de assistir a “The Chase”.

Esse episódio em especial não se limita a brincar ou extrapolar em cima de conceitos científicos (no caso, evolução e herança genética), mas joga tudo pela janela e reforça conceitos errados muito presentes no senso comum, como o de que a vida inteligente é a “meta” da evolução.

 

Pseudociência e FC

Claro, nada disso é exclusividade de Star Trek. A relação entre ficção científica e pseudociências é antiga e complexa. Tão antiga e complexa, na verdade, que existe até um ótimo livro sobre o assunto, “Pseudoscience and Science Fiction”, de Andrew May, publicado pela editora acadêmica Springer.

A ficção científica tal como a conhecemos hoje, na literatura, quadrinhos e cinema, ainda bebe muito nas tradições e vocabulários estabelecidos em revistas publicadas na primeira metade do século passado nos Estados Unidos. Editores que ajudaram a moldar o gênero, como Ray Palmer (de “Amazing Stories”) e John W. Campbell (“Astounding Science Fiction”), também foram promotores entusiasmados de pseudociências (ufologia no caso de Palmer, dianética no de Campbell).

As duas formas dialogam com a percepção pública da ciência – aquilo que as pessoas não especialistas acham que a ciência é. A diferença é que a ficção científica se apresenta como ficção, enquanto a pseudociência é desonesta, uma impostora. Mas, nesse diálogo, acabam também conversando muito entre si e trocando temas e ideias. Muita pseudociência só parece convincente porque é feita de ingredientes que a ficção científica “normalizou” na consciência do público.

Nada disso, claro, reduz o charme da ficção (enquanto ficção) nem me faz gostar menos de Star Trek. Aliás, estou esperando uma noite livre para rever o quinto filme da série cinematográfica – aquele em que o capitão Kirk encontra Deus.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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