Em busca de vacinas contra a infodemia

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29 jun 2021
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Pacman

Enquanto o mundo avança na vacinação numa tentativa de conter a pandemia de COVID-19, pesquisadores buscam estratégias contra outro mal cuja disseminação ganhou força à medida que o novo coronavírus se espalhava pelo planeta: a desinformação. E entre as opções em estudo para combater a chamada “infodemia” está a “inoculação psicológica”.

Tomando emprestado os princípios de suas análogas biológicas, estas “vacinas da verdade” consistem basicamente na exposição de indivíduos a argumentos persuasivos enfraquecidos e controlados, de forma a capacitar o receptor a identificar e proteger-se da desinformação. A ideia é que, tal qual acontece em seus corpos no caso do SARS-CoV-2, as pessoas desenvolvam “anticorpos mentais” que as ajudem a reconhecer as técnicas usadas para tentar manipular seu comportamento.

E também assim como suas similares contra a COVID-19, as vacinas para desinformação podem usar diferentes plataformas e tecnologias, com públicos e eficácia variados, características que apenas começam a ser entendidas e exploradas. Uma delas é a chamada “gamificação”, na qual o processo de aprendizado sobre os métodos da desinformação e seu uso se dá na forma de um jogo. Exemplo recente disso é o “Go Viral!”, jogo desenvolvido por pesquisadores da Universidade de Cambridge, Reino Unido, e disponível em dez línguas, entre elas português brasileiro. O jogo que tem como alvo justamente a infodemia em torno da COVID-19 e está no cerne de dois experimentos relatados no artigo “Towards psychological herd immunity: Cross-cultural evidence for two prebunking interventions against COVID-19 misinformation”, publicado recentemente no periódico científico Big Data & Society.

 

Da teoria à prática

Um dos problemas da inoculação psicológica é que sua analogia com a biologia é muito mais ilustrativa do que prática. Originária dos estudos sobre persuasão e atitudes do americano William McGuire na psicologia social nos anos 1960, a estratégia geralmente envolve dois elementos: um alerta ao indivíduo de que será exposto a informações que desafiam suas crenças ou atitudes, algo que desperte uma sensação de ameaça e estimule sua vontade de defender suas ações e/ou posições; e a construção de uma refutação preventiva a estes argumentos persuasivos, o chamado prebunk (do inglês preemptive debunking).

Mas ativar estas reações cognitivas tem se mostrado uma tarefa muito mais complexa do que provocar respostas do sistema imune a vírus e bactérias. Tradicionalmente, as intervenções de inoculação psicológica estavam limitadas a abordagens passivas como a leitura de textos, evoluindo posteriormente para incluir também infográficos ou assistir a vídeos curtos. Com o avanço tecnológico e a ascensão das redes sociais, porém, surgiram oportunidades de experimentar intervenções mais ativas, como jogos web, quizzes e outras formas de interação que têm se mostrado mais eficazes em promover resistência à desinformação.

Nos experimentos relatados pelos pesquisadores da Universidade de Cambridge no Big Data & Society, por exemplo, o “Go Viral!” teve um impacto maior e mais duradouro na capacidade e confiança dos indivíduos em identificar desinformação sobre a COVID-19, bem como reduzir seu impulso em compartilhar este tipo de conteúdo, do que a leitura de infográficos produzidos pela Unesco para a campanha #ThinkBeforeSharing. Ambas intervenções também mostraram efeitos benéficos nas atitudes dos indivíduos frente a conteúdos manipulativos, quando comparadas a um treino controle – jogar Tetris por cinco minutos -, reforçando a utilidade da inoculação psicológica como estratégia de combate à infodemia.

“Em dois estudos com grandes amostras, fornecemos fortes evidências multiculturais da eficácia de duas intervenções curtas e facilmente escaláveis de prebunking na redução da suscetibilidade á desinformação sobre a COVID-19”, concluem os autores.

“O ‘Go Viral!’, um jogo grátis de navegador de cinco minutos, tem impacto positivo na capacidade das pessoas de identificar desinformação sobre o vírus por ao menos uma semana após jogarem, e reduz significativamente a intenção de compartilhar a desinformação com outros. Argumentamos que o prebunking constitui um passo crucial na mitigação da desinformação sobre a pandemia", escrevem, acrescentando que "nossos achados se somam à crescente noção de que intervenções baseadas na ciência comportamental são uma ferramenta crucial para mitigar a disseminação da desinformação”.

 

Limitações

Resultados que animaram Jon Roozenbeek, pesquisador de pós-doutorado do Departamento de Psicologia da Escola de Ciências Biológicas da Universidade de Cambridge e um dos criadores do “Go Viral!”.

