"Saga da fosfo": teoria da conspiração e ciência ruim

Resenha
1 nov 2019
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saga capa

Sagas são narrativas, geralmente épicas, sobre reis, deuses e conquistas militares, que se originaram na Islândia e depois foram adotadas por povos nórdicos. Sou particularmente fascinada pela Orkeyinga Saga, que conta a história da conquista das ilhas Orkney, no norte da Escócia, e tem como heróis Sigurd, Hrolf e São Magno. 

Definitivamente, a história da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer da USP”, não se encaixa no gênero épico, ao contrário do que quer fazer crer o livro "A Saga da Fosfoetanolamina" (Primavera Editorial, 2019), escrito pelo engenheiro metalúrgico e professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Maurizio Ferrante, amigo pessoal do falecido Gilberto Chierice, o professor de Química da Universidade de São Paulo que inventou aquilo que a autora desta resenha prefere chamar de “fosfocoisa”. 

Amigos são uma preciosidade, de fato, mas a amizade tende a fazer com que exageremos as qualidades dos que nos são caros, e passemos por cima de seus defeitos.

Ferrante admite que seu livro não se propõe a discutir a validade – ou ausência de validade – científica da “fosfo”, até porque biologia não é sua especialidade. Longe disso, aliás. Mas, se não se trata de discutir a questão científica, trata-se de quê? De sistematizar, ao longo de 203 páginas, a teoria da conspiração que os fosfoadeptos espalharam aqui e ali para “explicar” a má recepção da droga no meio científico, as críticas à disseminação da droga sem testes ou controles adequados e o fracasso das tentativas mais sérias de validá-la.

Essa conspiração, que implicaria os jornalistas, os cientistas, os médicos – inclusive Dráuzio Varella, a quem o engenheiro são-carlense chama de “roedor de grande porte, talvez uma capivara” – a Fiocruz, a USP, a revista Nature, a “Big Pharma”, a Globo, a Folha de São Paulo, o Ministério da Ciência e Tecnologia, o Supremo Tribunal Federal e quem mais você quiser incluir nessa lista. É terrível resenhar um livro sem encontrar motivo para recomendar sua leitura, mas encontrei este: trata-se de uma lição prática de construção conspiracionista, e aí está seu único “mérito”.

Não há nada de novo na “argumentação” pró-fosfo de Ferrante, que se limita a repetir tudo que os defensores da tal pílula dizem desde que as cápsulas azuis e brancas ganharam espaço na mídia – para depois desaparecer. 

Ferrante espalha perguntas supostamente capciosas – para usar um adjetivo que Chierice adorava – ao longo do texto, insinuando que sabe as respostas, mas que as respostas seriam inconvenientes ou comprometedoras. 

Pergunta, por exemplo, de onde veio a “fosfo” que o químico Luiz Carlos Dias analisou na Unicamp, se Chierice jamais entregou fosfo para ele. Esta repórter responde: vieram do Ministério da Ciência e Tecnologia, que recebeu as cápsulas de Chierice. 

Chierice esperneou na mídia, reclamando dos resultados de Dias – que comprovaram que o método de síntese usado pelo químico de São Carlos era inepto – e disse que faria a mesma análise no exterior. Bom, os resultados foram idênticos, como o próprio Chierice reconheceu naquele clássico da divulgação científica televisiva, o Programa do Ratinho. 

Ferrante diz que Dias foi deselegante, mas omite – ou talvez não saiba – que tanto a Unicamp, enquanto instituição, como Dias, pessoalmente, convidaram Chierice e equipe para acompanhar os testes, mas eles sequer se dignaram a responder. Outra omissão interessante do livro diz respeito a Bernadete Cioffi, durante muito tempo a face mais visível do movimento pela liberação da fosfoetanolamina como medicamento para o câncer, e que morreu no início deste ano. Cioffi apresentava-se em eventos públicos como prova viva de que a “pílula milagrosa” de São Carlos é capaz de curar a doença. Ferrante registra a morte, mas não diz que foi causada por câncer.

Quando Chierice morreu, escrevi aqui mesmo que, com ele, ia-se também boa parte da mística que cerca a “fosfo”: a de que existe a “falsa fosfo” e a “fosfo verdadeira”, esta última sendo que passou pelas mãos de Chierice e de seus seguidores mais próximos. 

