Não, o voo da abelha não "viola as leis da física"

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5 jun 2024
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abelha voando

 

“Perante a lei da física, uma abelha jamais poderia voar, mas ela não sabe disso. Ela vai e voa. E ela se esforça porque ela não nasceu com talento pra voar”.

O trecho acima é transcrição de parte de um vídeo motivacional que vem rodando pelos cantos da Internet. Eu já o recebi por dois grupos diferentes no WhatsApp na última semana. A mensagem é clara: se a abelha – que, supostamente, de acordo com as leis da física – não deveria voar, mas voa, por fruto do próprio esforço, então você também pode alcançar qualquer objetivo, basta querer e dedicar-se.

Ainda que o trecho em questão seja pequeno, impressiona a quantidade de problemas que incorpora. O primeiro é que as leis da física não proíbem o voo da abelha; o segundo é que, mesmo se “proibissem” e ela, ainda assim, voasse, isso não seria consequência apenas de desejo, esforço ou pensamento positivo na colmeia; e o terceiro é a boa e velha lambança que frequentemente ocorre quando se tenta usar a ciência para embasar uma peça motivacional. Vejamos.

 

O voo da abelha

O que talvez o vídeo que recebi desejasse indicar, embora não tenha feito isso explicitamente, é que a anatomia de uma abelha não permite que ela voe seguindo os mesmos princípios físicos que fazem voar um avião. No caso do avião, o segredo do voo está muito mais associado às asas do que aos motores: graças a um projeto minucioso – envolvendo principalmente o ângulo de ataque e o formato do perfil da asa –, o ar que passa por elas (que permanecem paradas, em relação ao corpo do avião) gera em sua face inferior uma pressão maior do que na superior, levando a um efeito resultante conhecido como “força de sustentação”, capaz de se opor ao puxão gravitacional da Terra.

Os motores, então, servem “apenas” para impulsionar o avião para frente, garantindo que o ar percorra as superfícies superior e inferior das asas sempre na velocidade apropriada. Tanto é verdade que é muito mais problemático, durante o voo, perder as asas do que o motor: sem motor, o avião ainda pode planar por algum tempo, dando ao piloto uma chance de conduzir o avião a um local seguro.

Para explicar o voo das abelhas, a conversa é outra. Elas executam um movimento específico com as asas, empurrando o ar para baixo com eficiência (diferente do que poderíamos fazer simplesmente colocando uma placa de isopor embaixo do braço e sacudindo-o para cima e para baixo, por exemplo). E, cada vez que isso ocorre, justamente por conta das leis da física – especialmente a terceira de lei de Newton, da ação e reação –, o ar gera uma força sobre a asa com sentido contrário, empurrando a abelha para cima. Some-se a isso o fato estonteante de que elas repetem esse movimento mais de 200 vezes por segundo, e temos os ingredientes necessários para compreender como surge a força de sustentação capaz de fazer esses insetos voarem.

 

As violações das leis da física

Até meados do século 19, eram conhecidos os planetas do Sistema Solar apenas até Urano, mas os astrônomos perceberam irregularidades no seu movimento orbital, que violavam as previsões obtidas a partir da já conhecida teoria gravitacional de Newton. Ora, se a mecânica newtoniana funcionava bem para outros planetas, por que não funcionaria para Urano? Então, os astrônomos se puseram a calcular qual deveria ser a órbita de um novo planeta, de modo que, se realmente existisse, poderia explicar as perturbações orbitais de Urano e ainda manter a gravidade de Newton válida. Em 1846, observações astronômicas confirmaram os cálculos: havia sido descoberto Netuno! Mas a gravidade newtoniana também não era capaz de explicar completamente o movimento de precessão orbital de Mercúrio ao redor do Sol, problema que só foi resolvido no início do século 20, quando entra em cena a Teoria da Relatividade Geral, proposta por Einstein.

Ou seja, “violações” da física newtoniana observadas nas órbitas de Urano e de Mercúrio não formaram evidências em favor da influência de desejos ardentes sobre os fatos dos Universo, mas sim pistas que conduziram a novas descobertas e a outras leis. Fenômenos que inicialmente se mostram como possíveis anomalias frente às leis conhecidas da ciência são muito úteis não para depor em favor do misticismo, mas como propulsores do conhecimento científico. Dúvida, inquietação e curiosidade são motores reconhecidos da ciência na sua jornada para compreender o mundo.

