Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Perguntas que perseguem a Humanidade desde o despertar da consciência da nossa espécie, em tempos imemoriais. Base da filosofia, estes questionamentos também motivaram o desenvolvimento das religiões. Quem somos? “Filhos de Deus”. De onde viemos? “Do barro”. Para onde vamos? “Céu (ou inferno…)”. Eis exemplos de respostas apresentadas ao longo da história – no caso, do monoteísmo ocidental, que abrange desde o judaísmo ao islamismo, passando pelo cristianismo e todas suas vertentes.
Dogmáticas, estas respostas implicam na crença de uma “vida após a morte”. Espírito, alma, atman, muitas culturas humanas desenvolveram alguma ideia de consciência que perdura após a morte.
Calcadas na espiritualidade e na fé, a natureza metafísica destas respostas também as posiciona fora do âmbito da ciência empírica. Tentativas de investigá-las diretamente, como a do médico americano Duncan MacDougall, que em 1901 se propôs a “pesar a alma”, fracassaram de forma retumbante – no caso do experimento de MacDougall, não sem antes alimentar o mito de que a “alma” não só existe como tem massa: 21 gramas.
Enquanto isso, a neurociência moderna se encarrega de creditar as coincidências individuais e interculturais nos relatos das chamadas “experiências de quase-morte” a reações naturais do cérebro, ao colapso do funcionamento do corpo. Inundados por hormônios e neurotransmissores, com fluxo sanguíneo comprometido e privados de oxigênio, entre outras alterações fisiológicas, experimentamos sensações de paz e entorpecimento, vemos túneis e luzes brilhantes, viajamos para “fora do corpo”, temos alucinações, etc. Do mais fiel devoto ao cético mais empedernido, todos só deveremos ter a prova definitiva do enigma da existência ao mesmo tempo ao morrer.
"A religiosidade ocupa um papel fundamental na mente humana e na cultura”, diz o psicólogo Wellington Zangari, professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP. “Mas não cabe à ciência discutir ontologicamente o sobrenatural. Ela não tem a menor condição de buscar ou demonstrar evidências da existência de Deus ou de um universo sobre-humano”.
Ilusão e exploração
Se mostrar indubitavelmente a existência ou não de espíritos, “energia vital” e afins está fora do escopo da ciência, o mesmo não pode ser dito das alegações de que tais “forças” ou “entidades” agem e influenciam o mundo físico. Ao atribuírem fenômenos observáveis e/ou mensuráveis, conhecimentos do passado, previsões para o futuro e até doenças e sua cura a agentes do além-vida, autointitulados “videntes”, “médiuns” e outros “profissionais do ocultismo” podem, e devem, ser objeto de escrutínio, especialmente num cenário em que o desenvolvimento da tecnologia amplia o alcance e as oportunidades para sua prática. Afinal, afirmações extraordinárias requerem provas extraordinárias, e poucos mistérios do Universo são maiores – e mais importantes, não só do ponto de vista científico, como filosófico – que o que acontece depois da morte.
“Por outro lado, temos mecanismos e métodos para verificar o quanto as alegações ligadas ao mundo religioso, paranormal, anômalo, etc., podem ser explicadas do ponto de vista científico”, complementa Zangari. “E também o quanto as pessoas podem ficar efetivamente convencidas da existência do sobrenatural, em razão das funções que estas crenças produzem dentro dos indivíduos e dos grupos. Somos todos seres humanos, e como tais precisamos dar sentido para as coisas. Sentido este que pode ser científico, mas também filosófico, artístico ou religioso. E este nosso viés de compreender o mundo, de organizar e encontrar padrões, também nos faz buscar, mais que causas, propósitos para as coisas”.