O protagonista

Ferrante começa o livro com uma descrição impressionista do que acha que é a universidade como instituição, suas formas de financiamento de pesquisa, como pano de fundo para compor seu herói quixotesco, homem humilde, de roupas simples, avesso ao estrelato dos cientistas que passam a vida em viagens internacionais para congressos e simpósios e obtendo financiamentos milionários para projetos que, na verdade, são tocados por pobres pós-graduandos subservientes, e cujas aulas são “sorrateiramente passadas a outros”. 

Quando relata as primeiras aventuras de Chierice no mundo da “fosfo”, no entanto, Ferrante tem a candura de contar que o professor encarregou pós-graduandos – mestrandos – de fazer pesquisas e resumi-las. Foi a partir desses resumos que ele concluiu estar na pista da cura do câncer. Sem ter feito nenhuma análise, nenhuma experiência, nada, ele teria dito a Ferrante: “Isso é uma locura (sic); é uma molécula muito pequena... o mundo todo está atrás, bilhões de dólares em pesquisa, e logo no Brasil, logo aqui vai surgir um milagre desses?” 

A ciência está repleta de fiascos que começam assim, não com uma dúvida, mas como uma certeza absoluta, que impede o pesquisador de ver falhas de método, de análise, falhas e enviesam suas conclusões. Antes mesmo de sintetizar a “fosfo”, Chierice estava certo de que tinha nas mãos a cura do câncer. Não à toa, batia sua porta na cara de familiares de pacientes que tinham tomado “fosfo”, morrido, mas ainda assim iam agradecê-lo em seu laboratório.

Há um aspecto nessa história que sempre me intrigou: as supostas pesquisas com “fosfo” em humanos, que teriam sido feitas no Hospital de Jaú, que ninguém sabe, ninguém viu. Não conheço um único pesquisador que não tenha sempre um fiel caderninho, ou tablet, repleto de anotações detalhadas, e não consigo entender como Chierice teria entregado sua “fosfo” a um hospital, para pesquisa, sem saber os nomes dos médicos envolvidos e sem perturbá-los com frequência para saber de seu andamento. Também não registrava para quem entregava a “fosfo” em seu laboratório. 

Como, então, poderia assegurar que era eficiente? Que diabos de ciência é essa que se faz sem dados e sem controle de variáveis e, principalmente, sem assinatura de termos de consentimento informado? O livro de Ferrante não esclarece nenhum desses pontos.

Chierice não era, segundo o autor de sua “saga”, um desses “cientistas modernos, de sorriso superior, sofisticado, falando em cientifiquês e com passagens por Harvard, Houston, Betheseba” (sic) – creio que se referia a Bethesda, Maryland (EUA), sede dos National Institutes of Health; betheseba é uma subespécie de borboletas. 

Ferrante não é adepto da revisão ortográfica ou da checagem de informações: lá pelas tantas, quando tenta induzir o leitor a crer que o oncologista Paulo Hoff, diretor do Instituto do Câncer do Estado São Paulo, não compareceu ao evento USP Talks sobre a “fosfo” por algum motivo escuso, conta que ele foi substituído por Ademar Lopes, vice-presidente do AC Camargo Cancer Center. No evento,  Lopes debateu com Gustavo Fernandes, atualmente diretor do Hospital Sírio-Libanês de Brasília e, à época, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica. Na linha seguinte, os dois são transformados pelo autor numa espécie de quimera, num tal de “Gustavo Lopes”. 

A ciência

A biologia, como todas as áreas do conhecimento, tem conceitos próprios, alguns deles bem simples. Como sabem todos os alunos que fazem o Enem, célula diferenciada é aquela especializada, como são os neurônios e as células beta do pâncreas, que produzem insulina, só para citar duas. Tanto Chierice como Ferrante teimam em chamar as células cancerosas de “diferenciadas”, quando o termo correto é “transformada”. 

Células cancerosas proliferam, mas não se especializam, e é por isso que pessoas com leucemia têm um número anormalmente grande de glóbulos brancos, mas são extremamente suscetíveis a infecções: eles não se especializam e, portanto, não cumprem a função dos glóbulos brancos saudáveis, de defender o organismo contra vírus e bactérias. Lá pelas tantas, Ferrante afirma que a “fosfo” não só mata as células cancerosas, como “destrói os vasos sanguíneos que causam metástase”.

Problema: vasos sanguíneos não causam metástases. Células que se desprendem do tumor primário, caem na corrente sanguínea e conseguem colonizar áreas distantes do corpo causam metástases. É provável que Ferrante quisesse se referir ao processo pelo qual células cancerosas acionam genes que produzem novos vasos sanguíneos na massa tumoral, para obter oxigênio e nutrientes, um processo chamado angiogênese, descoberto por Judah Folkman. 

