O acaso e a evolução da complexidade

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26 ago 2024
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quebra-cabeças

 

Em tempos de podcast, a blogosfera respira com ajuda de aparelhos, é verdade. Contudo, ainda me submeto ao hábito ultrapassado de ler o que algumas pessoas escrevem por aí, especialmente cientistas. O biólogo evolutivo norte-americano Jerry Coyne escreve em seu blog “Why Evolution Is True” (Por que A Evolução é Uma Verdade), cujo nome é o mesmo de seu livro sobre evolução publicado em 2009. Aliás, recomendo a leitura. No blog, Jerry discute muitos assuntos, expõe suas visões sobre o mundo (muitas das quais discordo) e sobre ciência, especialmente biologia evolutiva (frequentemente, discordo também). Não raro, outros nomes da ciência moderna dão as caras por lá, na seção de comentários.

Um deles é o biólogo e militante do ateísmo Richard Dawkins, que por mais de uma década ocupou a cátedra de Compreensão Pública da Ciência da Universidade de Oxford. Ele é, sem dúvida, um dos maiores nomes da divulgação científica do último século. Seu trabalho influenciou a visão de muitos (a minha, inclusive) sobre o que é a evolução, desde os fatos básicos, passando pelos processos e mecanismos evolutivos.

Que a obra de Dawkins é vasta e valiosa, não posso e não pretendo negar. Mas reconhecer isso não é endossar tudo que ele diz. Longe disso: tenho críticas a Dawkins e sua visão (a meu ver) limitada da moderna biologia evolutiva. Por exemplo, sua obsessão por seleção natural leva facilmente ao problema do adaptacionismo descontrolado, que discutimos em outra coluna.

O interessante de acompanhar essa cena dos cientistas batendo papo na internet é que, por vezes, podemos contemplar situações curiosas. Num blogpost sobre a evolução do melanismo industrial na mariposa Biston betularia, Dawkins fez um comentário sobre um biólogo evolutivo não Darwinista, William Bateson, no qual ele diz ser “raro encontrar um cientista renomado tão catastroficamente, tão amplamente e claramente errado”. Como resposta, outro cientista, Donald Forsdyke, escreveu: “Raro? Um acabou de contribuir para este blog”. Parece uma acusação forte, mas consigo apontar um caso no qual o irascível Dawkins esteve “catastroficamente, tão amplamente e claramente errado”.

Um dos livros mais populares de Dawkins é “O Maior Espetáculo da Terra: As Evidências da Evolução”, publicado em 2009. É uma leitura bem interessante para aqueles que desejam se iniciar em biologia evolutiva e que estão, sobretudo, preocupados em entender os fatos básicos da evolução, bem como as evidências que a sustentam. De forma geral, as obras de Dawkins tratam muito mais sobre seleção natural e muito pouco sobre outros mecanismos. Mas, nesse livro em particular, ele fez uma afirmação problemática. Escreveu Dawkins:

“Conforme o tempo geológico passa, o genoma é submetido a uma chuva de desgaste sob a forma de mutações. Naquela pequena porção do genoma onde as mutações realmente importam para a sobrevivência, a seleção natural logo se livra das ruins e favorece as boas. As mutações neutras, por outro lado, simplesmente se acumulam, sem punição e despercebidas — exceto pelos geneticistas moleculares”.

O problema é o trecho destacado em itálico. É verdade: mutações neutras, que não afetam a sobrevivência ou a reprodução do organismo, tendem a se acumular no genoma ao longo do tempo. Como não são benéficas nem prejudiciais, a seleção natural não as elimina, permitindo que se acumulem. Também é verdade que podem ser estudadas, e são, pelos cientistas que “leem” as moléculas de DNA – biólogos moleculares, geneticistas. 

 

Deriva

Isso tudo pode passar a ideia de que tais mutações podem até ser úteis para os geneticistas e seus modelos de evolução, mas não são “realmente” um tipo de evolução que importa. Fica aqui a impressão de que o único tipo de evolução que realmente importa é a evolução adaptativa, isto é, por seleção natural. E isso simplesmente não é verdade. Tratarei de mostrar o porquê nos próximos parágrafos.

