Se você acompanha a minha coluna aqui na RQC, então já deve ter concluído que acredito na existência de vida extraterrestre. Evidentemente, isso não significa que acredito que eles nos visitam e estão por trás dos avistamentos de “discos voadores” e relatos de abdução. Não, não acredito nisso. Homenzinhos verdes não fazem parte da minha visão sobre o tema. E não há contradição alguma aqui. Porém, ao passo em que sou cético quanto às visitas ao nosso quintal, penso que o fenômeno UAP (Unidentified Anomalous Phenomena) — Fenômenos Anômalos Não Identificados, traduzindo do inglês — deveria ser investigado. Mais ainda, creio que o interesse atual por esses fenômenos é um excelente momento para apresentar o bom e velho ceticismo ao público.
Os UAPs são, segundo a NASA “observações de eventos no céu que não podem ser identificados como aeronaves ou fenômenos naturais conhecidos”. A agência anunciou, em 9 de junho de 2022, que estava formando um grupo dedicado ao estudo do fenômeno de uma perspectiva científica, com o seguinte objetivo: “O estudo se concentrará em identificar os dados disponíveis, como coletar melhor dados futuros e como a NASA pode usar esses dados para avançar na compreensão científica dos UAPs”.
Cerca de um ano antes da decisão da NASA, Avi Loeb, um astrofísico da Universidade de Harvard, anunciou “O Projeto Galileu”. Segundo a página oficial do projeto, seu objetivo geral é “trazer a busca por assinaturas tecnológicas extraterrestres de Civilizações Tecnológicas Extraterrestres (ETCs) de observações acidentais ou anedóticas e lendas para o mainstream da pesquisa científica transparente, validada e sistemática”. Quanto aos objetivos específicos, são eles:
1. Examinar a possibilidade de uma origem extraterrestre para fenômenos aéreos não identificados (UAP), realizando observações de objetos na atmosfera terrestre e em suas proximidades, eliminando objetos identificáveis por meio de algoritmos de IA [Inteligência Artificial] de aprendizagem profunda treinados em classificações rigorosas de objetos conhecidos e, em seguida, analisando a natureza dos dados restantes em busca de características anômalas.
2. Compreender as origens de objetos interestelares (ISOs) que apresentam características diferentes de asteroides e cometas típicos, como Oumuamua, por meio de iniciativas de descoberta e caracterização envolvendo levantamentos astronômicos e atmosféricos, bem como observações espaciais.
Nota: cito Loeb como exemplo, mas isso de forma alguma isso significa que necessariamente endosso suas opiniões. Veja aqui, por exemplo, uma potente crítica às afirmações de Loeb escrita por Marcelo Yamashita.
Qual o meu ponto? Como é dito por aí na internet, como cientista eu não quero acreditar, eu quero saber. Eu não posso simplesmente assumir que todos os avistamentos de UAPs são fantasia a priori. Essa é uma atitude cínica, não cética. Por outro lado, não quero concluir (nem concluo) que todos os avistamentos são alienígenas; sabemos que a maioria definitivamente não é. Na verdade, não conheço um único caso sequer que possamos dizer, sem sombra de dúvida (nem mesmo tentativamente, para ser sincero), que o UAP em questão é de origem extraterrestre. Mas, como disse, é preciso investigar o fenômeno (e ele tem sido investigado; veja a última seção desse texto).
Se nós, céticos, não investigarmos o fenômeno com seriedade, o que resta? Ora, basta ver o que acontece na internet. Dado que o assunto UAP está em alta nos Estados Unidos da América (no momento em que escrevo, supostamente uma invasão alienígena deveria estar ocorrendo em New York), não é surpresa alguma que isso reflita no que ocorre no Brasil também. Tenho visto dezenas de podcasts abordarem o tema. Infelizmente, é muito comum que o assunto seja abordado de forma pouco responsável. São afirmações e mais afirmações, sem evidências contundentes, apresentadas como se fossem verdade absoluta.
Há pontos de vista céticos sobre o assunto? Há, eles também aparecem nos podcasts. Contudo, o que tenho notado é que facilmente a discussão acaba sendo levada para o ridículo. Na opinião deste que vos escreve, essa é a pior estratégia que poderia ser tomada. Ao ridicularizar um relato, por exemplo, estamos perdendo uma ótima oportunidade de fazer as pessoas pensarem de um ponto de vista mais cético e científico. Do meu ponto de vista, é um ótimo momento para colocar em prática o ceticismo.