Cirurgião, Folkman via, na prática, esses novos vasos, mas, como não era biólogo, ninguém acreditava nele. Fez o que fazem os verdadeiros cientistas: passou anos na bancada até isolar os fatores que disparam o processo, provou sua hipótese e abriu caminho para o desenvolvimento de uma nova família de medicamentos contra o câncer, os antiangiogênicos.

Ferrante martela insistentemente todos os argumentos que o grupo de São Carlos repetia ad nauseam para tentar sustentar a plausibilidade do uso da “fosfo” como remédio contra o câncer, inclusive a tese de Otto Warburg, de que o câncer seria causado pela transformação das células aeróbicas em anaeróbicas, isto é, que produzem energia por meio da fermentação, e não da respiração. 

Warburg, Nobel de 1931, levantou a ideia por volta de 1936, oito ano antes da clássica experiência de Avery, MacLeod e McCarthy, comprovando que o DNA é o material genético da célula, dezessete anos antes de Watson e Crick descreverem a estrutura do DNA, quarenta e três anos antes de Robert Weinberg descobrir o primeiro gene causador de câncer (K-ras) e 50 anos antes de o mesmo Weinberg isolar o primeiro gene supressor de tumor (Rb). 

Antes de todos eles, porém, Thomas Boveri, em 1902, num trabalho sobre ouriços-do-mar, já tinha levantado a hipótese brilhante, e hoje confirmada, de que o câncer “pode ser resultado de certas condições anormais dos cromossomos”. 

A tese de Warburg, que podia fazer sentido à luz do que se sabia na década de 30, foi enterrada nos anos 70, quando começou a ficar claro que o câncer, nome genérico de mais de 200 doenças diferentes, era produto de mutações genéticas específicas.

Ferrante tenta salvar a “lógica” da “fosfo” apelando para a tese das Revoluções Científicas do filósofo americano Thomas Kuhn, que propunha dividir a história da ciência em períodos de “ciência normal” e de “revolução científica”. 

Segundo a leitura especialmente criativa feita pelo engenheiro são-carlense, hipóteses só são descartadas ou refutadas durante as “revoluções”, jamais no curso da ciência normal, logo “a teoria de Warburg não pode ser definitivamente posta de lado” porque “não me parece que o progresso do conhecimento sobre o câncer e sua cura contenha algum exemplo de revolução científica; mais aparenta proceder segundo uma progressão cumulativa de descobertas, uma servindo de degrau à próxima, progressão que caracteriza a Ciência Normal”. 

A ideia de que a “ciência normal” não refuta hipóteses deve vir como uma surpresa para os milhões de cientistas que veem suas ideias serem desmentidas por experimentos, dia sim, dia não, em seus laboratórios.

Poucas áreas da ciência e da medicina avançaram tanto quanto a pesquisa básica e aplicada associada ao câncer, com famílias inteiras de novos medicamentos, como os antiangiogênicos, já citados, e mais recentemente os imunooncológicos, novas técnicas cirúrgicas, incluindo a robótica, bem menos invasiva, novos métodos de diagnóstico, entre eles a biópsia líquida e por aí em diante. 

Vale lembrar sempre que “o” câncer, por ser 200 doenças, não tem “uma” cura, mas várias curas, da mesma forma que um antibiótico não funciona para todas as infecções. Aliás, algo que Ferrante escreve – que a “fosfo” não cura todos os tipos de câncer em todas as pessoas – contraria Chierice, que afirmava que sua cápsula mágica curava todo tipo de câncer. O químico declarou isso, por exemplo, em entrevista a Roberto Cabrini, no SBT, e em evento do Sindicato dos Farmacêuticos do Estado de São Paulo.

“Ferozes”

O autor investe contra os críticos da “fosfo”, especialmente os que qualifica de “opositores ferozes, que quase sempre utilizam o recurso de desqualificar o grupo de pesquisadores de São Carlos a nível pessoal, o que é deselegante e, principalmente, injusto e equivocado.” Perfeito. 

Mas vamos ao que escreve o autor sobre os tais opositores ferozes. Dráuzio Varella, como já disse, é chamado de “capivara”. O autor afirma que Varella foi “convocado pela Globo” a diminuir a “fosfo” no Fantástico de 18 de outubro de 2015. Quem convenceu Dráuzio a abandonar a tradicional atitude de médicos sérios, de não falar de charlatães para não lhes dar mais notoriedade, fomos esta repórter, Marilia Juste, então sua editora no programa, e os 20 pacientes que ele atendeu na quinta-feira, dia 15, todos pedindo a “pílula da USP”. 

