Ajustar crenças e comportamentos de acordo com a evidência disponível é um dos maiores imperativos, se não o maior, da existência racional, e um dos mais urgentes para garantir a viabilidade do Homo sapiens a longo prazo (supondo que isso seja uma coisa boa). Só que parece também ser o mais difícil de implementar e sustentar.
Fazer esses acertos de forma correta, no dia a dia, já é complicado o suficiente em escala individual. Em termos coletivos, o processo é muito facilmente cooptado pela influência do pensamento de grupo, de vieses ideológicos e por operações de desinformação e de marketing. É inacreditável a rapidez com que a mentalidade de rebanho migra da ojeriza visceral a algo, com base em evidências ruins ou insuficientes, para a veneração acrítica dessa mesma coisa, com base em evidências igualmente fracas ou irrelevantes. Esse “bug” é, tenho certeza, o maior aliado dos besouros e das baratas na corrida para nos substituírem como forma de vida dominante no planeta.
Trata-se de uma convicção antiga, decantada lá no fundo da mente, mas que voltou à tona na última semana, quando amigos chamaram atenção para editorial de O Estado de S. Paulo louvando a decisão do governo paulista de incluir medicamentos à base de canabidiol no Sistema Único de Saúde (SUS) do estado mais populoso do país.
Assim como outros derivados de maconha com potencial uso médico, o canabidiol sofreu durante muito tempo por causa da associação com a droga ilícita: temores de que o produto fosse uma espécie de “Cavalo de Troia” a serviço da liberação do uso recreativo da cannabis embalaram o que deveria ser uma discussão técnico-científica numa névoa de pânico moral, explorada por populistas de direita.
Tanto o editorial do Estadão, um clássico jornal conservador, quanto o gesto do governo estadual – encabeçado por um político que até quatro semanas atrás não perdia oportunidade de afagar vigorosamente a extrema-direita – indicam que houve uma chacoalhada significativa nas peças do tabuleiro conceitual armado em torno do canabidiol.
O diário paulistano sugere, em seu texto laudatório, que chegou a hora de mudar: a evidência científica disponível é robusta, e apoia o gasto público nesses medicamentos, sem espaço para controvérsia. “Bom senso venceu o preconceito”, é o título. Um título mais acurado, no entanto, seria: “Hype do canabidiol venceu o preconceito, mas também o bom senso”.
“Cientificamente comprovados”
O bravo matutino, ao elogiar a decisão do governo, sentencia:
“Os benefícios do canabidiol para a saúde e o bem-estar de pessoas acometidas pelo transtorno do espectro autista, por Parkinson, Alzheimer, epilepsia e algumas doenças raras são cientificamente comprovados. E há um bom tempo”.
Há poucos meses, esta Revista Questão de Ciência publicou longo artigo do professor de Farmacologia André Bacchi a respeito do uso medicinal de maconha e derivados, os chamados canabinoides (um dos quais é o canabidiol). Eis o que informa, a respeito das condições de saúde mencionadas pelo editorialista:
“No espectro autista, um dos contextos mais associados ao uso do canabidiol e ao óleo de cannabis, as evidências também não endossam o que vem sendo feito na prática”.
(...)
“Uma revisão sistemática de ensaios clínicos sobre o uso de canabinoides em quadros de demência (sendo Alzheimer o tipo de demência mais comum), publicada em setembro do ano passado, apontou que há poucos estudos, e pequenos, nessa área e concluiu que, por enquanto, ‘se houver algum benefício de canabinoides para demência, os efeitos devem ser tão pequenos a ponto de não terem relevância clínica’”.
(...)
“Para as doenças neurodegenerativas com características motoras importantes, como Parkinson e Huntington, também não há, até o momento, evidências científicas de qualidade suficientes para guiar decisões clínicas”.
(...)
“Com relação à famosa indicação de canabidiol para epilepsia, há dois ensaios clínicos randomizados de qualidade aceitável que foram publicados no New England Journal of Medicine que apontam para benefício em síndromes epilépticas específicas, como na síndrome de Lennox-Gastaut. Ainda assim, considerando o tamanho pequeno da amostra, temos um grau de imprecisão e incerteza importante, como ficou mais evidente em uma revisão sistemática de 2021”.
Outros especialistas comentam que, mesmo onde a evidência é mais robusta, os efeitos são pequenos e os altos custos precisam ser levados em conta, ainda mais num sistema público. Tudo, como se vê, bem distante dos tais “benefícios (...) cientificamente comprovados”. Se não há razão para temer ou descartar o canabidiol e demais canabinoides só porque são derivados de uma planta estigmatizada, a evidência positiva disponível, embora sugestiva, também está longe de recomendá-los de modo tão enfático.
Mercado
Em comunicação pública da ciência, a palavra “hype” designa uma promessa exagerada ou irrealista de benefícios, feita em nome de uma descoberta ou tecnologia. Nesse sentido, a explosão acrítica de entusiasmo por canabinoides vista nos últimos anos configura um caso clássico. O “hype” dos canabinoides medicinais sempre foi forte entre os entusiastas do uso recreativo da maconha, mas sua assimilação por setores conservadores vem (provavelmente não por acaso) depois da cooptação desses produtos pelo multibilionário mercado de bem-estar e saúde “alternativa”.
O núcleo duro da cultura formada em torno da maconha (assim como dos psicodélicos, que passam por um processo semelhante de cooptação e “hype”, no caso envolvendo até mesmo a Família Real Britânica) sempre se apresentou como uma contracultura, parte de um sentimento antissistema e anticapitalista. A questão é que o capitalismo não tem nada contra símbolos e comportamentos ostensivamente anticapitalistas, desde que deem lucro aos investidores.
Investidores de olho em mercados promissores e os altos executivos encarregados de mantê-los felizes, por sua vez, são importantes formadores de opinião no meio conservador, tanto entre lideranças políticas quanto na mídia. E aqui não se trata de postular alguma grande teoria de conspiração, mas apenas de reconhecer os mecanismos usuais de influência social e persuasão. O “normal” é o que nossos amigos do peito e colegas de noitada pensam, a “verdade” é o que eles afirmam com convicção.
A legalização da maconha para uso recreativo em partes dos Estados Unidos e o verniz de credibilidade médico-científica – obtido tanto pela planta em si quanto pelos canabinoides –geraram um espaço enorme para investimentos. Para surfar nessa onda, basta ter um bom departamento de marketing e escrúpulos flexíveis.
Empreendedores no setor de bem-estar, em especial, estão muito bem acostumados a transformar em produtos de sucesso material que a rigor se resume a estudos preliminares, inconclusivos ou mesmo de péssima qualidade que sugerem que alguma coisa talvez, quem sabe, com sorte, pode, em hipótese, trazer algum benefício para a saúde de alguém em algum lugar. Praticamente todo o mercado de suplementos alimentares baseia-se nisso. Casos exemplares vão do resveratrol à fosfoetanolamina.
Rebote
Como fenômeno social, o “hype” de produtos medicinais tem um ciclo: o entusiasmo excessivo tende a levar a uso indiscriminado, incorreto ou abusivo, o que acaba fazendo vítimas. Ao mesmo tempo, a falha em cumprir as promessas irreais e atender às expectativas exageradas do público traz frustração. O sofrimento das vítimas e a frustração dos usuários produz um rebote que pode acabar levando o produto de volta ao ponto de partida: proibição, ojeriza, rejeição irracional.
Os psicodélicos cumpriram todo esse ciclo entre os anos 1960-1970, e levaram décadas para renascer como campo sólido e respeitável de pesquisa científica. Mal começaram a aparecer os primeiros resultados promissores (ainda incipientes, tentativos, cautelosos), no entanto, e já viraram tema de episódio em série de TV da fábrica de picaretagens de Gwyneth Paltrow, bem como apareceram “resorts psicodélicos” para ricaços estressados.
O princípio de dosar crenças (e políticas públicas!) de acordo com a evidência vira uma quimera se formos incapazes de, ou incompetentes para, definir o que conta como “evidência”. O editorial do Estadão menciona que o governador de São Paulo citou o caso específico de seu sobrinho, aparentemente beneficiado pelo uso de canabidiol. Muitos defensores aguerridos da disponibilização desse produto no SUS também mencionam sucessos particulares que trazem alento e esperança. Mas casos individuais não são boa evidência. Nem mesmo quando se acumulam em grande quantidade (explico o porquê, em detalhes, neste artigo).
É importante notar que por trás de quase todo “hype” existe alguma ciência (ou simulacro de ciência) ainda em estado incipiente. São os “estudos iniciais” que de repente se veem cooptados para lastrear panaceias milagrosas. Isso ao menos sugere algum respeito pelo processo científico, mas esse processo não é um metrô, do qual se pode desembarcar na estação mais conveniente: para que as evidências sejam de fato válidas, é preciso seguir com ele até o fim da linha.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)