“Esse tratamento funciona?”. Esta é uma das perguntas mais frequentes - e uma das mais inadequadas - que costumamos fazer sobre uma intervenção terapêutica sem reflexão prévia.
Imagine que você queira pendurar um quadro na parede da sua sala. Essa não é uma tarefa particularmente complexa, mas exige algum planejamento. Você vai precisar de uma ferramenta para furar a parede (uma furadeira), precisará de um profissional ou alguém habilidoso o bastante para usá-la (pode até ser você mesmo) e, por último, precisará que o contexto seja adequado - ou seja, que a parede suporte o peso do quadro e seja apropriada para receber um parafuso.
Agora, substitua esse exemplo da vida doméstica por um cenário de saúde. Em vez de pendurar um quadro, queremos tratar uma doença. Em vez de uma furadeira, temos à disposição uma “ferramenta” terapêutica (por exemplo, um medicamento). Em vez de uma pessoa habilidosa com uma furadeira, temos um profissional de saúde habilitado e bem treinado. E em vez da parede de concreto que precisa suportar o parafuso, temos o contexto clínico do paciente - suas características, a doença específica, o estágio da enfermidade, as condições do ambiente, a disponibilidade de recursos e suporte adequado.
Assim como na tarefa de pendurar um quadro, na área da saúde a efetividade de uma intervenção não depende apenas de um único fator.
Ferramenta, Profissional e Contexto
Vamos formalizar um pouco essa ideia. Suponha que queremos representar a efetividade (E) de um tratamento como um produto de três fatores: T, P e C. Onde:
T (Ferramenta Terapêutica): É a qualidade intrínseca da intervenção. Pode ser um medicamento com eficácia demonstrada, pode ser uma técnica de fisioterapia bem estabelecida, um procedimento cirúrgico com bases sólidas na literatura científica. Quanto mais funcional (eficaz) for a ferramenta, maior o valor de T.
P (Profissional): É a habilidade, o conhecimento e a experiência de quem manipula a ferramenta. Na área da saúde, isso se traduz na capacidade do profissional para aplicar o método corretamente. É a aptidão para interpretar exames, ajustar doses, reconhecer contraindicações, monitorar efeitos adversos e individualizar o cuidado. Quanto mais competente for o profissional, maior o valor de P.
C (Contexto): É o cenário em que a intervenção se dá. Inclui a condição específica do paciente (idade, estado nutricional, comorbidades, particularidades genéticas), a fase da doença, os recursos disponíveis (leitos de UTI, laboratório de apoio), o ambiente socioeconômico e cultural e até aspectos de adesão do paciente ao tratamento. Um contexto mais adequado (C elevado) aumenta a probabilidade de sucesso. Já um contexto inadequado reduz a efetividade.
Assim, de maneira simplificada poderíamos dizer que:
Efetividade de um tratamento (E) = T × P × C
É claro que essa expressão está longe de ser uma fórmula matematicamente rigorosa, é mas uma alegoria conceitual. Serve para internalizarmos a ideia. Se qualquer um dos fatores mencionados for zero ou próximo de zero, então a Efetividade também será próxima de zero. Ao avaliar a ferramenta terapêutica (T), é fundamental considerar a robustez da base científica que a respalda: um medicamento com múltiplos ensaios clínicos randomizados e bem desenhados apresenta um T mais alto do que outro apoiado apenas em estudos de baixa qualidade. Além disso, o profissional (P) não é um dado imutável; sua competência é lapidada pelo treinamento constante, aperfeiçoamento técnico, atualizações periódicas e educação continuada.
Por exemplo, se T = 0 (ferramenta inútil, como uma “furadeira de brinquedo”), não importa a habilidade do profissional (P) e a qualidade do contexto (C): zero multiplicado por qualquer coisa ainda é zero. Na área da saúde, exemplos de “furadeiras de brinquedo” seriam práticas como a homeopatia e os florais. Ambas são amplamente difundidas, têm defensores apaixonados, mas não têm evidências científicas de eficácia.
