Evidências de eficácia das vacinas contra a desinformação

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20 abr 2023
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Conspiração

 

No universo digital, a desinformação virou uma doença de proporções pandêmicas. Uma verdadeira infodemia que transborda das redes sociais e aplicativos de mensagens para o mundo físico com consequências nefastas, seja alimentando um movimento antivacinas que abre caminho para a volta de doenças letais como o sarampo e a poliomielite, minando os esforços da luta contra as mudanças climáticas ou ameaçando a própria sobrevivência da democracia.

Mas, assim como aconteceu com a COVID-19, a ciência se mobiliza em busca de formas para combater este mal. E uma das estratégias que têm se mostrado mais eficientes é justamente uma que emula a vacinação, conhecida como “inoculação psicológica”. Estas “vacinas mentais” tomam emprestado os princípios de suas análogas biológicas, expondo indivíduos de maneira controlada à desinformação, na intenção de que aprendam a identificar táticas de manipulação do discurso para não cair em armadilhas. Algo como uma “imunização” contra a mentira.

E dois artigos científicos recentes trazem mais evidências da eficácia deste tipo de estratégia. No primeiro, publicado na revista Scientific Reports, pesquisadores britânicos relatam experimento no qual usaram uma simulação de rede social para avaliar o impacto de duas intervenções - inoculação psicológica e alertas de conteúdo falso - no comportamento frente à desinformação de voluntários, observando uma clara vantagem da inoculação. Já o segundo, publicado no periódico PLOS ONE, traz uma revisão sistemática da literatura científica para analisar e comparar diferentes intervenções desenhadas para reduzir a crença em teorias da conspiração, e verificou que foram as que envolviam inoculação psicológica as que tiveram o maior efeito neste sentido.

 

De olho no engajamento

Curtidas, reações e compartilhamentos. Ajustados para premiar engajamento, os algoritmos das redes sociais são frequentemente explorados para espalhar desinformação. E foi de olho nisso que cientistas liderados por Robert McPhedran, pesquisador da divisão de comportamento da empresa de consultoria Kantor Public, montaram o experimento do primeiro estudo.

Em uma plataforma semelhante a uma rede social, os cerca de 2,5 mil participantes em uma amostra representativa da população britânica em termos demográficos (idade, sexo e etnia) foram apresentados a 30 publicações abrangendo temas de saúde, política e economia, das quais 15 eram informações legítimas e 15 contendo informações falsas ou distorcidas, todas exemplos reais colhidos na base de dados da Full Fact, uma organização independente de checagem de fatos, ou da agência de notícias Reuters, ambas sediadas no Reino Unido. Eles então podiam comentar, compartilhar e/ou denunciar as publicações, além de reagir a elas com uma variada gama de emojis.

O experimento contava com três "braços". Enquanto parte dos voluntários realizou previamente uma breve sessão de treinamento típica de intervenções de inoculação psicológica - em que foram informados de que veriam um exemplo de desinformação nas redes sociais e, após a exposição, viram refutação, com explicação sobre as táticas usadas, num método conhecido como pre-bunking -, outro grupo teve parte das publicações falsas rotuladas de maneira e em proporção similares aos alertas vistos no Facebook, com pequenas notificações de que aquela informação foi taxada como suspeita e opções entre saber porquê e ver a publicação mesmo assim. Já um último grupo serviu de controle, não passando por nenhuma intervenção antes ou durante sua navegação na simulação de rede social.

O experimento mediu três desfechos. O primário foi o engajamento positivo com as publicações, como clicar nos botões de "curtir" ou "amar" dos posts. Já os desfechos secundários foram qualquer forma de engajamento, incluindo reações de risos, tristeza ou raiva com relação ao conteúdo, e seu compartilhamento, via opção disponível na plataforma. Segundo os pesquisadores, estes desfechos foram escolhidos por emularem as maneiras como os algoritmos das redes sociais priorizam a exibição de conteúdo, em comportamentos que ajudam a determinar se a desinformação viraliza ou não nas redes sociais. Além disso, usar estes parâmetros melhor reflete o comportamento dos usuários nas redes sociais e reduz o risco do chamado "viés do experimentador", em que os participantes poderiam procurar agir como acham que seria o esperado pelos cientistas, e não com fariam naturalmente numa rede social. Por fim, a abordagem é nova, ajudando a diversificar e complementar os estudos na área.

Ainda de acordo com os cientistas, os resultados mostram que tanto a inoculação psicológica quanto a rotulagem dos conteúdos falsos reduziram o engajamento positivo com a desinformação, com a inoculação tendo um efeito maior na prevenção de engajamentos com as publicações contendo informações falsas ou distorcidas. A inoculação também foi mais efetiva na redução do compartilhamento destes conteúdos. Vantagens que se mantiveram em análise posterior que também levou em conta o chamado nível de cognição reflexiva dos voluntários, isto é, a capacidade dos indivíduos de ignorar respostas rápidas, intuitivas e incorretas a estímulos, em prol de avaliação mais detalhada das informações e/ou situações.

Estes efeitos, no entanto, não foram homogêneos, com a eficácia da inoculação variando segundo o tema e a tática usada pela desinformação. Assim, embora intervenções que destaquem as estratégias mais comuns usadas pela desinformação possam promover "imunidade" contra manipulação, novas formas de proteção serão necessárias à medida que a desinformação evolui e usa novas táticas e tecnologias, como o deep fake. Além disso, a inoculação também diminuiu o engajamento em geral com as informações legítimas, o que pode ser um obstáculo para sua adoção, com plataformas de redes sociais, tomadores de decisão e reguladores tendo que balancear os benefícios da redução na disseminação da desinformação com o também menor alcance social de informações legítimas.

 

"Cardápio" de intervenções

Diante disso, a luta contra a infodemia deverá demandar um amplo "cardápio" de estratégias. E é aí que ganha importância o segundo artigo recente. Nesta revisão sistemática, os pesquisadores liderados por Cian O’Mahony, da Escola de Psicologia Aplicada da University College Cork, Irlanda, incluíram 13 artigos abrangendo 24 estudos com a participação de mais de 7 mil pessoas que avaliaram diferentes intervenções contra o pensamento conspiratório e permitiram uma análise comparativa de 48 delas.

Estas intervenções, por sua vez, podiam ser divididas em três grandes grupos. O primeiro, inoculação informacional, tinha duas variantes principais: as que chamavam a atenção para a falta de sustentação factual das teorias da conspiração; e as que destacavam as falácias lógicas das racionalizações por trás do pensamento conspiracionista. Já o segundo grupo consistia em técnicas conhecidas como priming, em que os indivíduos realizam tarefas prévias que buscam aumentar seu senso de controle ou induzir um comportamento analítico, como ler textos com tipografias difíceis de decifrar, antes de serem expostos à desinformação. E, por fim, intervenções únicas que não se encaixavam em nenhum dos grupos anteriores, como a sinalização e rotulagem de conteúdos suspeitos, contra-argumentações e até um curso para diferenciar boas práticas científicas de pseudociências.

Segundo os pesquisadores, a revisão indica que apenas cerca da metade das intervenções analisadas induziu alterações no nível de concordância dos indivíduos com declarações conspiracionistas, incluindo as do tipo de inoculação e de priming. Além disso, apenas algumas poucas delas tiveram um efeito médio ou grande neste sentido, quase todas do grupo das inoculações. Por outro lado, algumas chegaram a ter efeito contrário ao pretendido, com um dos estudos indicando que rotular as teorias da conspiração aumentou a crença no conspiracionismo, e outro que envolveu preparar os participantes com tarefas que elevaram seu senso de controle. Felizmente, em ambos os casos os efeitos medidos foram pequenos.

"Estes achados sugerem que as intervenções mais eficazes contra o conspiracionismo são aquelas que acontecem antes de os participantes serem expostos às crenças conspiracionistas", escrevem. "Refutar preventivamente o conspiracionismo foi muito mais eficaz que contra-argumentações tradicionais feitas depois que os participantes conheceram as teorias de conspiração".

Um problema, porém, é que as intervenções envolvendo inoculação perderam muito de seu poder de combater o pensamento conspiracionista se os participantes foram alertados que se tentaria mudar suas crenças em teorias da conspiração, no que os pesquisadores chamaram de "metainoculação".

"Essencialmente, a eficácia das estratégias de inoculação pode ser usada para neutralizar seus efeitos", ressaltam.

 

Educação (ainda) é a resposta

Fora as intervenções de inoculação, a única outra que teve um grande impacto na redução da crença em teorias da conspiração entre as analisadas na revisão sistemática foi a do curso sobre pseudociências. Ministrado ao longo de três meses, ele explicitamente ensinou os estudantes a diferenciar práticas científicas apropriadas daquelas usadas por pseudociências. Ao fim do semestre, os universitários que passaram por este curso mostraram menor tendência a endossar alegações de teorias da conspiração do que alunos que cursaram aulas típicas sobre métodos de pesquisa.

Este resultado reforça a noção de que a solução para a infodemia passa por melhorias na educação da população, incluindo estímulo ao pensamento crítico. Mas isso não será fácil. Além de exigir tempo e investimento, estes cursos requerem compromisso tanto de educadores quanto de participantes.

"Devemos ressaltar que os três tipos de intervenções que foram mais eficazes nesta revisão são difíceis de administrar no contexto do mundo real", concluem os pesquisadores. "Nenhuma destas intervenções será uma solução fácil para as crenças em teorias da conspiração em termos práticos. Desta forma, pesquisas futuras devem investigar se os mecanismos de intervenções mais alongadas como o curso universitário de três meses podem ser condensados em um contraparte mais curto. Mais estudos nesta área podem diminuir a lacuna entre intervenções eficazes, mas não escaláveis, e intervenções que podem ser realisticamente implementadas na vida do dia a dia".

 

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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