A natureza é de esquerda ou de direita?

Apocalipse Now
30 abr 2023
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Tucker Carlson

 

Quem se preocupa em acompanhar os desdobramentos que afetam o esquema perverso de mentira e desinformação organizado em torno da figura do ex-presidente americano Donald Trump (esquema em que o bolsonarismo brasileiro entra como uma espécie estagiário deslumbrado) deve ter sentido pelo menos uma ponta de satisfação com a notícia de que a Fox News finalmente decidiu descartar o âncora Tucker Carlson, principal cheerleader da extrema-direita norte-americana.

A queda Carlson vem na sequência da decisão da Fox News de aceitar pagar uma indenização de quase US$ 1 bilhão para uma empresa produtora de sistemas usados na mais recente eleição presidencial dos Estados Unidos. Evidências levantadas numa investigação judicial mostraram que o canal de notícias (e Carlson em particular) sabia que as acusações que fazia contra a companhia – de que seus equipamentos haviam sido fraudados para aumentar a votação de Joe Biden – eram falsas, e insistia em repeti-las mesmo assim.

A jurisprudência americana exige, para que uma empresa jornalística possa ser condenada por difamação, que se prove “intenção maliciosa”. Esse é um nível de evidência extremamente alto e quase impossível de atingir (não é nada fácil, afinal, demonstrar materialmente a “intenção” por trás de um gesto). O fato de a Fox News preferir pagar, via acordo, uma indenização quase bilionária, de mais de US$ 700 milhões, para evitar que o caso fosse a julgamento é eloquente – para dizer o mínimo.

 

 

Seguro e inseguro

Mas tudo isso é só preâmbulo. Vamos ao principal: a demissão de Carlson me levou a, enfim, assistir ao desinformentário que ele co-roteirizou e apresentou para a Fox  no ano passado, “The End of Men” (“O Fim dos Homens”). Com pouco mais de meia hora, o filme lança a tese de que há uma grande conspiração – envolvendo a indústria farmacêutica, os fabricantes de pesticidas, o agronegócio e o sistema educacional – para feminizar os homens do Ocidente, tornando-os menos másculos e, portanto, mais fáceis de dominar.

“Grandes corporações efetivamente travam uma guerra química contra o país e o seu corpo, mas você não está autorizado a saber o que está acontecendo”, sentencia Carlson. “Empresas químicas e farmacêuticas estão nos envenenando, nossa água, nossa comida, nosso ar. E fazem isso com a ajuda do governo”. Pode parecer que aqui o âncora entrou em transe mediúnico e passou a psicografar algum press release do Greenpeace.

E, de fato, Tucker Carlson abraça por completo e sem pudores a hipótese (que já está mais para mito) dos “disruptores endócrinos ambientais” – a ideia, muito acalentada mas até hoje jamais comprovada, de que determinadas substâncias (especialmente certos plásticos e alguns pesticidas sintéticos) são capazes de, mesmo em concentrações muito baixas ou residuais, consideradas seguras pela toxicologia tradicional, alterar o equilíbrio hormonal do corpo humano e gerar problemas de saúde crônicos ou de longo prazo.

Não se trata de negar a existência de moléculas capazes de afetar a função hormonal – pílulas anticoncepcionais são um exemplo óbvio, entre muitos –, mas de distinguir entre os efeitos (reais) das concentrações encontradas em medicamentos ou formulações comerciais, ou de overdoses aplicadas a camundongos num laboratório, e os supostos efeitos (altamente hipotéticos, se não de todo imaginários) de traços vestigiais, considerados seguros pela toxicologia clássica, detectados no meio ambiente ou em alimentos.

A insistência em passar por cima dessa distinção necessária e fingir que substâncias são “seguras” ou “inseguras” em si, independentemente de concentração, grau de exposição e contexto de uso, é uma marotice retórica cevada na esquerda, mas que a direita carlsoniana não hesita em abraçar.

Tucker Carlson oferece espaço generoso no documentário a Linda Birnbaum, toxicologista que é uma das principais defensoras da hipótese dos disruptores endócrinos ambientais, e que ele apresenta como alvo de perseguição política – só não menciona que ela se desligou do serviço público durante o governo de Donald Trump. Birnbaum, cientista com credenciais sérias, é uma das poucas exceções presentes no filme de alguém que fala, ainda que de forma enviesada, sobre algo em que tem expertise. Em geral, o "documentário" é amplamente dominado por figuras como o grande-chanceler Palpatine do movimento antivacinas, Robert F. Kennedy Jr., e por um fisiculturista anônimo e tuiteiro que se apresenta como o “Nacionalista dos Ovos Crus” (pois é).

 

 

Pesticidas vs. testosterona

O que muda, quando direita e esquerda falam em "disruptores", é a natureza dos poderes atribuídos ao bicho-papão. Se para a esquerda esses supostos vilões causam câncer e contaminam leite materno, para a direita suprimem a testosterona, encurtam o pênis e derrubam a contagem de espermatozoides. “Glifosato deixa o pinto pequeno”. Como foi que o pessoal da agroecologia não pensou nisso primeiro?

