Proteínas e o Nobel de Química de 2024

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9 out 2024
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molécula

 

A complexidade da vida é, em grande parte, orquestrada por proteínas – moléculas versáteis, compostas por sequências de aminoácidos que desempenham papéis essenciais em praticamente todos os processos biológicos. Desde a construção de músculos até a transmissão de sinais nervosos, as proteínas são as principais ferramentas químicas que tornam a vida possível. Mas como elas assumem formas tão específicas e funcionais, a partir de uma sequência linear de aminoácidos?

Imagine um colar de pérolas, onde cada pérola representa um aminoácido. Existem 20 tipos diferentes de pérolas (aminoácidos), e a sequência em que você as coloca determina a "mensagem" final. No entanto, o colar não permanece esticado; ele se dobra de maneiras complexas para formar uma estrutura tridimensional única. É justamente essa forma específica que permite à proteína realizar sua função.

 

O paradoxo do dobramento

Nos anos 1960, o bioquímico Christian Anfinsen demonstrou que todas as informações necessárias para uma proteína se dobrar corretamente estavam contidas em sua sequência de aminoácidos. Isso levou à hipótese de que, se conhecêssemos a sequência, poderíamos prever a estrutura tridimensional da proteína. Parecia simples, mas havia um problema: a quantidade astronômica de possíveis conformações.

Para se ter uma ideia da dimensão desse desafio, se uma proteína “buscasse por tentativa e erro” assumir todas as suas conformações tridimensionais possíveis, levaria mais tempo do que a idade do Universo para que encontrasse sua forma funcional. No entanto, dentro da célula, esse processo ocorre em milissegundos. Como isso é possível? A resposta está em entender que o dobramento proteico não é um processo aleatório. As proteínas seguem caminhos preferenciais de dobramento, guiados por interações químicas que facilitam a formação da estrutura correta rapidamente.

 

Prevendo estruturas

Por décadas, cientistas tentaram desvendar esse mistério usando métodos experimentais como a cristalografia de raios X, que envolve a criação de cristais de proteínas e a análise dos padrões que emergem quando eles são bombardeados com raios X. Embora eficaz, esse processo é demorado, caro e não funciona para todas as proteínas.

A possibilidade de prever a estrutura de uma proteína apenas a partir de sua sequência de aminoácidos seria revolucionária. Isso permitiria entender rapidamente o papel de proteínas recém-descobertas, acelerar o desenvolvimento de medicamentos e abrir novas fronteiras na biotecnologia. Mas como superar o desafio de tantas possíveis conformações?

Foi nesse contexto que a inteligência artificial emergiu como uma ferramenta promissora. Em 2018, a equipe da DeepMind, uma empresa britânica de pesquisa em IA, liderada por Demis Hassabis e John Jumper, desenvolveu o AlphaFold, um sistema de IA capaz de prever estruturas de proteínas com uma precisão sem precedentes.

O AlphaFold utiliza redes neurais profundas, que são modelos computacionais inspirados no funcionamento do cérebro humano. Alimentado por vastas quantidades de dados de sequências de aminoácidos e suas estruturas conhecidas, o AlphaFold “aprendeu” padrões complexos que o permitem prever como uma sequência específica irá se dobrar.

De modo simplificado, este processo seria análogo a ensinar a uma pessoa a montar blocos de construção observando inúmeros exemplos. Quanto mais exemplos fornecidos, mais esse indivíduo começaria a reconhecer padrões e a “prever” qual peça se encaixa onde, mesmo em configurações completamente novas. Da mesma forma, o AlphaFold aprendeu a "intuição" do dobramento proteico.

No concurso bienal CASP (Critical Assessment of Protein Structure Prediction), que avalia a precisão de métodos de predição de estruturas proteicas, o AlphaFold surpreendeu a comunidade científica ao alcançar níveis de acurácia que antes pareciam inatingíveis. Em sua versão aprimorada, conseguiu prever estruturas com uma precisão comparável aos métodos experimentais tradicionais.

Essa conquista foi um momento divisor de águas na biologia molecular. De repente, pesquisadores em todo o mundo tinham acesso colaborativo a estruturas de proteínas que antes eram desconhecidas ou difíceis de determinar. Foi possível prever estruturas para quase todas as 200 milhões de proteínas conhecidas, disponibilizando esses dados para a comunidade científica.

 

Engenharia proteica

Enquanto o AlphaFold focava em prever estruturas a partir de sequências conhecidas, David Baker e sua equipe na Universidade de Washington desenvolveram métodos computacionais para projetar novas proteínas que não existem na natureza.

Seria como desenhar um objeto com uma função específica e, em seguida, descobrir como construí-lo a partir de peças básicas. Para entender melhor, pense nas proteínas como ferramentas especializadas. Na natureza, temos um conjunto limitado de ferramentas disponíveis. Com a engenharia proteica, é como se pudéssemos projetar novas ferramentas para tarefas específicas que antes não podíamos realizar. Por exemplo, se você tem um parafuso com um formato único e nenhuma chave de fenda existente consegue girá-lo, com a engenharia de proteínas podemos "construir" a chave adequada para esse parafuso.

Um exemplo notável foi a criação da Top7, a primeira proteína projetada inteiramente por computador. Utilizando o software de design de proteínas chamado RoseTTAFold, desenvolvido pelo próprio laboratório de Baker, os pesquisadores estabeleceram uma estrutura tridimensional desejada para a proteína. Em seguida, o software calculou qual sequência de aminoácidos seria necessária para que a proteína se dobrasse na forma prevista.

O processo envolveu:

Definição da Estrutura Alvo: Eles desenharam uma estrutura proteica que não correspondia a nenhuma proteína conhecida na natureza.

Cálculo da Sequência de Aminoácidos: O RoseTTAFold analisou milhões de possíveis sequências para encontrar aquela que teria a maior probabilidade de se dobrar na estrutura desejada.

Síntese e Validação Experimental: A sequência de aminoácidos proposta foi então sintetizada em laboratório. A proteína resultante foi produzida em bactérias e sua estrutura tridimensional foi determinada usando técnicas como a cristalografia de raios X.

A Top7 serviu como prova de que é possível projetar proteínas funcionalmente e estruturalmente estáveis que não existem na natureza, além de validar o potencial do software Rosetta. Isso abriu caminho para o design racional de proteínas com funções específicas.

As implicações desses avanços são vastas e entusiasmantes, abrangendo diversos setores que impactam diretamente nossas vidas. Na Medicina, estamos diante de um novo método de prospecção de biomoléculas, com a possibilidade de desenvolver proteínas terapêuticas sob medida para tratar doenças específicas. Isso pode impactar o tratamento de condições como câncer (proteínas projetadas para reconhecer e “atacar” células malignas com mais precisão e menos efeitos adversos), doenças genéticas (proteínas que compensem déficits, como enzimas substitutas para pacientes com doenças metabólicas hereditárias que carecem de enzimas essenciais), infecções (proteínas com ação antibacteriana ou com capacidade de inativação de vírus) etc.

Além da área médica clínica, estes avanços podem impactar processos industriais como no desenvolvimento de biocatalisadores mais eficientes (acelerar reações químicas na produção de medicamentos, reduzindo o tempo e os custos de fabricação, por exemplo) ou em substituição sustentável de catalisadores existentes, ajudando a catalisar reações, gerando menos resíduos poluentes. No próprio campo ambiental, novas enzimas podem ter o potencial de degradar contaminantes específicos no solo e na água (por exemplo, uma proteína que “quebre” o plástico em componentes biodegradáveis).

Essa capacidade de criar proteínas sob medida inaugura um novo mundo de possibilidades. Não estamos limitados às soluções que a natureza nos oferece; podemos, em um futuro não tão distante, inovar e desenvolver proteínas que atendam às necessidades específicas da sociedade contemporânea.

 

Convergência 

Os trabalhos dos laureados Hassabis, Jumper e Baker exemplificam uma tendência crescente na ciência: a convergência entre tecnologia da informação e biologia. A aplicação de inteligência artificial em biologia molecular não apenas auxilia a resolver problemas complexos, mas também expande nossa compreensão do que é possível. Essa sinergia entre disciplinas ressalta a importância de abordagens interdisciplinares na Ciência. Não se trata mais de físicos, biólogos ou informatas trabalhando isoladamente, mas sim de equipes multidisciplinares unindo forças para enfrentar desafios científicos mais complexos.

O Prêmio Nobel de Química de 2024 coroa o início de uma nova era na biologia molecular. Os avanços realizados pelos cientistas e suas respectivas equipes representam um importante marco científico e atraem nossos olhares para a crescente relação entre vida e tecnologia. Desvendar os segredos das proteínas é também decifrar um pouco mais nossas próprias vidas. Com esse conhecimento, teremos provavelmente novas ferramentas para o enfrentamento de grandes desafios da Humanidade - doenças, crises ambientais, escassez de recursos etc. Se aplicadas com princípios éticos sólidos e responsabilidade, estaremos diante de um futuro promissor.

 

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto)

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