O valor didático da ufomania
Carl Sagan escreveu uma das maiores obras de divulgação científica de todos os tempos, o livro O Mundo Assombrado Pelos Demônios. É um clássico. Nesse livro se encontra o famoso “kit de detecção de bobagens”, um conjunto de ferramentas para o pensamento cético. Não irei reproduzir todas aqui, mas apenas algumas, de forma que você possa ponderar se tenho ou não razão ao dizer que estamos perdendo uma excelente oportunidade pedagógica ao recorrermos à ridicularização. Os exemplos abaixo são tentativas minhas de aplicar as ferramentas ao assunto UAP:
Entre as ferramentas:
Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos "fatos".
Exemplo: Embora múltiplos avistamentos possam ser interpretados como evidências independentes, seria muito interessante se tivéssemos confirmações independentes de fontes de naturezas diferentes. Fotos, vídeos, captura em radar, ou até mesmo eventuais fragmentos de um objeto. Quando confrontado com um relato anedótico, tente perguntar sobre essas outras fontes de evidência.
Argumentos de autoridade têm pouco peso — "autoridades" já cometeram erros no passado e o farão novamente no futuro. Talvez seja mais adequado dizer que, na ciência, não existem autoridades; no máximo, existem especialistas.
Exemplo: é muito comum no discurso ufológico encontrar o nome desse ou daquele cientista, frequentemente atrelado a afirmações como “ele/ela tem credenciais”. Ou seja, se alguém credenciado diz, então deve ser verdade. Quando apresentado a um argumento como esse, pode-se responder que há (provavelmente muito mais) pessoas com ótimas credenciais que refutam ou rejeitam os argumentos em prol de origem extraterrestre para UAPs. Isso fará como que a audiência compreenda que a autoridade em si não pode resolver a questão.
Considere mais de uma hipótese. Se há algo a ser explicado, pense em todas as formas possíveis de explicá-lo. Em seguida, imagine testes que possam, de forma sistemática, refutar cada uma das alternativas.
Exemplo: UAPs existem. O que se deve discutir são as suas origens. Esse deveria ser o ponto de partida. Descartar tudo como fenômenos atmosféricos ou de natureza obrigatoriamente humana, sem considerar alternativas, não é uma postura científica. Se você já sabe a resposta de antemão, então para quê investigar? Soa científico? Não para mim. Então, considere as alternativas, aplique outras ferramentas do kit e da ciência em geral para descartar hipóteses, até que, finalmente, se chegue a alguma solução potencial. Se nenhuma solução de natureza terrena for encontrada, isso não significa “aliens”. Na verdade, é muito comum simplesmente não sabermos do que as coisas se tratam. Às vezes um sincero “não sei” é a melhor resposta.
Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos da cadeia devem funcionar (incluindo a premissa), não apenas a maioria deles.
Exemplo: “O governo encobre tudo”, não é raro ouvir. É muito comum, na verdade. Esse tipo de pensamento leva qualquer tentativa de refutação de origem extraterrestre para o âmbito das teorias da conspiração. Para cada elo frágil se cria uma desculpa, que blinda a hipótese de ser refutada. Se não é passível de refutação, então qual é o ponto em discutir a evidência? Confrontar um crédulo dessa forma pode ser bastante efetivo. Se não for, pelo menos é intelectualmente honesto. A audiência precisa saber das armadilhas!
A Navalha de Occam. Esta regra prática nos orienta a, quando confrontados com duas hipóteses que explicam igualmente bem os dados, escolher a mais simples.
Exemplo: suponha que investigamos um avistamento, cuja existência fontes diferentes atestam. Tentamos, mas não conseguimos uma explicação imediata satisfatória. Vamos supor, pelo bem do argumento, que eliminamos todas as opções, exceto “tecnologia militar desconhecida” e “tecnologia extraterrestre”. Uma decisão deve ser tomada com base nas evidências disponíveis e outros critérios de natureza cética. Ou simplesmente não podemos tomar uma decisão. Lembre-se: não sabemos e nunca saberemos de tudo!