Para isso, considera o psicólogo, deve-se começar pelo fenômeno maior da ilusão. Zangari lembra que não é de hoje que ela é usada como estratégia de convencimento. Há relatos, por exemplo, de sistemas pneumáticos para abertura e fechamento “automático” das portas de templos na Antiguidade, como o inventado pelo matemático e engenheiro grego Heron de Alexandria no século 1 da Era Comum (EC). Fora da vista, e da compreensão, de boa parte do público, tais mecanismos movimentavam as portas como que “por milagre”, ajudando a reforçar a crença no “poder” dos sacerdotes e seus deuses. Ou, como disse Arthur C. Clarke, escritor britânico de ficção científica, “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
"Como estratégia de convencimento, a ilusão está muito ligada a dois tipos diferentes e complementares de demonstrações: físicas, em que objetos são movidos, aparecerem, desaparecem, são substituídos ou alterados em sua composição, etc; e mentais, como a percepção extrassensorial, a comunicação com mortos e espíritos, etc”, conta. “Neste sentido, estamos falando de ilusão como a capacidade de conduzir a percepção de alguém ou grupo de pessoas para que vejam ou experimentem aquilo que se quer”.
Acontece que os seres humanos são relativamente fáceis de iludir, o que abriu caminho para que alguns integrantes de nossa espécie desenvolvessem inúmeras formas de exploração da credulidade alheia ao longo da história. Golpistas e charlatões de toda sorte viveram, e sobreviveram, ludibriando vítimas com falsas promessas de riqueza, saúde ou sabedoria. E assim “mapas do tesouro” do passado viraram bilhetes de loteria premiados ou o e-mail do sobrinho de um ditador africano deposto de hoje, enquanto “elixires milagrosos” que tudo curam se transmutaram nos “feijões mágicos” ou “água consagrada” contra COVID-19.
Espiritualismo moderno
Mas foi a partir do século 19 que um tipo especial de charlatanice ganhou proeminência. Embalados pela ascensão do chamado “espiritualismo” e o crescente interesse popular pelo oculto – não por acaso, em paralelo à expansão do racionalismo e da ciência a partir do Iluminismo e das revoluções liberalistas que derrubaram estruturas do que até então era a realidade mental e social, do direito divino de reis aos modelos cosmológicos geo(e humano)centristas – começaram a pulular indivíduos se dizendo capazes de contatar, ou mesmo, materializar espíritos.
Onda que teve início com as que ficaram conhecidas como “Irmãs Fox”. Em 1848, as duas mais novas das Fox, Catherine (Kate - 1837/1892), então com 11 anos, e Margaretta (Maggie - 1833/1893), 14 anos na época, afirmaram estar se comunicando com uma entidade posteriormente identificada como o “fantasma” de um certo Charles B. Rosna por meio de “batidas” na casa em que moravam com os pais, na hoje extinta localidade de Hydesville, no interior do estado americano de Nova York. Após convencer pais e vizinhos da veracidade do fenômeno, elas foram enviadas para morar separadamente com irmãos mais velhos, Leah e David, na cidade de Rochester, onde as batidas continuaram.
Novamente reunidas, desta vez sob o teto de um casal amigo da família, Amy e Isaac Post, ainda em Rochester, Kate e Maggie também rapidamente os convenceram da realidade do fenômeno. O casal então espalhou a notícia entre sua comunidade radical quaker (uma denominação cristã), formando o núcleo “espiritualista” original nos EUA. Em novembro de 1849, as irmãs Fox fizeram a primeira demonstração pública paga de seus “poderes” em um salão em Rochester, angariando crescente fama que as levou a Nova York, onde suas sessões atraíram um notável, e notório, público, além de uma legião de imitadores.
"A partir daí, não parou mais”, diz Zangari, com as alegações de mediunidade inicialmente no formato de “comunicação com os mortos” das irmãs, por meio de pancadas, que ficou conhecido como “tiptologia”, com o tempo vindo a incluir fala (psicofonia), escrita (psicografia), visões (vidência) e outras supostas maneiras de “canalização” do além-vida.
Com isso, também virou moda a realização de sessões de invocação de mortos e outros rituais em torno desta temática. Uma das mais comuns eram as conhecidas como “mesas girantes”, “mesas falantes” ou “dança das mesas”. Origem das modernas “Tábuas Ouija” – patenteadas pelo empresário americano Elijah Bond (1847/1921) em 1890 –, e da que no Brasil ficou conhecida como “brincadeira do copo”, nestas práticas os participantes pousam as mãos em uma mesa, que se mexe ou inclina por suposta ação de espíritos. Hoje sabe-se que tais sessões, mesmo quando não fraudadas deliberadamente, não passam de demonstrações do efeito ideomotor, movimentos involuntários e imperceptíveis dos próprios participantes.
De médiuns e mágicos
A moda também não tardou em atrair a atenção de cientistas, médicos e outros profissionais, que logo se puseram a investigar as práticas, revelando um sem-número de fraudes, além dos truques usados pelos falsos médiuns para enganar suas vítimas. As Irmãs Fox, por exemplo, teriam a incomum habilidade de estalar dedos e ossos dos pés, com a qual produziam os sons das “batidas” do espírito de Rosna.
Entre estes profissionais que se propuseram a analisar as alegações de mediunidade, um grupo que se destacou foi o dos mágicos. Mestres da ilusão, não tiveram dificuldades de identificar as muitas possibilidades para criar supostas manifestações sobrenaturais usando os recursos de sua arte. Entre eles, ainda no século 19, destacaram-se nomes como Chung Ling Soo (nome de palco do mágico americano William Ellsworth Robinson - 1861/1918), e o mentalista Washington Irving Bishop (1855/1889), que chegou a publicar um livro explicando como videntes usavam códigos secretos e outros truques para fazer suas “leituras”.
Nesta lista figurou ainda um dos mais famosos mágicos de todos os tempos, o americano Harry Houdini (1874/1926). A partir dos anos 1920, Houdini dedicou boa parte de seu tempo a expor como fraudes ditos videntes e médiuns da época. Artista das “fugas impossíveis”, Houdini também acertou com a esposa, Bess, que, se fosse possível se comunicar depois de morto, enviaria a ela uma mensagem pré-combinada.
Após o falecimento do mágico em 1926, Bess realizou sessões espíritas anuais no Halloween e, em 1929, chegou a acusar o recebimento do código por intermédio do médium Arthur Ford, mas posteriormente negou o contato, diante da suspeita de que Ford ou algum de seus associados tinham sido capazes de deduzir a mensagem a partir de informações publicamente disponíveis. Em 1936, Bess realizou a última das sessões espíritas, afirmando que “dez anos é tempo suficiente para esperar por qualquer homem”.
O trabalho de Houdini e outros que vieram antes dele também serviu de inspiração para colegas mágicos continuarem no que se tornou uma longa tradição da categoria em desmascarar falsos médiuns e videntes. Entre eles, destaque para James “The Amazing” Randi (1928/2020).
Depois de décadas atuando na área como escapista e mágico de sucesso, com participações em diversos programas de TV americanos, nos anos 1970 ele ganhou notoriedade internacional ao contestar publicamente os feitos de Uri Geller, um autointitulado “paranormal” – e também mágico e ilusionista, que ficou mundialmente conhecido por entortar talheres “com a força da mente” –, a quem classificou de “charlatão” e “fraude”. Randi então passou a se dedicar a denunciar farsas e farsantes dos mais variados tipos, de pessoas que diziam poder mover objetos com a mente (psicocinese) a adivinhos, médiuns e “curandeiros espirituais”, tonando-se um dos decanos do movimento cético moderno.
O roteiro da manipulação
As estratégias usadas por falsos videntes e médiuns para manipular e convencer suas vítimas, porém, pouco mudaram desde o século 19. À parte da incorporação de avanços tecnológicos como radiotransmissores e pontos eletrônicos, projetores e pesquisas em redes sociais, elas continuam, em grande parte, baseadas em técnicas tomadas emprestadas de espetáculos de ilusionismo e adivinhação de longa data, notadamente as conhecidas como “leitura fria” e “leitura quente”.
"É fácil olhar para trás e dizer que o que as pessoas faziam antigamente era tosco, truques simples com alguém bater na mesa, diante de todas as ferramentas condizentes com a tecnologia que temos hoje. Os recursos evoluíram, mas os princípios básicos permanecem os mesmos dentro do ilusionismo e do mentalismo: leitura fria e leitura quente”, comenta Beto Parro, psicólogo formado pela PUC-SP e mentalista que, junto com o colega Rafa Moritz, criou o espetáculo InconscienteMente, no qual exploraram princípios da ciência comportamental e do ilusionismo para demonstrar o quanto nossas ações e escolhas podem ser manipuladas e direcionadas sem que percebamos.
“Com isso, as pessoas saem com a sensação de que falamos coisas específicas que não teríamos como saber, quando na verdade usamos vários recursos para isso”, explica.
Conjunto de técnicas para comunicação e convencimento, a leitura fria parte de deduções com base na linguagem corporal, expressões faciais, vestuário e outras características individuais (idade, gênero, contexto religioso e cultural, nível educacional, etc.) do consulente ou de integrantes de uma plateia para construir afirmações genéricas, mas que parecem específicas e pessoais, com alta chance de acerto e identificação.
O aplicador observa então as respostas e reações dos alvos para refinar a leitura, enfatizar acertos e minimizar erros, numa sucessão de estímulos que vai envolvendo o público na ilusão. Por sua ligação com probabilidade – por exemplo, jovens tendem a ter preocupações que giram em torno de estudo, início de carreira, viagens ou vida amorosa – , esta técnica costuma produzir melhores resultados, e, portanto, fazer a ilusão parecer mais verdadeira, quanto maior a audiência, num fenômeno similar ao visto, por exemplo, nos “sucessos” nas previsões de horóscopos e perfis de astrologia em geral.
Mas se a leitura fria de certa forma depende da habilidade do usuário em aplicar técnicas para reconhecer e explorar pistas fornecidas pelo público, a leitura quente consiste basicamente em apresentar como “adivinhação” ou “vidência” informações que de alguma forma já eram de conhecimento do dito médium, obtidas antes ou mesmo durante a exibição. Com isso, ele pode ser mais específico, aumentando o poder de convencimento de seu ato. Em espetáculos de ilusionismo, incluem também técnicas conhecidas como “forcing”, em que o sujeito pensa exercer seu livre-arbítrio, como na escolha de uma carta num baralho, quando na verdade está sendo induzido a pegar a que o mágico deseja, além de diversos outros truques e mecanismos.
"Na leitura fria você joga coisas gerais, que podem encaixar para qualquer um, mas acabam sendo encaixadas pelo consulente, num processo que vai baixando o limiar de pensamento crítico e que é capaz de enganar 90% das pessoas”, diz Zangari. “Mas, ao juntar informações quentes, o efeito na capacidade de convencimento é extraordinário. Cegas para as técnicas, as pessoas são levadas a uma experiência que facilmente julgam como mística, no que chamo de ‘leitura crente’”.
O roteiro do ardil, no entanto, começa a ser implementado antes mesmo da exibição dos supostos “poderes paranormais” de médiuns e afins. Tal qual espetáculos teatrais, ambientação, cenário e figurino vão encaminhando os alvos para o tipo de experiência desejado pelo charlatão, numa tática da qual se valeram desde as “ciganas” na tenda nos fundos dos circos itinerantes de séculos passados aos “oráculos” e ditos videntes dos dias atuais.
"Essa atmosfera cumpre funções de ilusão tanto física quanto mental”, conta Zangari. “Sabemos os efeitos que certas músicas podem ter na percepção, com melodias em tons menores levando a sensações de tristeza e melancolia. Também temos a preparação do local em si, com ícones, imagens e símbolos que vão remeter ao sistema de crenças que o médium se apropria e o legitima perante os consulentes. E, por fim, temos a própria figura do charlatão, desde relatos e discursos que antecipam sua chegada ou entrada em cena a suas vestimentas e modo de se portar. É como um teatro, um convite a participar da farsa que vai enredando a audiência”.
