Nunca deixo de me espantar com os esforços que as empresas realizam para deixar seus trabalhadores mais felizes – desde que isso não envolva aumento de salário, redução de jornada ou respeito ao tempo livre do funcionário com a família, claro.
Durante muito tempo, o padrão-ouro para manifestar essa preocupação sincera vinha sob a forma de palestras e atividades motivacionais. Uma empresa em que trabalhei anos atrás, cambaleando, então, à beira da falência, houve por bem mandar os altos executivos para um seminário num hotel-fazenda (onde, segundo uma testemunha que já morreu, as atividades incluíam “ficar de quatro e rugir como um leão”) e a turma de TI jogar paintball, “para criar espírito de equipe”.
Conteúdo motivacional corporativo tende a derivar daquilo que o jornalista americano Steve Salerno – cujo livro-reportagem “SHAM” é uma denúncia do lado perverso da indústria de autoajuda – chama de “movimento do empoderamento”, cujas pontas-de-lança são figuras como o mega-coach americano Tony Robbins e o conjunto de técnicas e doutrinas pseudocientíficas normalmente reunidas sob o guarda-chuva da Programação Neurolinguística (PNL).
Da PNL, vem a crença de que o modo como uma pessoa vê e interpreta o mundo define o modo como ela reage e se comporta em relação ao mundo – e como o mundo vai reagir e se comportar em relação a ela. De Robbins e outros como ele, com seus seminários cheios de música bate-estaca e luzes estroboscópicas, vem a promessa de que autoestima, autoconfiança, foco, disciplina e dedicação são capazes de tudo vencer e tudo superar.
Em seu principal texto “teórico”, o livro “Ultimate Power”, Robbins funde a PNL a sua visão peculiar de mundo usando, como metáfora, uma jukebox (aqueles toca-discos automáticos que aparecem nos filmes americanos, onde cada botão leva a máquina a selecionar um álbum e uma música específica).
“Seres humanos têm experiências que são registradas. Estocamos essas experiências no cérebro, como gravações numa jukebox. Como as gravações numa jukebox, nossas gravações podem ser reproduzidas a qualquer momento, se o estímulo certo no ambiente foi ativado, se o botão correto é apertado”.
Robbins então elabora um pouco sobre como é possível “reprogramar” a jukebox mental, de modo que ela só toque “músicas boas”. E arremata:
“Não damos a mínima para o que aconteceu. O que realmente nos importa é como você organiza, na sua cabeça, o que aconteceu. Qual a diferença entre o modo como se produz um estado de depressão e um estado de êxtase? A principal diferença está no modo como você estrutura suas representações internas”.
Essa receita toda pode soar muito interessante e até razoável, se por um momento abstrairmos a crueldade intrínseca e o passe livre para culpar a vítima (se a única diferença entre “depressão” e “êxtase” são “representações internas”, então ninguém nunca tem razões objetivas para se sentir deprimido), mas Salerno cita uma pesquisa que mostra que a pessoa que tem maior probabilidade de comprar um livro de autoajuda, como os que Tony Robbins escreve, é alguém que comprou outro livro do mesmo tipo, nos dezoito meses anteriores. Ele aponta a contradição: "muitos desses livros se propõem a resolver ou amenizar um problema. Se o que vendem funcionasse (...) não seria de se esperar que a pessoa precisasse de ainda mais ajuda, sobre o mesmo assunto, repetidas vezes". O autor conclui que, se os leitores precisam renovar suas doses de "ajuda" a cada ano e meio, isso quer dizer que a "ajuda" não é real, mas uma ilusão que requer reforço contínuo para se manter.
As razões são várias. Uma delas é que, nas palavras do psicólogo britânico Stephen Briers, em seu livro “Psychobabble", “assim como beleza, inteligência e outras dádivas muito valorizadas, força de vontade, determinação e foco não foram distribuídos de modo igual entre os filhos da Mãe Natureza”. Outra é que circunstâncias objetivas importam: um copo vazio não é um copo meio cheio. Um tiro no peito não é uma questão de ponto de vista. O modo como "você organiza na sua cabeça” uma queda de 20 andares não afeta em nada o impacto no asfalto.
O fato de o “movimento de empoderamento” fazer pouco caso do peso das circunstâncias e condições objetivas (“não damos a mínima para o que aconteceu”), jogando toda a responsabilidade pelos resultados, sucessos ou fracassos, nas costas do indivíduo é, numa análise cínica, conveniente para a firma: o que fica em primeiro plano é a obrigação do trabalhador que fazer o melhor possível com as condições dadas, e pouco, ou nada, se fala sobre o dever do empregador de fornecer meios e condições compatíveis com os resultados esperados.
Esforços motivacionais parecem ter poucos benefícios, no entanto, para além de oferecer aos gestores uma boa desculpa para mudar de assunto quando alguém menciona condições de trabalho inadequadas. O ganho de eficiência e produtividade, quando existe, é pequeno e dura pouco. “Praticamente qualquer esforço motivacional paga dividendos no moral de curto-prazo”, escreve Salerno.
“Mas a euforia não dura, e raramente aparece de modo demonstrável no balanço, porque o esforço motivacional não muda nada de específico na forma como as pessoas executam suas tarefas”, prossegue. Um guru de autoajuda entrevistado por Salerno disse os benefícios de seu programa são “largamente inexprimíveis. Você sente alguma coisa se ligar dentro de você”.
Recentemente, somaram-se, aos programas motivacionais, os de bem-estar, em que as firmas estimulam trabalhadores a fazer exames médicos, controlar o peso, praticar atividade física. Nos Estados Unidos, sob o programa de seguro-saúde implantado durante o governo Barack Obama, o “Obamacare”, empresas são incentivadas a implantar esquemas assim. No mercado americano, venda de pacotes de bem-estar para pessoas jurídicas já é um negócio de US$ 8 bilhões.
Exercício, exames periódicos e olho na dieta fazem muito mais sentido do que música alta e conversa fiada, mas uma série de três estudos – o mais recente, publicado em abril no periódico JAMA – sugere que a realidade é bem mais complicada do que as boas intenções sugerem.
“O investimento dos empregadores em programas de bem-estar é estimulado, principalmente, pelo pressuposto de que esses programas geram benefícios econômicos e de saúde”, aponta editorial da revista médica. “Em média, empregados mais saudáveis têm menos gastos com saúde, o que afeta o preço do seguro-saúde contratado pelo empregador. Empregados mais saudáveis também têm menor risco de perder dias de trabalho por causa de doenças e são mais produtivos”.
Mas o estudo propriamente dito – que randomizou diversas unidades de uma mesma grande empresa, oferecendo em algumas delas programas de bem-estar, e mantendo outras como controles – falhou em encontrar benefícios significativos após 18 meses. Tanto os indicadores de saúde quanto a produtividade dos funcionários e os gastos com intervenções médicas não diferiram de modo notável entre unidades “de tratamento” e “de controle”.
Numa nota um tanto quanto irônica (ou perversa), outro estudo sobre o assunto, publicado ano passado, descobriu que a maioria dos empregados que se inscrevem voluntariamente em programas de bem-estar patrocinados pelo patrão já é mais saudável e motivada, para começo de conversa.
Os autores sugerem que, se os programas não trazem benefícios diretos, eles podem servir como mecanismo de triagem para separar os trabalhadores de “baixo custo” (porque mais saudáveis e produtivos) dos demais, na hora de decidir quem vai perder o emprego.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência