A vulnerabilidade a notícias falsas na ponta dos dedos

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27 mai 2025
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O quanto você se imagina capaz de identificar notícias falsas? Será que sua capacidade de fazer isso é tão boa quanto pensa? Em um mundo de sobrecarga de informação - e desinformação -, discernir o que é verdade do que é mentira é uma habilidade essencial, especialmente no ambiente digital. E agora é possível começar a ter uma resposta a estas perguntas, ainda que de forma limitada.

Depois de anos de desenvolvimento, um grupo internacional de pesquisadores validou um teste psicométrico que permite medir esta capacidade. Disponível online, o Misinformation Susceptibility Test ("Teste de Suscetibilidade à Desinformação", ou MIST na sigla em inglês) pode ser acessado - e respondido - por qualquer pessoa com boa compreensão da língua inglesa, que também pode optar por permitir que seus dados sejam usados anonimamente em estudos sobre o tema.

E foi justamente usando uma leva inicial de respostas ao teste que integrantes do grupo traçaram o primeiro perfil global da vulnerabilidade a notícias falsas. A análise, publicada recentemente no periódico Personality and Individual Differences, levou em conta a participação de mais de 66 mil pessoas de 24 países que fizeram pelo menos uma das duas versões do MIST disponíveis no site entre seu lançamento, em 29 de junho de 2023, até 10 de julho de 2024.

O resultado trouxe surpresas. Apesar de confirmar noções comuns como de que indivíduos com nível educacional mais baixo e posicionamento político mais "conservador" ou "de direita" são mais propensos a acreditar em notícias falsas, o levantamento também revelou que os integrantes da chamada "Geração Z", nascidos entre 1997 e 2012, foram os que tiveram pior desempenho em diferenciar as manchetes mentirosas das verdadeiras, e tinham menor confiança nesta sua capacidade. Isto contraria a ideia de que um dos fatores de risco à desinformação é a falta de letramento digital, dado que esta geração é exatamente a que foi declarada a primeira verdadeira "nativa digital", nascida em um tempo em que tecnologias como a internet e smartphones já eram parte do dia a dia.

Segundo Friedrich Götz, professor de Psicologia da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC), Canadá, um dos integrantes do grupo de pesquisadores responsável pelo desenvolvimento do MIST e pela análise, atualmente no meio acadêmico esta ideia já não está mais tão patente. Ele conta que estudos de outros pesquisadores que já haviam apontado a vulnerabilidade desta geração à desinformação, usando diferentes métodos e amostras.

"Isso virou algo como um mito, um mito intuitivo, mas que em grande parte já foi derrubado", considera. "Creio que parte da explicação seja que não é porque você passa muito tempo online que você é melhor para navegar neste ambiente. Se você passa muito tempo online sem se educar, sem aprender novas habilidades, na verdade está mais vulnerável. Só porque você está mais exposto a mais notícias falsas não faz de você melhor em discernir elas de notícias verdadeiras. Exposição digital não é o mesmo que letramento digital".

Confiável, mas com limitações

Desenvolver um teste como o MIST, no entanto, não foi fácil. Embora pareça simples, com textos curtos e respostas restritas a se as afirmações apresentadas são verdadeiras ou falsas, sua criação demandou um trabalho extenso de pesquisa para inclusão das manchetes reais e elaboração das mentirosas, assim como a validação em diferentes populações.

"Tentamos ter as notícias reais mais neutras possíveis, enquanto as manchetes falsas foram geradas por algoritmos de inteligência artificial que alimentamos com escalas existentes de crenças em teorias da conspiração", conta Götz. "De modo geral, o teste constitui uma ferramenta confiável para captar a suscetibilidade à desinformação que circula na sociedade hoje".

E este é um ponto importante, ressalva o pesquisador. Embora tenha se mostrado confiável, o MIST eventualmente terá que ser "atualizado", exigindo novas rodadas de pesquisa de manchetes reais e geração de falsas, dada a natureza mutável da desinformação.

"A suscetibilidade à desinformação é extraordinariamente difícil de medir também porque é um alvo móvel", explica. "A desinformação que povoa a internet ou a sociedade como um todo, atualmente, não vai ser a mesma com que estaremos lidando no futuro. Este é um ambiente que se move em um ritmo muito rápido. Então, em algum ponto, estas manchetes vão ficar defasadas. Em um mundo ideal, vamos recriar o teste continuamente".

Uma limitação do MIST no formato atual diz respeito à linguagem e à cultura. Assim, apesar do caráter global do recente perfil de suscetibilidade à desinformação desenhado, ele ainda é muito baseado em dados de participantes dos chamados "países WEIRD" (sigla em inglês para "ocidental, educado, industrializado, rico e democrático") e anglófonos, notadamente EUA (cerca de 35 mil dos respondentes), Reino Unido (9 mil), Canadá (3,5 mil) e Austrália (2,6 mil). Por isso, uma das ambições do grupo é ver o teste adaptado para outras línguas e culturas, trabalho que estão abertos a colaborar com pesquisadores de outros países, já tendo sido procurados por interessados na Finlândia, México, Turquia, Alemanha e França, que Götz tenha conhecimento.

"Estamos tentando trabalhar com o máximo de pessoas que conseguirmos, compartilhando nossa abordagem e nossos insights de forma que sejam capazes de fazer estas adaptações", diz. "Não nos vemos como guardiões, mas como disseminadores do conhecimento que adquirimos durante o processo de desenvolvimento do MIST, para que tenhamos mais e mais testes compreensivos de suscetibilidade à desinformação. Nossa esperança é de um esforço coletivo que adapte o teste para ser culturalmente sensível em outros idiomas, porque é preciso mais do que simplesmente traduzir as questões".

Embora não saiba de algum contato de pesquisadores brasileiros para adaptação do teste, Götz espera que isso acabe acontecendo, até porque um dos responsáveis pelo desenvolvimento do MIST é Hudson Golino, egresso da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) hoje na Universidade da Virgínia, EUA, onde estuda métodos quantitativos, psicometria e aprendizado de máquina aplicados nos campos de psicologia, saúde e educação. Ainda assim, ele espera futuramente publicar um novo estudo refinando o perfil da suscetibilidade a notícias falsas com uma maior diversidade geográfica de respondentes à versão atual em inglês, inclusive de brasileiros, à medida que sua disponibilidade online se torna mais conhecida via boca a boca e matérias na mídia, e a curiosidade pessoal atraia o público.

"Temos este viés nas ciências sociais em geral e na psicologia de focar na população dos países WEIRD, enquanto regiões como a América do Sul estão geralmente sub-representadas nas nossas amostras", lamenta. "Então seria muito legal para nós ter uma onda de participantes do Brasil, porque o que fizemos até agora foi relatar apenas os resultados básicos preliminares de nossa pesquisa. Isto permitiria ampliar o escopo de nossos estudos, mesmo com a desvantagem de o teste estar disponível apenas em inglês. Isto tende a criar um viés de auto-seleção em países onde o inglês não é a língua oficial, de pessoas cosmopolitas e com mais anos de educação. Mas, neste ponto que estamos nas pesquisas sobre desinformação e o impacto que ela está tendo no mundo, ter algum dado é melhor que não ter nada".

E o mesmo se aplica à questão geracional. Götz reconhece que o atual perfil pode ter apontado a Geração Z como mais problemática por outra manifestação de viés de seleção, já que eles e os integrantes dos chamados Millennials (nascidos entre 1981 e 1996) somam mais da metade da amostra (cerca de 12,2 mil e 26,8 mil dos participantes, respectivamente), frente a 18 mil da Geração X (1965-1980) e 9,1 mil "Baby Boomers" (1946-1964).

"Em um mundo perfeito, deveríamos ter uma amostra equilibrada em termos geracionais, mas na realidade o que nós e muitos cientistas de diversas áreas ao redor do mundo estamos enfrentando são cortes orçamentários", lamenta. "Esta é uma das razões porque estamos dependendo do boca a boca e do engajamento com um site atraente para coletar os dados, já que não temos recursos para recrutar 66 mil pessoas. Podemos conseguir amostras menores que são mais representativas, e nos estudos de validação em que introduzimos o teste fizemos isso para ter certeza que ele funcionava com um espectro variado e representativo das populações dos EUA e Reino Unido. Mas isso já foi extremamente caro, e estamos falando de algo entre mil e 2 mil pessoas. No momento precisamos fazer uma escolha entre ter amostras realmente grandes ou amostras que podemos ter mais controle, e para este estudo específico preferimos ter um retrato mais amplo da suscetibilidade à desinformação".

Neste sentido, outra limitação do MIST como desenhado hoje é ser composto por com um conjunto fixo de manchetes, metade reais e metade falsas, em todas as versões (com 20, 16 ou 8 questões), o que faz com que só deva ser aplicado uma vez por sujeito, e dificulta que seja usado para medir o impacto de intervenções como a chamada "inoculação psicológica" ou “prebunking”, uma espécie de "vacina contra desinformação" que pretende ajudar o público a reconhecer e se proteger de tentativas de manipulação. Götz explica que isso foi necessário devido aos (caros) estudos de validação do teste, garantindo que ele sempre tenha o mesmo nível de dificuldade em diferentes amostras populacionais e cenários e os resultados sejam mais facilmente comparáveis.

"De fato só faz sentido analisar a primeira vez que a pessoa faz o teste", reconhece o pesquisador. "Mas uma coisa que vimos com outras mensurações é que a pessoa talvez possa fazer o teste agora de depois de novo em um ano. Daqui a um ano a pessoa provavelmente esqueceu os itens específicos e aí não vai ter um efeito da memória afetando as respostas. Mas o espaço entre estes dois pontos de tempo não pode ser curto de forma que você tenha um efeito de treinamento ou prática que gere um viés nos resultados".

Ceticismo exagerado

Outra escolha do grupo, desta vez no estudo recém-publicado no Personality and Individual Differences, foi focar a análise no perfil da suscetibilidade à desinformação, isto é, a capacidade dos participantes de identificar as manchetes de notícias falsas, sem aprofundar a discussão em torno do outro lado da questão: apontar como mentirosas as manchetes verdadeiras, revelando um ceticismo exagerado, que também é medido pelo MIST. Este cinismo descabido, que vê tudo como uma grande mentira, também pode ser problemático e uma consequência indesejada de intervenções que buscam combater a desinformação como as iniciativas de inoculação psicológica que colegas de Götz como Jon Roozenbeek e Sander van der Linden, da Universidade de Cambridge, Reino Unido, desenvolvem.

O pesquisador conta que para ter um bom resultado no teste a pessoa tem que identificar corretamente as notícias verdadeiras e as falsas, no que chamam tecnicamente de "discernimento da veracidade", e é por isso que o teste é precisamente equilibrado com metade das manchetes verdadeiras e metade falsas.

"A ideia é que você não tem uma boa pontuação se não acredita em nada, porque assim não é vítima das notícias falsas, mas também perde muitas informações reais valiosas", pondera. "Não relatamos isso no artigo atual porque é um estudo breve. Mas no artigo original em introduzimos o MIST também apresentamos uma estrutura de interpretação com a qual se pode analisar não só a pontuação geral, mas subresultados. E um deles é o ceticismo, a probabilidade da pessoa rejeitar qualquer informação que venha para ela, graduada de forma que pesquisadores interessados no aumento do ceticismo possam usar o teste e ter informações valiosas para seus estudos".

Para Götz, agora que há uma crescente consciência sobre o fenômeno da desinformação e como ela é um problema pervasivo em nossa sociedade, é cada vez mais importante buscar maneiras de lidar com isso.

"Penso que é como um processo em que aumentamos a conscientização, encontramos métodos para medir a desinformação e caracterizá-la, expandir estes métodos multiculturalmente e então criar intervenções concretas para ajudar as pessoas a melhorar seu discernimento", defende. "Quando falamos sobre o teste, é comum a mídia se focar nas diferenças entre os grupos, mas também é importante ver o que eles têm em comum. A maioria das pessoas acertou a classificação de 14 ou mais das 20 manchetes. Isso significa que nem todo mundo é terrível em identificar notícias falsas. Por outro lado, quase ninguém também acertou tudo, o que significa que todos somos vulneráveis à desinformação de um jeito ou de outro".

Götz ressalta que estas diferenças, embora pareçam pequenas, podem ter efeitos enormes no dia a dia.

"Se eu e você somos ambos bombardeados com 100 manchetes por dia, eu acerto 80 e você 85, ao longo de um ano já teremos uma diferença de mais de 1,5 mil notícias que eu não identifiquei corretamente, e aí os efeitos da desinformação podem importar muito ", considera. "A desinformação é um problema cumulativo. Ela está em todo lugar e veio para ficar, e isso é o que precisamos lembrar quando tentamos dar um sentido a nossos achados".

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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