Metade do desinformentário é ocupada por praticantes de algo que se chama “Bro Science” (algo como “Ciência dos Manos”), basicamente homens e rapazes preocupados em preservar ou aumentar a própria masculinidade, e que buscam soluções caseiras, trocando dicas entre si, para atingir esse fim. Enquanto ciência, a “Bro Science” falha logo no primeiro teste, o da sistematização – ou, como diz o clichê, “o plural de experiência pessoal não é dado científico”. Em outras palavras, não é porque um monte de amigos seus dizem que engolir três dúzias de ovos crus por dia vai fazer seu nível de testosterona aumentar que isso é verdade.

E aqui chegamos ao “Nacionalista dos Ovos Crus”, o autor da recomendação das três dúzias, que segundo ele vem do fisiculturista Vince Gironda (1917-1997). Esse “Nacionalista”, que não revela o verdadeiro nome, apresenta-se como um “fisiculturista e escritor distribuindo informação de saúde e forma física ‘red-pill’ para as massas”. “Red-pill” – referência à pílula vermelha que, no filme “Matrix”, permite aos personagens perceberem que se encontram dentro de uma simulação – é a senha de entrada e metáfora favorita de diversas teorias de conspiração, mas principalmente as ligadas à misoginia.

Sua ideia geral é de que existe uma cabala internacional (os “globalistas de soja”) que querem escravizar a Humanidade e, para isso, tentam impor ao mundo uma dieta emasculadora (à interminável lista de supostos disruptores endócrinos brandida por aí pelo movimento ambientalista mais à sinistra, a direita inclui um extra: a soja, que seria “feminizante” – um boato recorrente e falso). Em seu livro “Raw Eggs Nationalism – Theroy and Practice” (“Nacionalismo de Ovos Crus – Teoria e Prática”, volume 1 da trilogia Ovos Crus), o indômito fisiculturista red-pill escreve:

“Considere não comer pão como parte importante de sua revolta contra a domesticação do espírito humano, que tem ocorrido desde a alvorada da história – e continua em marcha. Nunca se esqueça de que, enquanto os Mestres das Mentiras querem que você subsista com pão transgênico de glifosato, talvez com uma linguiça molenga de soja ou hambúrguer de inseto para variar, eles próprios estarão jantando o melhor da despensa de Deus – o melhor bife Angus, carne de porco de primeira, as aves do céu e os peixes do mar...”

 

No filme de Carlson, “Ovos Crus” afirma estar apenas “transmitindo a sabedoria dos ancestrais”. E um dos influenciadores fisiculturistas sentencia: “ser de direita é tão-somente acreditar que existe uma ordem natural”.

 

Qual natureza?

E aqui chegamos à questão apresentada no título: a natureza é de esquerda ou de direita? A resposta, obscurecida no discurso público atual, mas um tanto quanto óbvia para quem pensa no assunto por mais do que três segundos, é: nenhum dos dois. A natureza é o que é. Movimentos políticos tentam interpretá-la de acordo com suas luzes e aproveitar o apelo romântico que a palavra tem para angariar adeptos e maldizer adversários.

O ambientalismo contemporâneo tem matiz progressista, mas nem sempre foi assim. O movimento pela criação de parques naturais nos Estados Unidos foi capitaneado pelo principal promotor da supremacia branca no início do século 20, Madison Grant (1865-1937), que como conservacionista conseguiu salvar o bisão americano da extinção. E a historiografia sobre as raízes ideológicas do nazismo está repleta de trabalhos ligando a emergência da extrema-direita nacionalista aos movimentos de saúde natural e retorno à vida simples, mais conectada à natureza, que emergiram na Alemanha nos anos 1920.

Os dois lados do espectro político abraçam sem pudor a falácia da superioridade intrínseca do “natural” – quando lhes convêm. Trata-se menos de um argumento e mais de uma manobra para explorar sentimentos, insuflar medos, mobilizar bases. Palavras (“natural”, “artificial”, “guerra”, “ancestral”, por exemplo) deixam de ter significado próprio e se reduzem a vetores de manipulação dos afetos.

O filme de Carlson tornou-se infame, quando de seu lançamento, porque uma das “dicas” da “Bro Science” é expor os testículos à radiação infravermelha, para estimular a produção de testosterona (não funciona). A prática foi devidamente ridicularizada com o apelido de “bronzear as bolas”. Mas não é mais absurda do que escovar os dentes com cúrcuma. Quem ri de uma mas leva o outra a sério – ou a relativiza, sacando um “veja bem” do bolso – teve o senso crítico colonizado por afinidade ideológica.

CORREÇÃO (12/5/2023), 9h33: alteração no parágrafo que trata de "traços vestigiais" de substâncias para deixar claro que a referência é a traços considerados seguros pela toxicologia.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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