Portanto, mesmo supondo que não houvesse uma explicação científica conhecida para o voo da abelha, isso não seria suficiente para corroborar a existência do “poder do pensamento”. Aliás, como a própria prática científica nos ensina, qualquer um que desejar “provar” que o pensamento é mesmo capaz de manipular a natureza vai ter que se utilizar de metodologias apropriadas, como, por exemplo, demonstrar esses efeitos em experimentos cuidadosamente projetados, em ambientes controlados.

 

A ciência mal usada

O fato é que o tal do voo supostamente impossível da abelha não é nem a primeira, nem a última vez (acredito eu) que se utiliza a ciência para adornar um papo motivacional. Enquanto alguns podem encarar isso apenas como analogia, um recurso de linguagem que tem suas funções para ilustrar um argumento, é bem verdade que muitos gurus “esquecem” de deixar isso claro. O público, então, fica à própria sorte para concluir ou que o orador está fazendo apenas comparações curiosas, ou que “a ciência comprova” uma série de abobrinhas sem sentido, como esta de que “basta querer e se dedicar, que as coisas acontecem”.

Para piorar, os fatos científicos apresentados nos discursos motivacionais estão, por vezes, errados ou distorcidos. Outro exemplo nesse sentido é a anedota de que a NASA teria gastado muito dinheiro para desenvolver canetas especiais que podem escrever em ambiente de “gravidade zero”, ao mesmo tempo em que os soviéticos – e aí vem o papo coach: com sua motivação, criatividade e foco na solução e não no problema – simplesmente usavam lápis. No mundo real, o que realmente aconteceu foi que uma empresa privada dos Estados Unidos é que desenvolveu a tal caneta, e tanto a NASA quanto os soviéticos compraram centenas delas para usar em suas missões espaciais.

Outra vítima científica recorrente no cenário atual, tanto motivacional como de suposto respaldo a terapias alternativas, é a física quântica: partem de fatos concretos explicados por essa área da ciência sobre o comportamento de átomos, moléculas e partículas para tentar “comprovar” ideias que extrapolam completamente a validade dos fatos indicados. Por exemplo, o fenômeno quântico verdadeiro da “dualidade” mostra que mesmo partículas elementares possuem características ondulatórias (“vibracionais”, portanto).

Daí emana a proposta incorreta de que existe a vibração da saúde, a da doença, a da prosperidade, a do sucesso e assim por diante; e, ao apontar a problemática quântica genuína sobre o papel da medida e o colapso da função de onda, atira-se ao público o disparate de que, se mentalizarmos e acreditarmos intensamente, também poderemos criar (sim, “criar” mesmo) nossa realidade da forma como desejamos. Mais detalhes sobre isso, você pode ler no artigo em que relato o que encontrei ao participar de um congresso de saúde quântica em 2019.

As peças motivacionais podem ter sua importância, não é isso que se contesta aqui. Mas não é apropriado enganar ninguém com falsa ciência para incentivar a audiência a fazer alguma coisa. As abelhas voam, como vimos, justamente por causa das leis da física, e não apesar delas; mas, mesmo se aparentemente violassem essas leis, isso serviria como matéria-prima para novas descobertas científicas, não como prova de que o pensamento positivo (mesmo que na escala dos insetos) molda a realidade.

Há um outro animal que nos ajuda a finalizar a questão: o cácapo (Strigops habroptilus), uma espécie de papagaio que ocorre na Nova Zelândia. Tamanha é sua “crença” na capacidade de voar, que ele se projeta para o alto com “garra e determinação”, mas, diferente da abelha, ele de fato é fisicamente incapaz de voar, e por isso se esborracha no chão. Isso nos leva a concluir duas coisas: a primeira é que as abelhas voam porque podem voar; e a segunda é que é preciso ter muito cuidado para não mergulhar de cabeça no papo do guru, ou também se pode acabar com a cara no chão.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

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