"É a história que se quer contar, a construção de uma expectativa que alimenta o viés de confirmação”, reforça Rafa.
Ambiente controlado
Mais ainda, isso também dá a um farsante um ambiente conhecido e controlado, com possíveis mecanismos e outros estratagemas escondidos que podem ser usados para reforçar a dita experiência mística ou espiritual, ressalta o mágico profissional Juan Araújo, que junto ao também mágico profissional Alejandro Muniz forma a dupla “Los Charlatanes” em shows de ilusão e mentalismo.
"Esta é uma grande vantagem do médium. O fato de terem este tipo de controle sobre seu ambiente abre muito mais possibilidades para ele se munir de um monte de estratagemas e soluções para seus truques”, diz.
Nesta fase preparatória, também costumam entrar em ação outras duas estratégias importantes para o engodo. A primeira é uma espécie de “priming”, ou predisposição, da audiência para que ignore possíveis erros, credite ao médium ou a seus “poderes” ocorrências fortuitas e colabore no desenrolar do enredo. Aí estão incluídos alertas vagos de que “coisas estranhas” podem acontecer durante a sessão ou apresentação. Desta forma, piscadelas de luz, lufadas de vento ou qualquer outra ocorrência do tipo é prontamente apontada e apropriada por ele como “sinal” de seu contato com “forças misteriosas”. Outro discurso comum nesta linha é de que o sucesso do ritual é incerto e/ou depende da participação ativa ou “fé” dos presentes. Assim, se nada acontecer ou se algo der errado, a “culpa” é do consulente ou da audiência, não do médium.
Neste meio tempo, auxiliares ou cúmplices do dito “vidente” também podem estar circulando entre o público, angariando informações diretamente, via questionários e fichas, ou sutilmente, entreouvindo comentários ou participando de conversas com os presentes, que depois serão usadas na etapa de “leitura quente” da exibição. Em espetáculos com plateia, a tática contribui ainda para o fenômeno de dupla percepção da realidade, na qual um indivíduo aparentemente escolhido ao acaso na audiência é colocado em destaque numa “leitura” pública. Em geral, tais selecionados são os que, inadvertidamente ou deliberadamente, mais passaram informações sobre si na fase de preparação, mas a plateia, sem saber disso, vê a sucessão de acertos do médium como mais uma prova de seu poder.
"As pessoas muitas vezes nem sequer se recordam de ter passado estes dados voluntariamente, ou falado sobre o assunto abertamente. Assim, os videntes ou seus comparsas vão recolhendo informações concretas que depois serão transmitidas de volta como mediúnicas”, conta Zangari, que destaca que este tipo de levantamento atualmente ficou ainda mais fácil com a explosão do uso da internet e das redes sociais. “Lá tem todo um itinerário de vida que pode ser usado para iludir uma pessoa”.
Mas facilidade que também pode ser uma faca de dois gumes nas mãos de um farsante, como demonstrou a americana Susan Gerbic, cofundadora dos Monterey County Skeptics e uma autodeclarada “junkie” de ceticismo. Em 2019, ela relatou em artigo publicado aqui na Revista Questão de Ciência como, junto com colegas, montou uma operação para desmascarar um médium, na qual usaram perfis falsos no Facebook.
"Mesmo no meio do charlatanismo, a leitura quente não pode ser usada de forma inadvertida”, comenta Rafa. “É possível imaginar alguém justificando dizendo que minutos antes teve contato com uma pessoa e não pode deixar de ser influenciado pelas ‘visões’ que teve ali. Mas buscar no Facebook o nome de uma pessoa que marcou uma sessão espírita e vasculhar toda sua vida para depois, de uma forma ou outra, usar estas informações é uma picaretagem, coisa de charlatão, nada mais que isso”.
Preparada a audiência, chega a hora da leitura fria em si. Entre as técnicas usadas nesta etapa estão as que ficaram conhecidas como “declarações de Barnum” (homenagem ao dono de circo e megaempresário do entretenimento americano do século 19 P.T. Barnum - 1810/1891), compreendendo desde frases vagas como “você pode ser muito exigente consigo mesmo” ou “você enfrenta dificuldades nos seus relacionamentos”, muito ouvidas em uma “consulta” de astrologia – quem nunca se cobrou ou arrependeu de algumas atitudes e decisões, e que relacionamento não enfrenta percalços? – a “chutes” como “alguém aqui perdeu uma pessoa muito querida cujo nome começa com a letra M” ditos por um suposto “vidente” ou médium numa exibição pública de seus “dons”.
Tirando vantagem de fenômenos psicológicos como o chamado “efeito Forer” – descrito em 1948 pelo psicólogo americano Bertram R. Forer (1914/2000) –, vieses de confirmação e cooperação e necessidade de autoafirmação, este tipo de declaração induz um processo de validação subjetiva na mente do receptor, no qual eventos ou fatores não relacionados, ou mesmo inexistentes, são vistos como interligados: “sou muito autocrítico porque sou virginiano”, ou “ele só pode estar falando da minha tia Maria, que faleceu recentemente…”. E se por um muito pouco provável acaso ninguém na plateia tiver perdido uma pessoa próxima com a letra M, não tem problema. Ela rapidamente vira C, ou F, ou D, pois o suposto médium já tinha avisado que a comunicação com os espíritos pode ser “nebulosa” e, para funcionar a contento, precisaria da “colaboração” dos presentes.
"Isso permite ao médium fazer afirmações que parecem muito específicas mesmo numa leitura fria”, diz Rafa. “As pessoas só lembram dos poucos acertos, e não dos muitos erros. É como uma ilusão de ótica. O processo se desenvolve de coisas que partem de nós. É do ser humano”.
Facilidades
"Privilégio” muitas vezes negado aos mentalistas em seus shows, ressalta seu colega Beto:
"Se começo a errar muito na leitura fria, acabou o show, perco o público, levo tomatada. Já quando uma pessoa está indo para uma sessão espírita ou numa situação como esta, existe a confiança como a de quem vai ao médico. Ela quer acreditar. O esforço que o médium tem que fazer para vender sua ilusão é muito menor do que um mentalista ou mágico. Por isso, não podemos colocar na conta da ingenuidade quem acredita neste tipo de fenômeno. Num show de mágica, a pessoa vai esperando ser iludida, o contrato social com o mágico é ‘quero descobrir como ele faz o truque’. Já com o médium, a atitude é de ‘quero que ele esteja certo’. Então, o mesmo fenômeno vai ser visto com expectativas diferentes e com explicações diferentes”.
Diante disso, muitos médiuns farsantes nem precisam exatamente treinar e melhorar na aplicação das técnicas de leitura fria, frisa Juan.
"Os mágicos desenvolveram e evoluíram os métodos do mentalismo, mas os videntes não precisam se preocupar com isso, com refinar seu ato”, conta. “As pessoas já vão dispostas a acreditar. Se num espetáculo temos que brigar muito para criar esta atmosfera, o médium já vai com esta parte ganha. Ele não precisa nem ser muito bom. As pessoas já compraram a ideia antes, então é muito mais fácil para ele passar a experiência como verdadeira”.
Também por isso os mágicos e mentalistas fazem questão de frisar que embora médiuns e videntes façam uso de técnicas do ilusionismo, nem sempre o fazem conscientemente, com eles próprios acreditando em seus “dons”.
"Alguns deles vão se desenvolvendo de maneira meio intuitiva mesmo, de falar coisas e os outros concordam, e vão construindo em cima. Fazem a leitura fria de uma forma muito natural”, diz Beto. “E alguns até acreditam que estão fazendo mesmo algo místico. E isso pode ser muito complicado. Ele está lá, acredita no que está fazendo, a outra pessoa que está lá sentada ali na frente dele quer que aquilo funcione, então vai dar um feedback positivo, e fecha um ‘looping’ de charlatanismo, todo mundo ali acredita que aquilo é real”.