“Jogos como o ‘Go Viral!’ são uma opção viável e eficaz no combate à desinformação”, considera. “Mas estes jogos também têm suas limitações. Eles têm apelo principalmente para pessoas que gostam de jogos na web, não são para todo mundo. Por isso é importante termos alternativas para a inoculação. Outra que desenvolvemos são vídeos curtos. Eles também são muito bons e facilmente escaláveis, e as pessoas mais assistem a vídeos na internet do que jogam”.

Diante disso, variedade e criatividade são fundamentais para aumentar a atratividade das intervenções. No “Go Viral!”, por exemplo, o jogador encarna uma espécie de “vilão” cujo objetivo é aumentar seu número de seguidores e prestígio nas redes sociais espalhando desinformação, e no caminho aprende sobre três técnicas comuns para tanto: apelo emocional, uso de falsos especialistas e conspiracionismo.

“Isto atrai um certo tipo de pessoa. Já um jogo em que você encarne um detetive ou jornalista querendo expor a desinformação vai atrair um tipo diferente de público”, exemplifica Roozenbeek. “É difícil fazer uma distinção do que leva uma pessoa aderir a uma intervenção e não a outra”. 

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Outra questão essencial para o sucesso da estratégia é o tempo necessário para cumprir a intervenção. Segundo Roozenbeek, apesar de poder ser completado em cinco minutos ou menos, dados de suas pesquisas apontam que cerca da metade das pessoas que começa a jogar não termina o “Go Viral!”.

“A questão da eficiência da inoculação psicológica como estratégia contra a desinformação em parte tem a ver com o quanto de tempo as pessoas estão dispostas a investir nisso”, frisa. “Por natureza, as intervenções ativas são mais longas e mais difíceis de desenvolver. E como demoram mais para terminar, mais pessoas vão desistir delas no meio do caminho”.

Outro fator que parece influenciar na eficiência das intervenções de inoculação psicológica é sua especificidade. Antes de “Go Viral!”, Roozenbeek e colegas do Laboratório de Tomadas de Decisão Sociais da Universidade de Cambridge, liderado por Sander van der Linden, desenvolveram outros jogos abordando as técnicas de desinformação e sua disseminação com exemplos mais genéricos. Em “Get Bad News”, por exemplo, o jogador é convidado a se tornar um megaempresário das notícias falsas na internet usando robôs, mentindo e criando manchetes escandalosas sobre assuntos que vão de mudanças climáticas à investigação de uma queda de avião para angariar seguidores e influência, percurso no qual aprende a reconhecer um conjunto de seis técnicas de desinformação, como desacreditar críticos ou alimentar a polarização.

“Há indicações de que quem joga ‘Bad News’ identifica melhor notícias falsas, inclusive sobre a COVID-19, mas não tão bem quanto quem jogou o ‘Go Viral!’ reconhece especificamente desinformação sobre a doença”, conta Roozenbeek. “Achamos que isso se dá porque em ‘Bad News’ a temática, os assuntos usados para o aprendizado das diferentes táticas da desinformação, está um pouco mais distante da COVID-19. E também porque a própria doença é um assunto do momento, uma preocupação de agora. Assim, temos que ter um equilíbrio entre ser específico e geral. E é por isso também que as intervenções de inoculação psicológica que trabalhamos focam mais em treinar as pessoas sobre as técnicas usadas para criar e espalhar a desinformação do que na refutação de uma notícia falsa em particular”.

 

Tratamento

Outro desafio da inoculação psicológica é que enquanto as vacinas biológicas em geral são uma estratégia profilática, isto é, administradas antes da exposição aos patógenos para prevenir uma doença ou seu agravamento, as “vacinas da verdade” chegam num momento em que a desinformação já está disseminada e é uma verdadeira indústria que movimenta milhões de dólares anualmente, como mostra relatório do Programa sobre Democracia e Tecnologia da Universidade de Oxford, também no Reino Unido, publicado no início deste ano.

“Hoje é difícil encontrar alguém que não tenha sido exposto a algum tipo de desinformação, seja sobre COVID-19, vacinas ou a ida do homem à Lua”, lamenta Roozenbeek.

Desta forma, a inoculação psicológica contra a desinformação deve ser vista mais como um tratamento do que uma prevenção. Neste sentido, também seria desejável que a estratégia ajudasse a reduzir sua transmissão, isto é, o compartilhamento destes conteúdos, algo que os pesquisadores do laboratório da Universidade de Cambridge apenas começam a analisar em seus experimentos, com um estudo inicial cujos resultados esperam publicar no mais tardar no ano que vem.

“Sabemos que a exposição à desinformação e seu compartilhamento não é a mesma coisa. A exposição à desinformação supera o compartilhamento em 10 vezes ou até mais, podendo ir a um fator de 100. Isto é, dez ou até cem vezes mais pessoas veem uma peça de desinformação do que a compartilham”, destaca. “O objetivo primário da inoculação psicológica é reduzir os efeitos danosos da exposição à desinformação sobre os indivíduos, assegurar que as pessoas que veem desinformação não caiam no engano de acreditar nela. Já um efeito secundário seria fazer com que as pessoas que normalmente compartilhariam estes conteúdos falsos não o façam. Isto seria ótimo, e é algo que também queremos. Temos algumas indicações de que isso pode acontecer e atualmente estamos conduzindo um experimento para ver se é o caso”.

Roozembeek ressalta, porém, que montar este tipo de estudo constitui um desafio em si. “Assim como acontece com muitas das vacinas contra a COVID-19, ainda não sabemos o quanto a inoculação psicológica é eficiente em interromper a transmissão da desinformação”, compara. “É muito difícil saber isso por causa das complexidades metodológicas para responder esta questão. É complicado fazer este salto do laboratório para a vida real. Precisamos saber, por exemplo, como os algoritmos das redes sociais podem influenciar no compartilhamento da desinformação e compensar isso, assim como ter maneiras de verificar se o usuário do Twitter ou de outra rede social de fato jogou o jogo ou assistiu ao vídeo da inoculação por inteiro. Depois, ainda temos que analisar seu comportamento em geral nas redes sociais antes e depois da inoculação para ver se seu compartilhamento de desinformação caiu”.

Outro fator de confusão nesta investigação são os vieses cognitivos. Sabe-se, por exemplo, que as pessoas são mais inclinadas a compartilhar conteúdos que ecoam suas crenças e visões de mundo, fenômeno também explorado pelos disseminadores de desinformação. Para combater isso, uma possibilidade seriam intervenções ainda mais precoces, como o ensino do pensamento crítico nas escolas, mas mesmo assim isto também teria uma utilidade limitada, aponta Roozembeek.

“É útil, sem dúvida, mas um problema nesta abordagem é que a desinformação e os métodos como ela é criada e disseminada evoluem e mudam com o tempo”, pondera. “Mesmo as habilidades para lidar com o mundo digital hoje são muito diferentes das que usávamos há apenas cinco anos. Não é como aprender algo que vai valer por toda sua vida, como matemática. Ensinar pensamento crítico não é tão fácil assim, infelizmente. É uma habilidade que não apenas é difícil de aprender como precisa ser constantemente atualizada”.

Às críticas de que ao reproduzir discursos negacionistas e conspiracionistas, mesmo que de maneira ilustrativa, jogos como o “Go Viral!” podem ajudar a disseminar a desinformação e servir como um “curso rápido” para criar e espalhar este tipo de conteúdo, Roozembeek responde que já foi demonstrado que este tipo de fenômeno não acontece com outros videogames, e o mesmo deve valer para os de inoculação psicológica contra a desinformação.

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“Acho que se fosse algo que poderia acontecer, já teríamos observado isso até agora”, diz. “Fizemos extensas pesquisas sobre como as pessoas jogam videogames antes de criar os nossos jogos e já vimos este tipo de preocupação, de maneira ainda mais grave, com jogos que glorificam a violência, como Grand Theft Auto (GTA). Este é um jogo em que você é um bandido, um gangster, atira em pessoas, comete crimes etc. Foram feitas muitas pesquisas sobre se pessoas que jogam GTA de fato cometem crimes, ou são mais agressivas, ou algo assim, e a resposta foi não. Esta ligação não é real, é apenas imaginária, e as pessoas em geral parecem separar bem fato e ficção, realidade de imaginação neste contexto. E por isso também fazemos uso do humor. Nossos jogos não são sisudos, brincamos com o que estamos fazendo e as pessoas entendem a brincadeira”.

Para Roozembeek, diante do cenário da infodemia e como ela tem efeitos nefastos na sociedade, em especial nestes tempos de pandemia de uma doença potencialmente letal, a inoculação psicológica surge como mais uma importante alternativa para combater a onda de desinformação e fake news que se espalha pelo planeta.

“Usando todos tipos de estratégias junto, textos, vídeos, jogos, temos a esperança de atingir mais pessoas. E quanto mais pessoas alcançarmos, mais se tornarão psicologicamente imunes à desinformação, por assim dizer. Não é uma intervenção de inoculação psicológica que será a solução para a pandemia de desinformação, mas um conjunto delas, com diferentes níveis de aceitação e eficácia cada uma”, considera.

“Também acho importante que nós, como psicólogos, sejamos realistas sobre o que estas intervenções de inoculação psicológica podem fazer. Elas têm potencial, mas habilidades transferíveis são muito difíceis de ensinar, e é ainda mais difícil fazer isso em um jogo de navegador de alguns poucos minutos. Não acho que elas sejam juma solução mágica, mas são eficazes em um determinado espaço, e por isso precisamos pensar no que mais podemos fazer para combater a desinformação e a infodemia”.

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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