Ainda sobre Dráuzio Varella, Ferrante me “acusa” de ser “discípula de Dráuzio”, um elogio involuntário, claro. Todos nós que escrevemos sobre saúde temos em Dráuzio Varella um modelo e exemplo, pela clareza, pela simplicidade de fala e texto e pela maneira como consegue humanizar qualquer tema de saúde. 

Se sou discípula de alguém, porém, sou de Ricardo Renzo Brentani, oncologista e ex-diretor do AC Camargo Cancer Center. Brentani não tinha papas na língua e batia pesado em exploradores do desespero alheio, que vendem falsas curas.

Maurizio Ferrante questiona também o desinteresse da USP na patente de Chierice, que, segundo o próprio Instituto Nacional de Patentes Industriais (INPI) padece de insegurança jurídica. Por lei, as patentes da “fosfo” deveriam mencionar a USP, já que foram desenvolvidas em seus laboratórios, cabendo à universidade ou abrir mão de seus direitos por meio de carta, caso deseje, ou mantê-los. O autor também insinua que a fotógrafa Cristina Bastos, do Jornal da USP, “montou” o cenário para fazer as fotos do laboratório de Chierice – com goteiras, panos sujos e materiais enferrujados – que escandalizaram o ministro Ricardo Lewandovski, do STF.

Confesso que fiquei aflita na parte em que o autor faz ataques pessoais a jornalistas e divulgadores de ciência, porque eu lia, lia e meu nome demorou a aparecer. Mas o autor acusa a bióloga e divulgadora Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, que publica esta revista, de ser uma “acadêmica improdutiva”, sendo que há anos ela optou por abandonar suas atividades de laboratório e passou a atuar na divulgação e educação científica. Diz que Carlos Orsi, editor desta revista, não tem opinião própria e copia as que lê na internet. 

dedicatoria carlos Natalia

 

Mas em termos de deselegância, injustiça equívoco, nada supera o que Ferrante escreve sobre Alceu Castilho, jornalista, reproduzindo sua fala: “Que ele (Chierice) seja processado, punido, preso, qualquer coisa. Canalha”, como se Castilho tivesse escrito isso em uma reportagem. Mas Alceu se pronunciou sobre a “fosfo” em redes sociais e também como fonte, em entrevistas, inclusive para mim, como filho do bancário aposentado José Antonio Castilho, que recebeu as cápsulas com a recomendação de que parasse químio e radioterapia e não tomasse remédios que pudessem interferir com a fosfocoisa. Seu José piorou e, mesmo com dores terríveis, recusou cuidados paliativos, com medo que impedisse o milagre prometido.  

Quanto a mim, fico orgulhosa de ser a pior de todos, embora Ferrante não consiga se decidir se sou pesquisadora farsante ou jornalista mentirosa. Como outros fosfoadeptos, me acusa de crueldade e deboche para com pacientes de câncer, quando meus textos tentam mostrar a crueldade das falsas curas. 

Como sou jornalista e não tenho pretensões acadêmicas, obviamente não tenho currículo na Plataforma Lattes. “Estranha pesquisadora que seguiu um monte de cursos no MIT – Genética, Genômica, Bioquímica e Câncer (desconheço esse curso – quem daria esse nome a um curso?)” pergunta-se o autor que, das duas, uma: ou não conhece a função da conjunção “e”, ou o significado da palavra Câncer. 

Quem deu o nome ao curso, Cancer Biology, foram os professores Robert Weinberg e Tyler Jacks. Ferrante tenta desqualificar a iniciativa como um “cursinho para jornalistas”. Bom, o MIT não tem “cursinhos para jornalistas”, mas jornalistas bolsistas que podem frequentar os cursos regulares que quiserem. Cancer Biology continua na grade de graduação do MIT e Weinberg, aos 77 anos, me confirmou que segue à frente das aulas. 

Outra coisa. Biologia Molecular I e II são disciplinas obrigatórias para todos os alunos do MIT, inclusive os que pretendem ser engenheiros. Poucas vezes na vida percebi o acerto dessa obrigatoriedade como durante a leitura do livro de Ferrante, que não é uma saga, mas um manual de montagem de teoria da conspiração que nem mesmo tem o frescor da originalidade.

 

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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