Há quem exagere ao falar em seleção natural

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19 ago 2024
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King King

 

Já discutimos aqui como o caráter “criativo” da seleção natural foi a maior sacada intelectual de Charles Darwin. A seleção não só elimina, mas combina, cumulativamente, o que é favorável, e assim pode construir/criar um fenômeno prevalente na natureza — as adaptações. Sobre o poder da seleção natural, Darwin (1859, p. 84) escreveu:

“Pode-se dizer que a seleção natural está diariamente e a toda hora examinando, em todo o mundo, cada variação, mesmo a menor; rejeitando aquilo que é ruim, preservando e acumulando tudo o que é bom; trabalhando de modo silencioso e imperceptível, sempre e onde quer que surja a oportunidade, na melhoria de cada organismo em relação às suas condições de vida orgânicas e inorgânicas”.

De fato, a seleção natural é uma ideia muito poderosa. Isso não escapou aos arquitetos da Síntese Moderna, durante o período histórico em que diversos estudiosos reestabeleceram a supremacia da seleção natural. O naturalista Ernst Mayr, um dos mais importantes biólogos evolutivos desde Darwin, e cujo papel durante o período histórico da Síntese foi importantíssimo, escreveu em 1988 (p. 527) que a Síntese foi “uma reafirmação da formulação darwiniana de que toda mudança evolutiva adaptativa é devida à força direcionadora da seleção natural sobre a variação abundantemente disponível”. A seleção natural, portanto, deve ser usada para compreendermos os organismos que vemos ao nosso redor.

Pensando nisso, vamos refletir um pouco. Você já reparou que, de modo geral, os filhotes, na infância, tendem a ser menores do que seus genitores? Por que é assim? Sendo esta uma característica dos organismos, é válido tentar explicar isso em termos de seleção natural que, como vimos, não deixa nada passar batido, segundo o próprio Darwin. Certo? Algumas sugestões possíveis para esse problema são apresentadas a seguir.

Cripsis: Indivíduos pequenos devem ser mais difíceis de detectar para os predadores do que indivíduos maiores. Ou seja, filhotes menores terão maior vantagem.

Alocação entre descendentes: uma maneira óbvia de aumentar o potencial reprodutivo é produzir mais descendentes às custas do tamanho dos descendentes. Isto é, melhor ter mais descendentes com tamanhos menores do que poucos e maiores, supondo que a sobrevivência seja a mesma.

Alocação ao longo do tempo: disponibilizar recursos demais para reprodução imediata pode aumentar a probabilidade de morte do organismo genitor, assim reduzindo a aptidão. Portanto, se o número de “ninhadas” for mantido constante, mas o tamanho dos filhotes for reduzido, a mãe terá um aumento concomitante na probabilidade de reprodução futura, o que representa uma vantagem seletiva.

Dispersão: em diversas plantas e invertebrados, os jovens desempenham o papel principal na dispersão. Devido ao seu tamanho reduzido, eles se espalham mais facilmente de forma passiva (por exemplo, pelo vento ou carregados por outros organismos)  em comparação com indivíduos maiores. Isso também confere uma vantagem.

Conflito genitor-descendente: um genitor pode exercer um grande controle sobre seus filhotes enquanto eles são muito pequenos. Portanto, quanto menor for o tamanho da prole, maior será a influência dos genitores sobre os descendentes e, por conseguinte, maior será a aptidão dos pais.

Finalmente, partição de recursos: juvenis menores, que utilizam recursos distintos dos adultos, tendem a ter uma vantagem seletiva, particularmente em situações de baixa dispersão e alta densidade de adultos.

Temos, portanto, diversas explicações baseadas na ideia de seleção natural de por que a prole tende a ser menor do que seus genitores. Mas espera aí... Você não notou nada estranho?

Essa questão do menor tamanho da prole em relação aos genitores e a busca por explicações para esse padrão foi tema de um artigo satírico publicado no prestigiado periódico Evolution em 1983. É uma crítica genial e bem-humorada ao pensamento extremamente adaptacionista esposado por muitos biólogos, que tentam explicar tudo em termos de seleção natural. A história da publicação desse manuscrito foi coberta aqui. O autor do artigo, Norman Ellstrand, resumiu a história da publicação da seguinte maneira:

“Eu fui pós-doutorando com Janis Antonovics em 1978-79. Ele e seu grupo frequentemente satirizavam o 'Paradigma Adaptativo'; a discussão frequentemente terminava com Janis dizendo algo como 'alguém deveria escrever uma paródia usando uma característica que é universal, mas que não tem nada a ver com adaptação'. Essa foi a inspiração”.

Eu trouxe esse artigo para justamente para avisar o leitor dos perigos aos quais estamos sujeitos quando presumimos que todas as características dos organismos são adaptações, isto é, produtos da seleção natural. Na verdade, muito do que existe nos organismos não tem função e está ali por outras razões, seja como legado histórico evolutivo, ou devido a outros mecanismos evolutivos, como a deriva genética. Não caia na armadilha do ultra-adaptacionismo.

É claro que, ao investigar a evolução de uma determinada estrutura ou comportamento, devemos, sim, considerar hipóteses adaptativas — podemos até começar com elas. O que não podemos fazer é sempre desconsiderar hipóteses não adaptativas. Isso é um crime epistemológico. Por exemplo, no caso investigado satiricamente no artigo de Ellstrand, existe uma explicação não adaptativa óbvia: os filhotes são geralmente menores que os genitores simplesmente por motivos óbvios de limitações físicas.

Como sugeriu Michael Lynch, geneticista de populações, em seu artigo sobre “a fragilidade das hipóteses adaptativas para a origem da complexidade orgânica”, já que o conceito de seleção natural é bastante acessível devido sua relativa simplicidade, um entendimento básico de biologia comparada muitas vezes é visto como uma autorização para especulação evolutiva.

O cenário se torna ainda mais complicado quando a literatura científica à qual o público geral tem acesso é focada quase que exclusivamente em seleção natural. Os livros de Richard Dawkins e sua defesa do darwinismo, por exemplo, são a melhor demonstração disso. Embora sejam livros muito bons e que muito contribuem para o entendimento da biologia evolutiva, essas obras têm o indesejável efeito de reduzir a biologia evolutiva à seleção natural e à produção de adaptações.

Claro, podemos especular, podemos também imaginar narrativas que expliquem a origem histórica das características. E podemos, enfatizo novamente, dar primazia à seleção natural. Mas também é preciso saber separar imaginação de realidade, bem como traçar cenários alternativos que considerem outros processos evolutivos que não sejam estritamente adaptativos. Foi isso que Stephen Jay Gould e Richard Lewontin tinham em mente quando escreveram um famoso artigo publicado em 1979 e que inspirou as discussões que serviram de pontapé para o artigo de Ellstrand.

É importante reconhecer as limitações do pensamento adaptacionista, bem como os seus riscos. Eu certamente não sou “criacionista do pescoço pra cima”, mas tampouco substituo um Deus por outro. Tome cuidado para não transformar a seleção natural em um Deus! Encerro reverberando e concordando com Lynch (2007, p. 8603):

“Embora aqueles que promovem o conceito da evolução adaptativa das características mencionadas não sejam defensores do design inteligente, o peso da evidência para invocar uma mão orientadora todo-poderosa da seleção natural não deve ser menos rigoroso do que o exigido para um criacionista. Se a ciência evolutiva deve avançar, os padrões do campo não devem ser inferiores aos de qualquer outra área de investigação.

“Como as forças de mutação, recombinação e deriva genética agora são facilmente quantificáveis em várias espécies, não há mais justificativa para lançar suposições sobre cenários adaptativos sem avaliar a probabilidade de alternativas não adaptativas”.

 

João Lucas da Silva é mestre em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Pampa, e atualmente Doutorando em Ciências Biológicas na mesma universidade

 

PARA SABER MAIS

Ellstrand, N. C. (1983). Why are juveniles smaller than their parents?. Evolution, 1091-1094.

Lynch, M. (2007). The frailty of adaptive hypotheses for the origins of organismal complexity. Proceedings of the National Academy of Sciences, 104(suppl_1), 8597-8604.

Mayr, E. (1988). Toward a new philosophy of biology: Observations of an evolutionist (No. 211). Harvard University Press.

Darwin, C. R. 1859. On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. London: John Murray. [1st edition]

https://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F373&pageseq=1&viewtype=side

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