Na analogia, seria como tentar furar uma parede de concreto com uma furadeira de plástico. Não adianta a perícia do profissional ou a adequação do contexto, a ferramenta simplesmente não cumpre a função prometida. Assim, enquanto não houver um fundamento sólido (evidência científica robusta) mostrando que a ferramenta faz o que promete, seu valor T continuará, para fins probabilísticos, próximo de zero.
Ainda usando a nossa metáfora: você pode ter uma furadeira profissional de primeira linha (T alto). E o contexto pode ser perfeito: a parede é ideal para ser furada, o tipo de parafuso é correto (C alto). Mas você, o operador, não tem ideia do que fazer agora. Talvez você nunca tenha feito isso antes, não entenda quais são os cuidados básicos, não saiba medir profundidade, não domine a velocidade de rotação ou o tipo de broca que deve usar. Nesse caso, apesar da excelente ferramenta e do contexto adequado, o valor de P (profissional) é próximo a zero, o que derruba a efetividade total.
Na saúde, isso acontece quando um profissional não tem a qualificação necessária para usar aquela ferramenta específica. Na área clínica, a falta de conhecimento pode se traduzir em prescrições equivocadas, combinações perigosas de medicamentos, dosagem incorreta, falta de monitoramento de efeitos colaterais, entre outros problemas. Não é à toa que deixamos as furadeiras - mesmo aquelas que são muito boas e aparentemente seguras - longe do alcance de crianças.
Agora, imagine que você tem uma furadeira de altíssima qualidade. Também é um profissional experiente: sabe furar paredes há anos, entende qual broca usar, qual o ângulo, qual a pressão a aplicar. Porém, o contexto mudou: você está tentando martelar um prego com a furadeira, em vez de usá-la para fazer um furo. Se a ferramenta e o profissional são ótimos, mas o contexto é inadequado, com C próximo a zero (por exemplo, tratando uma doença completamente diferente daquela para a qual o medicamento foi desenvolvido e testado), também não teremos bons resultados. Por exemplo, um anti-histamínico, que possui demonstração de eficácia para alergias, sendo usado para tratar meningite bacteriana. A eficácia do fármaco no seu contexto original (T) pode ser boa, mas se o contexto da doença é outro, o efeito sobre a infecção não será o mesmo e o resultado global da Efetividade também será prejudicado. Não se trata, portanto, de negar que o anti-histamínico funcione para aquilo que foi desenvolvido (alergia), mas sim reconhecer que neste novo contexto (meningite bacteriana) a ferramenta não desempenha papel relevante.
Considerações finais
A ideia do tripé Ferramenta-Profissional-Contexto apresentada neste artigo se aproxima bastante do amplamente difundido tripé da prática baseada em evidências: Melhor Evidência Disponível, Julgamento Clínico e Preferências e Valores do Paciente. É uma forma de compreendermos que, para aumentar a probabilidade de melhores desfechos em saúde, precisamos avaliar adequadamente a eficácia das intervenções, a expertise do profissional e o contexto clínico.
No mundo real, a pergunta “Esse tratamento funciona?” não deve ser respondida com um simples sim ou não. Deve ser respondida da seguinte maneira: “Há evidências científicas de que o tratamento X tem eficácia em tal condição (T alto), quando aplicado por um profissional qualificado (P alto), no contexto apropriado (C alto). Nessas circunstâncias, a Efetividade será alta, logo, concluímos que provavelmente funcionará”.
A área da saúde não se limita a seguir mecanismos rígidos (conforme exemplificamos neste artigo); o conhecimento clínico é, por natureza, falível e permeado por incertezas. Não há um remédio ou procedimento com eficácia universal em todos os contextos, e a busca por uma “ferramenta perfeita” encontra seu limite na complexidade da condição humana, das diferenças individuais, culturais e epidemiológicas.
A metáfora da furadeira nos ajuda a não cair em simplificações ingênuas: ela nos alerta que a prática clínica é sempre contextual e atualizada por meio de novas evidências, acompanhada de constantes reflexões sobre a natureza incerta do conhecimento médico.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é" (Editora Contexto).