Há diversas formas de defender esse ponto, mas resolvi usar um conjunto de ideias não tão conhecidas pelo público, que atende pelo nome de Evolução Neutra Construtiva (ENC), ou Constructive Neutral Evolution (CNE) no original em inglês. Embora ideias relacionadas já existissem na literatura científica antes dos anos 1990, a formalização e generalização ocorreu em 1999, por Arlin Stoltzfus, que inclusive criou o termo em artigo publicado no Journal of Molecular Evolution.

Estruturas, processos e características biológicas desnecessariamente complexas parecem existir em abundância nos organismos. Basta investigar, por exemplo, vias bioquímicas de síntese ou degradação de moléculas, bem como complexos de proteínas com componentes demais, muitos dos quais são redundantes, ou seja, dispensáveis para a função da proteína no organismo. A ENC descreve justamente como essa complexidade pode surgir ou aumentar de maneira neutra. Isso significa que aumentos na complexidade não são necessariamente vantajosos, e que a seleção positiva (isto é, favorecimento de uma determinada variante vantajosa) não é sempre necessária para explicar esses aumentos.

As palavras “neutra” e “construtiva” no termo têm significados bastante específicos. A palavra "construtiva" refere-se ao aumento da complexidade, em contraste com "redutiva" ou "conservadora". Já o termo "neutra" não se refere à ideia comum de neutralidade absoluta, onde algo não traz vantagem ou desvantagem para o organismo portador da variante. Em vez disso, "neutra" se refere ao conceito de "neutralidade efetiva" da genética de populações.

Isso significa que uma característica, ainda que desvantajosa, pode se espalhar em uma população devido ao acaso, através da deriva genética. A duplicação de um gene, por exemplo, pode ser desvantajosa porque altera a quantidade de genes ativos e seus produtos. No entanto, se essa desvantagem for pequena o suficiente, a duplicação pode escapar aos “olhos” da seleção natural e se espalhar na população por acaso, especialmente em populações pequenas, onde a deriva genética tem mais influência do que a seleção natural. Esse é um fato básico da genética de populações.

Um exemplo hipotético talvez ajude a ver melhor como a ENC pode gerar complexidade. Imagine uma enzima "A" que catalisa uma reação bioquímica. Por acaso, essa enzima se liga à proteína "B". Ou seja, há uma interação entre A e B devido a mutações que ocorreram, digamos, no gene que codifica a proteína B. A formação de A + B, contudo, não afeta a função exercida pela subunidade A. Como essa interação é neutra em relação à sobrevivência e reprodução, ela pode se espalhar pela população, por deriva genética.

Com o passar das gerações, a enzima A pode adquirir mutações adicionais de modo que, se as subunidades fossem separadas, a enzima deixaria de funcionar. Essas mutações seriam prejudiciais se não houvesse o complexo A + B, mas na presença desse complexo, as mutações são neutras. Agora, a proteína B é necessária para suprimir o efeito dessas novas mutações, tornando o sistema A + B não só mais complexo do que A isoladamente, mas irredutivelmente complexo. Observe que não precisamos aqui invocar a atuação da seleção natural positiva. É possível que mais mutações venham a ocorrer de tal modo que a interação entre A e B se torne mais e mais essencial, isto é, A não consegue mais exercer sua função sem a presença de B.

 

Experimento

Enquanto eu preparava este texto, saiu na revista Science um novo estudo experimental sobre ENC. Entrei em contato com o primeiro autor do estudo, Philippe Després, que era doutorando na Faculdade de Ciências e Engenharia da Universidade Laval enquanto desenvolvia a pesquisa. Philippe, a quem sou grato pela disponibilidade, fez a gentileza de explicar a abordagem experimental e os resultados obtidos por ele e seus colaboradores.

Philippe me escreveu:

“Máquinas moleculares (complexos de proteínas) de bactérias 'simples' geralmente desempenham suas funções melhor ou tão bem quanto aquelas de humanos, embora tenham muito menos componentes. Quanto maior a população, mais eficiente pode ser a seleção natural. No entanto, a complexidade é geralmente maior em espécies com tamanhos populacionais efetivos menores, como os humanos”.

Philippe ressalta que, seguindo o modelo de ENC, mutações deletérias que venham a ocorrer após a duplicação de um gene levam à criação de uma relação codependente entre as duas cópias, de modo que agora são necessários dois genes para realizar uma função que antes era desempenhada por apenas um. Ele relatou que outros grupos de pesquisa começaram a identificar exemplos em que a evolução neutra construtiva poderia explicar a história evolutiva de alguns complexos proteicos. Como exemplo, estudos anteriores conduzidos pelo laboratório de Christian Landry, orientador de Philippe Després e coautor do estudo publicado na Science, mostraram que aumentos na complexidade ao longo do tempo frequentemente resultaram em máquinas moleculares menos resilientes.

Philippe, porém, não estava satisfeito. Há sempre novas formas de explorar uma questão:

“Como todo esse trabalho se concentrou em complexos que já estão nesse estado há milhões de anos, os eventos exatos que ocorreram ainda são incertos. A evolução neutra construtiva sempre foi uma explicação plausível, mas não havia evidências de que seria possível pegar uma máquina molecular existente e fazê-la passar por esse processo no laboratório. Isso é o que queríamos tentar!”

E foi exatamente isso que fez o time de pesquisadores. Ele prossegue:

“Escolhemos uma enzima existente da levedura de padeiro como nosso objeto de teste, a duplicamos e testamos milhões de combinações de mutantes para ver se alguma poderia se tornar codependente. Encontramos centenas de tais casos, muito mais do que nós (e a maioria dos cientistas) esperávamos. Usando experimentos de acompanhamento, pudemos mostrar que esse passo de complexificação atendia aos requisitos do modelo de evolução neutra construtiva. Também identificamos o mecanismo molecular pelo qual ambas as cópias se tornaram codependentes e descobrimos que ele poderia ser facilmente transferível para outros complexos. Em outras palavras, nosso resultado provavelmente não é apenas uma peculiaridade da proteína que estudamos, mas pode, em vez disso, ser mais universal. Em suma, esta é a primeira vez que o processo de evolução neutra construtiva pôde ser observado em tempo real, e isso fornecerá um excelente modelo para estudar suas nuances no futuro”.

Trouxe essa discussão sobre ENC como um ponto de vista alternativo (e frequentemente complementar) ao adaptacionismo. Ao darmos foco excessivo à seleção natural, podemos perder de vista a efetividade e elegância de outros mecanismos não adaptativos. Vimos, inclusive, que isso poder ser útil para refutar argumentos criacionistas sobre a complexidade irredutível de máquinas moleculares. Voltarei à complexidade irredutível e mecanismos não adaptativos num futuro próximo. Fique ligado!

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

PARA SABER MAIS

Muñoz-Gómez, S. A., Bilolikar, G., Wideman, J. G., & Geiler-Samerotte, K. (2021). Constructive neutral evolution 20 years later. Journal of molecular evolution89, 172-182.

Stoltzfus, A. (2012). Constructive neutral evolution: exploring evolutionary theory’s curious disconnect. Biology direct7, 1-13.

Stoltzfus, A. (1999). On the possibility of constructive neutral evolution. Journal of molecular evolution49, 169-181.

Gray, M. W., Lukeš, J., Archibald, J. M., Keeling, P. J., & Doolittle, W. F. (2010). Irremediable complexity?. Science330(6006), 920-921.

Lukeš, J., Archibald, J. M., Keeling, P. J., Doolittle, W. F., & Gray, M. W. (2011). How a neutral evolutionary ratchet can build cellular complexity. IUBMB life63(7), 528-537.

Dawkins, R. (2009). The greatest show on earth: The evidence for evolution. Simon and Schuster.

Després, P. C., Dubé, A. K., Picard, M. È., Grenier, J., Shi, R., & Landry, C. R. (2024). Compensatory mutations potentiate constructive neutral evolution by gene duplication. Science, 385(6710), 770-775.

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