Para evitar qualquer confusão, devo dizer que não estou defendendo a ufologia como é praticada atualmente, nem pretendo transformá-la em uma ciência. Do modo que é geralmente conduzida, não passa de uma pseudociência. Meu objetivo é ressaltar outro lado: que é possível, sim, investigar o fenômeno de um ponto de vista sério, cético e científico. E que é possível usar a popularidade do tema para conversar com o público geral sobre ciência e ceticismo. Encerro essa seção com uma declaração de Loeb em entrevista ao The Guardian, que sumariza bem o meu ponto:
“O fato de o governo se preocupar e falar sobre objetos que não podem ser identificados deveria tornar esse tema uma área de investigação no mainstream da ciência. É nosso dever cívico, como cientistas, trazer clareza usando instrumentação e metodologia científica. Em vez de ridicularizar isso... os cientistas deveriam se juntar a mim nessa busca. Se insistirmos que tudo o que vemos deve se encaixar no conhecimento passado, nunca aprenderemos algo novo”.
Uma dose de realidade
Para não incorrer em injustiça, nem correr o risco de ser mau interpretado, nem soar otimista demais, cabe ressaltar alguns fatos sobre o tema. Primeiro, não é como se os cientistas e céticos nunca tenham levado a discussão a sério. O que acontece é que, como me disse Carlos Orsi, editor da RQC, é pouco provável que a pesquisa sobre os UAPs possa levar a avanço científico, como concluiu o Relatório Condon de 1968. O Relatório Condon foi o produto do Projeto UFO da Universidade do Colorado, uma iniciativa financiada pela Força Aérea dos Estados Unidos entre 1966 e 1968. O projeto foi conduzido pela Universidade do Colorado e liderado pelo físico Edward Condon. O objetivo principal do comitê era investigar cientificamente relatos de objetos voadores não identificados (ÓVNIs), em um período de intenso interesse público e especulação sobre o tema.
Segundo, atualmente, quando o tema está novamente sob o olhar do público, também temos o equivalente ao Relatório Condon. O Escritório de Resolução de Anomalias de Todos os Domínios (All-domain Anomaly Resolution Office — AARO) foi criado em 2022 com a intenção de abordar os UAPs utilizando “uma estrutura científica rigorosa e uma abordagem orientada por dados”. Em março de 2024, o AARO publicou o “Relatório sobre o Registro Histórico do Envolvimento do Governo dos EUA com Fenômenos Anômalos Não Identificados (UAPs) — Volume I”. É um relatório de 63 páginas, disponível online, então resumirei aqui suas principais conclusões:
“O AARO não encontrou evidências de que qualquer investigação do governo dos EUA, pesquisa patrocinada por instituições acadêmicas ou painel de revisão oficial tenha confirmado que qualquer avistamento de um UAP representasse tecnologia extraterrestre. Todos os esforços investigativos, em todos os níveis de classificação, concluíram que a maioria dos avistamentos era composta por objetos e fenômenos comuns, resultando de erros de identificação. Embora não seja o foco deste relatório, vale destacar que todos os esforços investigativos oficiais estrangeiros sobre UAP até o momento chegaram às mesmas conclusões gerais que as investigações do governo dos EUA.
“Embora muitos relatos de UAP permaneçam não resolvidos ou não identificados, o AARO avalia que, se mais dados e de melhor qualidade estivessem disponíveis, a maioria desses casos também poderia ser identificada e resolvida como objetos ou fenômenos comuns. Sensores e observações visuais são imperfeitos; a grande maioria dos casos carece de dados acionáveis ou os dados disponíveis são limitados ou de baixa qualidade.
“Os recursos e o pessoal dedicados a esses programas têm sido, em grande parte, irregulares e esporádicos, dificultando os esforços investigativos e prejudicando a transferência eficaz de conhecimento.
“A grande maioria dos relatos quase certamente é resultado de erros de identificação e uma consequência direta da falta de conscientização sobre o domínio; há uma correlação direta entre a quantidade e a qualidade das informações disponíveis em um caso e a capacidade de resolvê-lo conclusivamente”.
Claro que os defensores da invasão alien podem dizer que o AARO está escondendo o jogo, que na verdade o AARO sabe que eles estão entre nós. Mas daí vira teoria da conspiração. Outra história.
João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade