
Não sei quanto a você, mas eu tenho uma dificuldade tremenda de responder a perguntas do tipo “qual a sua cor favorita?”, “qual o seu filme favorito?”, assim por diante. Mas se alguém me perguntar qual o meu animal favorito, daí fica fácil, muito fácil. Eu amo gatos. A razão não é difícil de compreender: você já viu muitos deles, conhece o charme, a manha, as patinhas e o narizinho magnífico dos gatos. Algumas vezes eles podem ser levemente assustadores, como quando, num ambiente escuro, a luz lançada sobre os olhos deles é refletida de forma fantasmagórica. Você sabe de onde vem aqueles olhos de farol?
Esse brilho especial provém de uma estrutura nos olhos chamada de tapetum lucidum (algo como “camada brilhante”), que se localiza no fundo do olho. Aqui, essa figura pode ajudar a localizar. A estrutura, muito comum em animais noturnos, funciona essencialmente como se fosse um espelho, aproveitando ao máximo os tímidos raios de luz da noite escura. Vamos entender como isso funciona.
Quando a luz tem o privilégio de encontrar o olho de um gato, há alguns caminhos ou rotas possíveis. Primeiro, a luz incide diretamente na retina, uma camada na parte posterior do globo ocular que contém células fotorreceptoras, isto é, sensíveis à luz. Essas células, então, servem de gatilho para impulsos nervosos que viajam pelo nervo óptico até o cérebro, onde finalmente a imagem se forma.
Parte da luz que atravessa ou contorna a retina atinge o tapetum lucidum. O que acontece agora é que essa estrutura reflete a luz visível de volta através da retina, aumentando a quantidade de luz disponível para os fotorreceptores. Por isso falei que age como um espelho que tenta maximizar a captura de luz. Finalmente, parte da luz refletida pelo tapetum lucidum escapa e encontra seu caminho de volta ao ambiente externo. É daí que vem o “farol” nos olhos dos gatos e tantos outros mamíferos noturnos.
Cerca de 70% dos mamíferos são noturnos e a presença de tapetum lucidum nessas espécies é muito comum, especialmente nos placentários — mamíferos cujo embrião se desenvolve dentro do útero materno, nutrido por uma placenta. Pensando nos mamíferos especificamente, é mais provável, portanto, que essa estrutura tenha sido herdada de um ancestral comum do que evoluído muitas vezes independentemente (sabemos que evoluiu independentemente em outras linhagens de vertebrados, por isso meu foco nos mamíferos).
Há ainda outros fatos curiosos sobre os olhos dos mamíferos, como mostra Emily Sohn em seu artigo na Revista Nature:
“Muitas peculiaridades dos mamíferos podem ser explicadas por um histórico de hábitos noturnos. Além de terem córneas e pupilas grandes para maximizar a quantidade de luz que entra no olho, os olhos dos mamíferos têm uma menor distância entre a lente e a retina em comparação com os olhos de muitos vertebrados, o que ajuda a projetar uma imagem mais brilhante na retina em condições de pouca luz. Além disso, há menos tipos de células fotorreceptoras para detectar cores (conhecidas como células cone). E os olhos da maioria dos mamíferos — embora, notavelmente, não os dos humanos ou de certos outros primatas — não têm fóvea, uma área da retina rica em células cone que proporciona visão nítida e detalhada para peixes, aves e répteis que caçam durante o dia”.
Esse conjunto de fatos reforça uma ideia proposta em 1942 por Gordon Walls em seu livro “The Vertebrate Eye and its Adaptive Radiation”, no qual defende que essas peculiaridades visuais dos mamíferos são melhor explicadas pela hipótese de que nossos ancestrais tiveram hábitos noturnos por longos períodos; a ideia ficou conhecida como “o gargalo noturno”. E isso faz bastante sentido. O grupo dos mamíferos modernos surgiu ainda no Período Jurássico e, portanto, eles conviveram com os dominantes dinossauros não avianos. Talvez nossos ancestrais só tenham conseguido triunfar à sombra dos dinossauros, vivendo suas vidas majoritariamente à noite. Se isso for verdade, então é seguro dizer que todos os gatos têm um passado sombrio, o que só os torna mais perfeitos ainda!
Recentemente, mais uma peça de evidência foi anexada ao caso. O estudo, publicado na Science, investigou a cor de parentes próximos dos mamíferos que conviveram com dinossauros. Mas como isso é possível, dado que cor não fossiliza? É possível inferir a cor de animais extintos com base na preservação excepcional de melanossomos, estruturas intracelulares ricas em melanina, presentes na pele, penas e pelos. A investigação da coloração e espécies extintas com base nos melanossomos já foi feita para dinossauros, aves extintas e pterossauros.
Mas qual aspecto dos melanossomos permite inferir a cor? O primeiro passo do time de autores foi compilar um banco de dados sobre coloração dos pelos e geometria dos melanossomos de 116 de espécies de mamíferos viventes, incluindo, para o meu deleite e felicidade, gatos (a amostra foi ofertada por Masha, gata de um dos autores). Uma vez feita essa tabulação, o próximo passo consistiu em usar os dados parar formular um modelo capaz de prever a cor dos pelos com base no tamanho e formato dos melanossomos. De maneira consistente, nas espécies analisadas, a geometria dos melanossomos estava associada à cor da pelagem. De maneira geral, o padrão é o seguinte: pelos mais avermelhados e alaranjados continham melanossomos esféricos, enquanto os pelos mais escuros apresentavam melanossomos alongados.
O time de pesquisadores, então, aplicou a técnica de microscopia eletrônica a fósseis de 6 espécies de extintos parentes próximos dos mamíferos (um dos fósseis é um mamífero de fato) da Era Mesozoica, para investigar a forma dos melanossomos. Uma vez que a geometria dos melanossomos foi mapeada, os pesquisadores forneceram os dados ao modelo construído. Resultado: os melanossomos das espécies extintas estudadas apresentam uma morfologia oval e de tamanho médio (considerando o que foi amostrado), o que leva o modelo a inferir uma coloração marrom-escura.
Adicionalmente, os pesquisadores foram capazes de detectar a presença de concentração elevada de cobre nos melanossomos. O elemento cobre está relacionado a um tipo específico de melanina (a eumelanina), responsável pelo branco e marrom da pelagem dos mamíferos. Em adição à eumelanina, muitos mamíferos também apresentam a feomelanina, responsável pelos tons de vermelho e amarelo. A feomelanina pode ser inferida pela presença de zinco. Na análise conduzida no estudo, contudo, não foi encontrada evidência de zinco, sugerindo ausência de padrões (manchas, listras) na pelagem. Em resumo, as espécies estudadas teriam coloração escura e sem padrões sobre esse fundo uniforme.
Entre os fósseis estudados, havia diferentes ecologias: dois planadores (semelhantes a esquilos-planadores), um escavador (similar a uma toupeira), um escalador de árvores e duas espécies de habitat terrestre. Isso é interessante, pois como relatam os autores do estudo “mamíferos atuais que habitam nichos ecológicos semelhantes aos dos seis fósseis... apresentam uma paleta de cores semelhante e bastante limitada, com predominância de tons de cinza-escuro ou marrom”.
Não bastasse a tirania dos dinossauros (olha o trocadilho!) por milhões de anos, eles ainda condenaram nossos ancestrais a uma aparência talvez meio “sem graça”. Para que os belos gatos multicoloridos pudessem existir, os dinossauros não avianos tiveram primeiro que ser eliminados (um gato os derrubaria da borda da Terra, simplesmente). Os autores concluem:
“Após o evento [de Extinção] Cretáceo-Paleogeno, os mamíferos se diversificaram rapidamente, ocupando nichos vagos anteriormente dominados pelos dinossauros, o que pode ter impulsionado simultaneamente a rápida radiação e diversificação das estratégias de coloração da pelagem em ambientes novos e diversos”.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade