A recusa do governo federal (e, ao que tudo indica, de boa parte da sociedade brasileira) em tratar a crise sanitária e humanitária que assola a cidade de Manaus com um mínimo de racionalidade seria um curioso caso de estudo em psicologia social e antropologia, não fosse a dimensão da tragédia causada por uma soma inacreditável de tolices.
Há quase um ano, publicávamos um artigo, em tom de choque e incredulidade, perguntando quantas vidas a preservação da vaidade de Jair Bolsonaro iria custar. Nunca imaginamos uma catástrofe de tamanhas proporções, em que falta até mesmo oxigênio para bebês prematuros. A arrogância estúpida e a negação da ciência matam crianças diante do olhar bovino e complacente de quem tem o dever – e nos referimos aqui tanto ao Legislativo e Judiciário quanto aos órgãos representativos da classe médica – de pôr freios à insanidade.
Diz a lenda que a resposta da rainha Maria Antonieta à queixa de que o povo francês não tinha mais pão para comer – “que comam bolos” – precipitou a Queda da Bastilha e a Revolução Francesa. É inacreditável que a resposta de Bolsonaro e de seu ordenança Eduardo Pazuello à notícia de que Manaus não tem mais oxigênio – “que tomem cloroquina” – não desencadeie algo semelhante.
No mundo de fantasia criado para que a sensibilidade frágil do presidente da República não seja destroçada pela imagem real do que é seu governo, e do mal que causa ao povo que governa, o problema de Manaus e, de modo mais geral, do Brasil – onde o número de mortes diárias causadas por COVID-19 rotineiramente supera mil –, o único empecilho ao controle da pandemia é a ausência de adesão ao chamado “tratamento precoce”, uma lista de remédios cujo uso no contexto da pandemia carece de base científica, alguns cuja inutilidade contra o vírus já foi comprovada, promovido por terraplanistas da saúde.
Nem mesmo a alegação de que falta “tratamento precoce” no Brasil se sustenta: a prática consta de protocolo do Ministério da Saúde, conta com o beneplácito do Conselho Federal de Medicina. É adotada por administrações municipais demagógicas e os remédios que a compõem são livremente receitados por médicos de norte a sul do país, para qualquer paciente que se queixe de febre ou coriza. São, portanto, duas as mentiras que servem de pilar à narrativa oficial: primeira, a de que o “tratamento precoce” pode nos salvar da COVID-19; segunda, a de que ele só não nos salvou ainda porque não está sendo usado.
Nesse aspecto, a fantasia federal se aproxima, e talvez não por coincidência, das formas mais patológicas de fanatismo religioso: se estamos sendo punidos, é porque não rezamos; se rezamos e continuamos a ser punidos, é porque não rezamos o suficiente, ou de modo correto - talvez tenha faltado o zinco bento, ou ivermectina santa. No projeto de transformar o Brasil numa espécie de caricatura de monarquia hereditária do Velho Testamento, a cloroquina substituiu o Senhor dos Exércitos. É de se imaginar o que os verdadeiros devotos pensam dessa idolatria desvairada.
As saídas reais para o caos – medidas de distanciamento social, lockdowns estratégicos, vacinação – seguem sendo sabotadas pelo presidente da República e por aqueles que subscrevem a seu culto. O mais próximo que Jair Bolsonaro chegou, até agora, de tomar uma atitude potencialmente útil para proteger brasileiros da COVID-19 foi mendigar doses de vacina junto ao governo indiano – humilhação de que poderia ter sido poupado com um pouco de prevenção, humildade, inteligência e respeito por cientistas de verdade.
Terraplanismo sanitário custa vidas; e cobra sua conta de modo cruel, sofrido, doloroso. Se nem o choque da tragédia manauara é capaz de fazer estourar a bolha de vaidade e autoengano que envolve os responsáveis, ou perfurar a complacência dos que lhes garantem a impunidade, então o Brasil deixará de ser um país onde se vive e passará a ser um pária entre as nações: um país ao qual se sobrevive.