Genética da mediunidade é a nova Fada dos Dentes

Artigo
19 fev 2025
Fada dos Dentes

 

Em 18 de fevereiro, a Folha de S.Paulo (FSP) publicou uma matéria com o título “Médiuns têm alterações genéticas, mostra estudo coordenado pela USP”. O texto trata de uma pesquisa publicada na Revista Brasileira de Psiquiatria que identificou alguns genes que supostamente estariam ligados ao “dom da mediunidade”, conforme declaração de um dos pesquisadores à jornalista da FSP.

O protocolo adotado parece, à primeira vista, bastante razoável: selecionadas algumas dezenas de pessoas que têm validação, em seus grupos sociais, do papel de “médium”, comparou-se o DNA delas ao de parentes próximos, na expectativa de encontrar variações genéticas que fossem comuns aos médiuns mas estivessem ausentes nos parentes – variações que o estudo, depois de uma rodada extra de “validação” (em que os genes dos médiuns testados contra os parentes são comparados aos de um segundo grupo de médiuns), vai apresentar como candidatas a uma suposta base genética da “mediunidade”.

Essa aparente razoabilidade esconde, no entanto, uma série de pressupostos implícitos altamente problemáticos. A escolha dos participantes para o experimento poderia ter se baseado em um critério puramente objetivo, em vez de recorrer a uma seleção fundamentada em crenças pessoais e validação social.

Normalmente, o reconhecimento social de alguém como médium e a percepção de que suas comunicações extraordinárias são precisas costumam depender de afirmações vagas e subjetivas, que trazem conforto a quem as recebe. Fenômenos psicológicos que produzem a ilusão de acesso excepcional ou sobrenatural a fatos e conhecimentos, como leitura fria, validação subjetiva, criptomnésia e o Efeito Forer são sobejamente conhecidos e validados na literatura científica – mas a possibilidade de que estejam por trás da “mediunidade” dos participantes foi ignorada pelos autores do estudo.

Qualquer fenômeno que interaja com a natureza, ainda que não seja completamente compreendido, pode ser testado: e, até o momento, nenhum experimento controlado de boa qualidade mostrou que qualquer ser humano tenha percepção extrassensorial ou acesso à consciência de pessoas mortas. No caso deste estudo, os participantes foram selecionados com base em um critério de reconhecimento social que nada diz sobre eventuais poderes ou capacidades extraordinários que possam, talvez, ter.

Não havia necessidade, portanto, de dedicar metade de um texto jornalístico a conduzir o leitor por uma narrativa paranormal. Seria mais adequado abordar o tema como uma manifestação de crenças religiosas e culturais, ou como resultado de fatores neurocientíficos, que, aliás, são explicações mais simples e fundamentadas do que qualquer causa genética. Pluralitas non est ponenda sine neccesitate (a pluralidade não deve ser posta sem necessidade) – princípio conhecido como a “Navalha de Ockham” que diz que, grosso modo, se existem várias hipóteses que podem explicar um mesmo fenômeno, é mais provável que a mais simples esteja correta.

Deveria fazer parte do repertório jornalístico não noticiar pesquisas altamente especulativas e incipientes. No mínimo, o jornalista bem treinado deveria ser capaz de distinguir entre uma área de pesquisa legítima, em que estudos-piloto – trabalhos em geral pouco rigorosos, conduzidos para captar os primeiros indícios de um possível fenômeno – são seguidos por estudos confirmatórios rigorosos, capazes de, se for o caso, descartar o indício encontrado, e áreas que se limitam a multiplicar estudos-piloto ad infinitum, sem jamais avançar no rigor metodológico, com o mero intuito de gerar manchetes e manter as torneiras do financiamento abertas.

No artigo original, citar Aldous Huxley para sugerir que os médiuns teriam um filtro menos restritivo da realidade é algo que se assemelha ao que ficou conhecido como ciência da Fada dos Dentes: consiste basicamente em estudar as características e detalhes de um fenômeno antes de estabelecer se ele existe.

Pode-se medir a quantidade de dinheiro que a Fada dos Dentes deixou sob o travesseiro, analisar se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou comparar se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode-se, ainda, coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que a Fada do Dentes não existe – e há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais.

No caso do estudo, a explicação plausível é de que as variações genéticas encontradas não diferem consideravelmente do que seria esperado em mutações aleatórias que surgem quando se comparam genomas de parentes próximos. Inferir, a partir disso, uma relação de causa e efeito é um salto gigantesco, ainda mais quando o “efeito” é um fenômeno social: faz tanto sentido quanto comparar os genomas de dois irmãos, um corintiano e outro palmeirense, e atribuir a diferença de time às variações encontradas.

Para complicar ainda mais, familiares próximos compartilham uma porção significativa de seu material genético e, ao analisar os genomas (no caso específico deste estudo, os exomas, que são uma parte importante do genoma) como se fossem independentes, corre-se o risco de interpretar erroneamente variações genéticas normais dentro da família como significativas (os autores agradecem ao Dr. Luiz Gustavo de Almeida pelas explicações sobre genética).

Apesar de os autores afirmarem, no artigo da Revista Brasileira de Psiquiatria, que não existe nenhum conflito de interesse, é possível encontrar uma pós-graduação em Integração da Espiritualidade na Prática Clínica onde um dos pesquisadores aparece como figura principal do marketing do curso – cuja matrícula e aulas, com desconto, somam R$ 11.530,00.

Vale também destacar o crescente interesse jornalístico pela espiritualidade. Um dia após a publicação da matéria sobre mediunidade – antes mesmo de a versão final estar disponível no periódico –, a mesma FSP publicou um artigo exaltando um dos autores, no qual se lê: “já há suficientes dados científicos para afirmar a presença de experiências espirituais no mundo”. Quo vadis, jornalismo?

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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