Dinossauros e o peru de Natal

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24 dez 2024
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Preu

 

No dia 7 de novembro de 1924, portanto há pouco mais de 100 anos, o periódico The American Museum Novitates, publicado pelo do Museu Americano de História Natural (AMNH), apresentou ao mundo três novas espécies de dinossauros, coletadas na Mongólia um ano antes. O artigo, assinado por Henry F. Osborn, descreve e nomeia as espécies Velociraptor mongoliensis, Saurornithoides mongoliensis e Oviraptor philoceratops, todas da porção final do Período Cretáceo. Talvez com a exceção de Saurornithoides, são dinossauros bastante famosos, popularizados sobretudo pela franquia Jurassic Park/World.

Nota pessoal: acho os filmes da franquia Jurassic World horríveis, mas sendo paleontólogo de dicinodontes, devo agradecer pela belíssima e necessária cena em que um Oviraptor é decapitado pela mordida de um Lystrosaurus (um dicinodonte); vale ressaltar que os Lystrosaurus viveram pelo menos 170 milhões de anos antes que os Oviraptor, ou seja, os humanos estão menos distantes no tempo de um Oviraptor do que esse último está de um Lystrosaurus. Mas isso é apenas um detalhe, claro, embora um excelente recurso didático para pensar sobre a imensidão do tempo geológico.

Seja como for... Na minha mais recente visita ao AMNH, tive a oportunidade de ver com os meus próprios olhos os holótipos de Velociraptor e Saurornithoides, que estão em exposição; “holótipo” é o espécime que serve de base para a descrição de uma espécie: o “exemplar original”, por assim dizer. Tirei fotos, claro, mas só depois me dei conta de que essas espécies foram nomeadas há mais de um século. Resolvi, então, revisitar o artigo de Osborn. Encontrei lá algo que, em retrospecto, faz muito sentido. Sobre Saurornithoides, Osborn escreve o seguinte:

“O segundo [crânio de dinossauro] (Figs. 3, 4), embora megalossauriano e dotado de uma fileira de dentes, foi inicialmente confundido com o crânio de uma ave, devido ao seu rosto [focinho] longo e esbelto; pode vir a ter parentes avianos; por isso, o nomeamos Saurornithoides, o "terópode semelhante a uma ave"”.

Lembre-se, estamos falando de 1924, quando ainda não se sabia que as aves são dinossauros. É muito interessante, então, que o crânio de um pequeno dinossauro bípede tenha sido “confundido com o crânio de uma ave”. Osborn não estava prevendo ou propondo que aves e dinossauros fossem parentes próximos, mas no fim ele estava certo quando escreveu que esse animal pudesse “vir a ter parentes avianos”. Mas como sabemos que aves são dinossauros, afinal?

 

Porque as aves são dinossauros

Evidentemente, apenas com os dados das espécies viventes seria impossível chegar a tal conclusão. Mas os fósseis (sempre eles!), esses sim podem nos contar uma bela história. Ao longo de décadas, várias descobertas ajudaram a resolver a questão para além de qualquer dúvida razoável —várias características que antes pensávamos ser exclusivas das aves evoluíram antes delas em ancestrais dinossaurianos.

Nota aos mais preciosistas: ao longo desse texto eu falo de aves e dinossauros, como se as primeiras não fossem um tipo dos últimos. Contudo, faço isso apenas para facilitar a escrita e não ficar escrevendo repetidamente termos como “dinossauros não avianos”.

Embora a descoberta de fósseis de Archaeopteryx no século 19 tenha levado a proposições de similaridades entre alguns dinossauros e aves, no começo de século 20 estava em voga a ideia de que a lacuna entre esses dois grupos era enorme e que, portanto, a origem das aves não estava atrelada aos dinossauros.

Um argumento muito comum era a suposta ausência de uma fúrcula em dinossauros. Esse osso, também conhecido como “osso da sorte”, é encontrado em aves e é formado pela fusão das clavículas (há propostas de que a fúrcula é formada pelas interclavículas. Isso em nada altera o argumento, contudo. Para mais detalhes, clique aqui). Clavículas também existem em muitos outros vertebrados, mas eram desconhecidas nos dinossauros. Então, segundo essa linha de raciocínio, se os dinossauros não têm clavículas é porque as perderam evolutivamente. Supondo que esses ossos não poderiam evoluir novamente, a lacuna entre dinossauros e ave parecia intransponível. Porém, já em 1936 sabia-se que o dinossauro terópode Segisaurus tinha clavículas. Hoje, sabemos que as clavículas ou fúrcula estão presentes em vários dinossauros não avianos.

Na década de 1970, o paleontólogo John Ostrom publicou uma série de estudos apontando as similaridades anatômicas entre aves e dinossauros, ressaltando sobretudo uma conexão importante, a presença de características tipicamente dinossaurianas em Archaeopteryx, que seguramente estava muito mais próximo das aves do que dos dinossauros, apesar de ter uma cauda longa e dentes. Em uma nota preliminar publicada em 1973 na revista Nature, Ostrom destacou:

“A origem mais provável de tantas características celurosaurianas [celurossauros são tipos específicos de dinossauros, geralmente bípedes e frequentemente carnívoros] em Archaeopteryx é a herança direta de um pequeno ancestral celurosauriano. O significado adicional dessa filogenia é que os ‘dinossauros’ não foram extintos sem deixar descendentes, e eu sugiro que as penas, como isolantes térmicos, podem ter sido a principal razão para o sucesso dos descendentes dos dinossauros”.

“Os dinossauros não foram extintos sem deixar descendentes” deve ter soado chocante para muitos leitores da época. Mas Ostrom não poderia imaginar o que as próximas décadas trariam de descobertas.

Nos anos 1980, o ramo da sistemática filogenética (ou cladística) estava em pleno desenvolvimento e ainda era algo novo, porém com grande potencial para resolver antigas dúvidas sobre quem é parente de quem. A sistemática filogenética é o estudo das relações evolutivas entre organismos, com base em características compartilhadas, derivadas de um ancestral comum. Podemos utilizar dados morfológicos (como ossos, dentes ou padrões anatômicos) para identificar sinapomorfias — características exclusivas compartilhadas — e construir árvores filogenéticas que representem hipóteses sobre os parentescos.

Em 1986, Jacques Gauthier publicou um artigo que reforçou a hipótese da natureza dinossauriana das aves. Com o emprego das novas metodologias oferecidas pelo desenvolvimento da cladística, Gauthier demonstrou que as aves não só têm parentesco próximo com os dinossauros, mas são elas próprias dinossauros de verdade, dado que há dinossauros típicos (por exemplo, Saurornithoides e Velociraptor) que são parentes mais próximos das aves do que de outros dinossauros. Vale a pena citar o último parágrafo:

“Uma concepção popular equivocada é que todos os dinossauros eram enormes e desajeitados, e que há muito tempo foram extintos. Certamente, apenas uma linhagem de dinossauros sobreviveu ao final do Cretáceo. No entanto, essa linhagem atualmente representa quase metade da diversidade total de espécies dos Amniota existentes. As aves são dinossauros vivos e, como tal, estenderam a preeminência dos Dinosauria entre os vertebrados terrestres do final do Triássico até os dias atuais”.

A década de 1990 também trouxe boas notícias. Em 1996, quando paleontólogos do mundo inteiro se reuniram no encontro anual da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados, uma simples foto virou o centro das atenções. A foto era de um espécime de um pequeno dinossauro descoberto na China naquele mesmo ano. Surpreendentemente, podia-se ver um contorno de filamentos ao longo do fóssil. Com a hipótese de que aves são dinossauros em mente, aqueles filamentos só poderiam ser... penas! Ou, pelo menos, penas incipientes. Ainda no mesmo ano, o espécime foi descrito e foi nomeada espécie Sinosauropteryx prima, sobre a qual já falamos aqui.

Ao longo dos anos, a evidência foi acumulando e hoje conhecemos muitos espécimes de dinossauros “emplumados”, provenientes de diferentes ramos da árvore genealógica dessas fantásticas criaturas. Além disso, outras linhas de evidência juntaram-se ao coro. Por exemplo, paleontólogos descreveram alguns fósseis incríveis, um deles hoje em exposição no AMNH (eu vi!), onde se pode observar claramente um oviraptossauro adulto que morreu ainda em seu próprio ninho, repousando sobre os ovos. A posição do adulto é muito similar à postura que as aves adotam quando chocam ovos.

Esse é um pequeno apanhado, pouco técnico, sobre como sabemos que as aves são dinossauros. Não é nem de longe uma tentativa exaustiva de fornecer uma parte da evidência. Contudo, faça bom proveito e, neste Natal, não perca a oportunidade de agarrar o osso da sorte e dizer “eis aqui um dinossauro!”. Feliz Natal!

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

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