Alejandro concorda:
"Tem gente que não age de má-fé, não são só golpistas. Estas pessoas podem estar fazendo tudo inseridos no contexto de uma religião, sob condições e trocas específicas”.
Diante disso, reforça Zangari, é preciso distinguir mágicos e ilusionistas de farsantes e exploradores.
"Fraudadores não são mágicos, são charlatães”, afirma. “O mágico não esconde que quer te enganar e propõe um desafio, uma experiência do impossível, uma quebra da expectativa de como as coisas funcionam. É um processo lícito de relação interpessoal. Já o charlatão engana as pessoas querendo se aproveitar delas. As técnicas podem ser as mesmas, mas os objetivos são muito diferentes”.
Ou, como resume Juan, da dupla Los Charlatanes:
"O objetivo do mágico não é enganar ninguém. É entreter, divertir criando ilusões. E a força do mentalismo reside justamente no fato de ter uma base real. Somos todos ‘mágicos’. É uma questão de treino, ou de dom”.
Brigas na mídia e na Justiça
O incômodo com a confusão entre o ilusionismo como entretenimento e a farsa como exploração alimenta a disposição de muitos mágicos em desmascarar alegações de fenômenos sobrenaturais. E assim como acontece em seu meio, a exposição dos truques e estratégias usados frequentemente desencadeia reações violentas dos atingidos. No caso de médiuns que se creem legítimos, eles e seus seguidores podem reclamar de perseguição religiosa e preconceito para desmerecer os ataques e continuar a professar sua fé.
“Ainda que fraudada, a experiência religiosa produz o efeito psicológico de dar respostas para algo que não temos condições de responder racionalmente. Perguntas existenciais fundamentais. De certa forma, por trás de toda religião há uma espécie de autoengano”, comenta Zangari.
Algumas vezes, porém, a questão pode acabar na Justiça. Nos anos 1990, Uri Geller, por exemplo, arrastou Randi em uma série de processos judiciais, dos quais Geller sempre saiu derrotado. Randi foi um dos fundadores, na década de 1970, do Comitê para Investigação Científica de Alegações do Paranormal (CSICOP), com nomes da arte e da ciência como o escritor Isaac Asimov e o astrofísico e divulgador da ciência americano Carl Sagan, e que também foi alvo da ação de Uri Geller. Hoje Committee for Skeptical Inquiry (CSI), ele tem entre seus integrantes Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão Ciência (IQC), que publica esta revista.
Problema que enfrenta agora o mágico e youtuber brasileiro Felipe Barbieri. Recentemente, Barbieri fez uma live em seu canal no site analisando a participação do também youtuber e autointitulado “terapeuta holístico e clarividente” Rodrigo Bonsaver no programa PodPah, transmitido neste mesmo site de vídeos. Dono do canal “Spooky Houses Casas Assombradas”, ainda no YouTube, Bonsaver, que se refere a si mesmo como “Tio Spooky”, tem uma loja online onde oferece serviços como “limpeza” de casas e tratamento de pessoas para livrá-las do que chama de “obsessores” pelo “valor simbólico” de R$ 100 cada “sessão”.
No caso da limpeza de casas, o trabalho ainda vem com a promessa de uma “barreira de proteção espiritual” que evita que “novas energias ruins” entrem no local por cerca de 30 dias.
Difícil, porém, saber a partir de quando contar esta “garantia”, já que “tanto a sessão de tratamento como limpeza de casa são realizadas apenas à distância” e o contratante só vai tomar conhecimento de que elas aconteceram após receber um e-mail. Não que isto pareça ser um problema para os prováveis clientes dos serviços. Na consulta feita para a apuração deste artigo, a lista de espera informada para as supostas sessões alcançava sete meses.
Em sua live, Barbieri apontou as estratégias de ilusionismo usadas por Bonsaver no PodPah e fez comentários sobre a atuação profissional do dito “terapeuta holístico”, alertando para outro vídeo no canal Spooky Houses em que ele dizia poder curar diabetes. Barbieri classificou a alegação como “charlatanismo”, o que levou Bonsaver a ingressar na Justiça com ação cível contra o mágico pedindo R$ 44 mil de indenização por danos morais, e a retirada do ar do vídeo com a análise de sua participação no PodPah, tendo sido liminarmente atendido nesta reivindicação.
"Ele alega estar sofrendo perseguição religiosa, mas quem é vítima de perseguição sou eu, simplesmente por apresentar um contraponto ao trabalho dele com técnicas típicas de charlatões, não só na leitura fria que usa, mas com este tipo de coação que faz no âmbito legal”, protesta Barbieri.
Segundo o mágico, a intenção de sua live era abrir um debate sobre o assunto, já que em todas as participações que viu de Bonsaver em outros programas no YouTube, seus “feitos” nunca eram contestados.
"Não é um tema normal no meu canal, mas eu via vários youtubers gigantes dando palco para ele e ninguém fazia um contraponto. E se tem uma classe quase impossível de enganar é a dos mágicos. A gente conhece muitas das técnicas usadas por estas pessoas, e como o mágico com mais seguidores no YouTube no Brasil e quinto no mundo, me senti no direito e no dever de expôr o que estava acontecendo ali, e depois que cada um tirasse suas conclusões”.
A ideia, acrescenta, nunca foi fazer um ataque pessoal ou nada do tipo. "O debate não só é legal como saudável para a democracia e o desenvolvimento de ideias”, diz.
“Queria muito que ele me refutasse. Seria ótimo, porque até eu poderia repensar minhas ideias. Seria uma das coisas mais revolucionárias de todos os tempos se ele provasse o que fala. O mundo inteiro, 7 bilhões de pessoas, teriam que ovacionar este cara. Mas ele escolheu simplesmente ir para a Justiça, e aí fica difícil um diálogo. Judicializar esta questão é até uma afronta diante de um sistema judicial saturado que tem que ficar resolvendo briguinha entre youtubers”.
Barbieri, no entanto, reconhece ter se arriscado ao chamar Bonsaver de “charlatão”.
"Chamar de charlatanismo o que ele faz foi talvez meu maior erro, onde eu mais me arrisquei, pois não posso provar isso judicialmente”, considera. “Mas, para mim, só o vídeo em que ele diz que pode curar diabetes em poucas sessões já seria o suficiente para encerrar o processo, pois prova que ele ao menos faz a promoção do curanderismo”.
Ainda de acordo com o mágico, após sua live, recebeu diversas mensagens de pessoas que se trataram ou contrataram os serviços de Bonsaver e perceberam que “era tudo balela”, pedindo para que desmascarasse o suposto “clarividente”.
"Minha dúvida é se ele faz isso conscientemente ou inconscientemente”, diz. “O que posso afirmar é que todo discurso dele bate com a leitura fria. Mas se ele sabe que está fazendo uso destas técnicas não posso dizer. Tem gente que pode acreditar mesmo ter uma capacidade especial, vai desenvolvendo inconscientemente este tipo de habilidade e no fim começa a achar que tem poderes”.
Quanto ao processo, Barbieri conta que sua defesa deverá focar na liberdade de expressão.
"Se tem pastor que diz que cura COVID-19 em três orações, um cientista tem o direito de fazer um contraponto, e é a mesma coisa comigo e o Spooky, não configura cerceamento de atividade religiosa”, avalia. “Não era assunto nem para eu estar envolvido, era para ser entre Rodrigo Bonsaver e o MP (Ministério Público)”.
De fato, Bonsaver é alvo de inquérito policial por suposto crime de exercício ilegal da medicina, que corre sob sigilo na Justiça paulista.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência