Ciência não é "ocidental" ou "indígena", mas universal

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19 dez 2024
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A revista Science publicou no último 12 de dezembro o artigo Indigenizing conservation science for a sustainable Amazon. A peça defende a importância de integrar conhecimentos indígenas à “ciência ocidental” [sic], particularmente no contexto da preservação da Amazônia. Apesar do apelo romântico, ilustrado por passagens como “caminhos físicos percorridos por homens e mulheres que também são percorridos por pássaros, macacos, formigas, carrapatos e peixes, bem como pelo vento e pela água”, e da evidente falta de objetividade em alguns trechos, a publicação em um dos periódicos de ciência mais importantes do mundo é compreensível. O artigo se alinha ao zeitgeist identitário contemporâneo, como fica explícito na divulgação Science vai publicar, pela primeira vez, artigo assinado por cientistas indígenas brasileiros, do jornal O Globo.

O aquecimento global antropogênico é atualmente um dos grandes problemas mundiais, e a manutenção da Floresta Amazônica desempenha um papel importante nessa questão – não há dúvida disso. Não se critica aqui a relevância do tema, mas sim a apresentação de material pouco objetivo, estruturado na forma de narrativas fantasiosas que pressupõem uma perturbadora fragmentação étnico-cultural da ciência, como se o olhar científico não fosse uma extensão da racionalidade universal da espécie humana – e seus produtos, patrimônio de toda a Humanidade. Diga-se de passagem, essa fragmentação é frequentemente explorada por pseudociências para escapar de críticas, reivindicando que “pertencem a outras epistemes”.

Logo no início, o artigo afirma que a "ciência ocidental" tem um histórico de se apropriar e desprezar o conhecimento indígena. Embora reivindicar pioneirismo em determinadas ideias possa ter valor histórico ou cultural, esse reconhecimento não altera os fatos da natureza, nem a validade científica das descobertas. O fenômeno natural, revelado pelo método científico, permanece inalterado, independentemente de quem primeiro tenha chamado atenção para seus indícios.

Além disso, há uma enorme distância entre uma ideia inicial e a formulação de uma teoria científica sólida, construída com base em investigação rigorosa e validação experimental. A casca do chorão, por exemplo, usada por egípcios e sumérios como analgésico há 3.500 anos, foi a base para o desenvolvimento da aspirina. Apesar de seu uso empírico milenar, o mecanismo de ação do ácido acetilsalicílico só foi compreendido séculos depois, culminando no Prêmio Nobel de Medicina em 1982.

Embora seja óbvio que muitas ideias científicas surgem da observação da natureza, isso não significa que os saberes indígenas devem ser aceitos como cientificamente válidos apenas por serem indígenas, sem uma análise criteriosa: populações que habitam seus territórios há séculos ou milênios desenvolvem crenças sobre esses territórios, crenças que podem ter imenso valor empírico, social, emocional ou psicológico. Mas esse valor não determina se tais crenças correspondem ou não aos fatos do mundo, e é por isso que precisamos de ciência: na Europa medieval, por exemplo, era “conhecimento tradicional nativo” que a Terra se encontrava no centro do Universo, orbitada pelo Sol e demais planetas.

Em julho de 2021, professores da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, publicaram uma carta na revista New Zealand Listener intitulada “Em defesa da ciência”. Na carta, os sete professores se opunham a um parecer técnico do Ministério da Educação que recomendava a paridade entre a Matauranga Maori, o conhecimento tradicional Maori, e os outros corpos de conhecimento credenciados pelo NCEA, o certificado nacional de desenvolvimento educacional.

A carta defende que a ciência é universal, com contribuições de várias partes do mundo, e não uma construção, apenas, da Europa Ocidental. Reconhece a importância do conhecimento indígena, mas termina por dizer que este conhecimento fica muito distante do que é ciência. De fato, um conhecimento só se torna realmente relevante para a ciência — e aplicável de maneira confiável — quando é submetido a métodos rigorosos de validação que garantam sua consistência e eficácia. Sem essa validação, ele pode ter valor anedótico ou histórico, mas não atinge o status de conhecimento científico.

Uma evidência, ainda que anedótica e indireta, de que o tema abordado pelo artigo da Science parece estar mais alinhado a ativismo panfletário do que à promoção de um debate construtivo sobre ideias concretas na ciência é o que ocorreu após a publicação da carta: uma intensa campanha de cancelamento dos chamados “sete da Listener”, como passaram a ser conhecidos os autores. Manifestações de defesa e ataque aos docentes envolveram instituições e cientistas como Richard Dawkins, a Royal Society da Nova Zelândia, a cúpula da Universidade de Auckland e o governo neozelandês.

Ainda que seja colocada de maneira tímida que os autores do artigo da Science não estão defendendo a incorporação de crenças religiosas à prática científica, referências a encantados como “criaturas que têm as mesmas qualidades e habilidades dos humanos, incluindo sua aparência física, mas que não são visíveis para as pessoas comuns na vida cotidiana” e que só podem ser vistos por xamãs pouco servem a um artigo que pretende ser propositivo para a preservação da Amazônia.

Tal abordagem, centrada na romantização das crenças construídas por populações historicamente oprimidas e na reação a um suposto desprezo pelos saberes dos povos originários, desvia o foco da discussão central sobre o combate à crise climática. Escrito numa linguagem pouco clara e escorregadia – talvez propositalmente –, o artigo permite um espectro de leituras que vai do óbvio razoável (a forma de ver e pensar a floresta dos povos indígenas pode trazer insights importantes e sugerir valiosas questões de pesquisa) a um delirante identitarismo epistêmico. Reconhecer o protagonismo dos povos originários na terra que lhes pertence, e a dívida histórica de que são credores, não muda o fato de que o método científico opera independentemente de sua origem cultural, ou de quem o aplica.

Esse tipo de conteúdo panfletário, com afirmações difusas e pouco objetivas, atrai cliques, compartilhamento e engajamento, e pode ajudar a aumentar as métricas da revista. Curiosamente, a mesma Science, apenas cinco dias depois de publicar o artigo sobre “ciência indígena”, denuncia o uso inescrupuloso dos espaços de opinião das revistas indexadas para inflar métricas de publicação. Não sem antes admitir, em tradução livre: “publicar esses artigos também pode ser um bom negócio para os periódicos. Por um lado, muitos cobram taxas de publicação por comentários. Eles também oferecem uma oportunidade madura para manipular o fator de impacto do periódico, uma medida baseada em citações que dá peso extra a artigos de opinião”.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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