Navegar pela internet em busca de soluções para saúde é perigoso para o corpo, a mente e o bolso. Multiplicam-se lojinhas online de caráter altamente suspeito – sem CNPJ, sem nome de profissional responsável, onde os únicos contatos são contas anônimas de WhatsApp ou Telegram – que vendem remédios e recursos (supostamente) terapêuticos baseados em ideias absurdas ou conceitos falhos, já testados e descartados pela ciência.
Um dos mercados subterrâneos que tem chamado a atenção de leitores da Revista Questão de Ciência é o de equipamentos de “medicina vibracional” e áreas afins, como a dos florais frequenciais. Segundo o guia “Alternative Medicine”, do médico e pesquisador Edzard Ernst, maior especialista mundial em estudos sobre terapias alternativas, “os pressupostos da medicina vibracional carecem de plausibilidade” e “não há evidência de qualidade que sugira que a medicina vibracional funcione melhor que um placebo”.
Mas que pressupostos são esses? Como todo sistema pseudocientífico, os proponentes são pródigos em discursos grandiosos e genéricos, mas extremamente tímidos (e enrolados) na hora de oferecer detalhes técnicos. A ideia grandiosa é de que “tudo é energia ou vibração”, logo preservar a saúde ou combater uma doença se reduz a “ajustar” a frequência vibracional da pessoa ou do ambiente em que se encontra.
A reboque dessa hiper-generalização vem uma profunda confusão conceitual a respeito de o que, afinal, “vibração” ou “frequência” significam, e em que contexto. Leituras intuitivas e informais (“a menina vibra de emoção”) e técnicas (“a luz azul vibra a uma frequência de 750 THz”) confundem-se e, num piscar de olhos, estados emocionais subjetivos e antenas de telefonia celular são tratados como uma coisa só. O caos resultante é extremamente libertador (qualquer um, afinal, pode afirmar qualquer coisa, num gerador infinito de conversa fiada) e também lucrativo.
Para que o caos soe plausível aos ouvidos do paciente desavisado, no entanto, é preciso dar ao campo uma aparência, ainda que ilusória, de estrutura. Em linhas gerais, a família de equipamentos, teorias e terapias que se agrega em torno do tema “vibracional” oscila (sem trocadilho) entre dois polos estruturantes: o da memória da água e o vitalista. A adesão a um não implica a exclusão do outro: a conversa fiada pode saltar de lá para cá ao gosto do terapeuta (ou do freguês). A únicas verdadeiras constantes são a hipergeneralização original e a flexibilidade conceitual infinita.
Memória da água
Esse polo afirma que “vibrações” – que, dependendo da modalidade, pode ir de ondas sonoras a radiação eletromagnética no espectro visível (ou seja, luz) – têm a capacidade de “transmitir”, ou “imprimir”, na água, no ar ou no corpo humano propriedades específicas de compostos químicos.
Assim, em vez de tomar uma aspirina, seria possível beber um pouco de água “energizada” com aspirina, por exemplo, ou receber a “frequência” de um antidepressivo transmitida por uma antena análoga à de um roteador de wi-fi.
A hipótese da memória da água foi proposta originalmente pelo pesquisador francês Jacques Benveniste (1935-2004), e depois abraçada pelo ganhador do Nobel de Medicina Luc Montagnier (1932-2022). Já tratamos desse assunto em detalhes em outros artigos, mas para resumir: os experimentos originais de Benveniste tinham falhas gravíssimas – uma investigação independente encontrou inúmeras delas – e o entusiasmo de Montagnier pelo campo (que cresceu na mesma medida em que ele se envolvia em causas suspeitas, como o movimento antivacinas) destruiu toda a boa reputação que o Nobel lhe havia trazido.
Até hoje, não existe evidência científica válida de que a água tenha algum tipo de “memória”, ou de que vibrações – mecânicas, eletromagnéticas ou o que quer que seja – possam induzir moléculas de água a assumir as propriedades químicas de outras substâncias.
Vitalismo
O segundo polo é o do vitalismo, ou das “energias sutis”. Despido do jargão (pseudo)científico em que se reveste, é simplesmente uma forma de pensamento mágico: a ideia de que os seres vivos têm algum tipo de “campo de energia” ainda desconhecido pela ciência, e que esse campo pode ser afetado, manipulado, reforçado, drenado etc. por intenções, desejos, emoções e sentimentos humanos.
Na introdução que escreveu para o livro “Vibrational Medicine”, clássico da área, de autoria do médico Richard Gerber (1954-2007), o físico William A. Tiller (1929-2022) especula que as “energias sutis” fariam a mediação entre estados emocionais, campos eletromagnéticos e vice-versa. Essa interação seria a base de uma “química etérea” que permitiria a interferência de intenções e estados mentais na realidade.
O problema com as ideias de Tiller (e de Gerber) é que não há razão para imaginar que tais “energias sutis” sequer existam, quanto mais uma “química etérea”. Esses conceitos têm menos sustentação na realidade do que unicórnios azuis da galáxia de Andrômeda – ao menos os unicórnios, em princípio, não violam leis fundamentais da física e talvez algum dia até venham a ser descobertos, quem sabe?
Às vezes o trabalho do pseudocientista japonês Masaru Emoto é citado em defesa da hipótese de que intenções humanas podem afetar sistemas físicos. Emoto teria demonstrado que cristais de gelo assumem formas diferentes dependendo das emoções dirigidas à água de que são feitos, mas tentativas de reproduzir seus achados de forma independente e com controles adequados não obtiveram sucesso.
A perspectiva baseada em vitalismo e “energias sutis” é essencialmente mágico-religiosa, não médica. Gerber dedica seu livro à “Hierarquia espiritual que silenciosamente trabalha para elevar a condição humana” e Tiller afirma que “somos todos elementos de espírito, indestrutíveis e eternos, e multiplexados no divino”.
Dor no bolso
As lojinhas online de produtos vibracionais – que vão de geradores de sons e cores a emissores de “ondas” não especificadas – cobram caro por seus produtos. Numa delas, um gerador de florais frequenciais – basicamente, algo que diz emitir ondas (eletromagnéticas, suponho) que vão transformar água pura em remédios florais – não sai por menos de R$ 7 mil. Fico imaginando que teste o cliente poderia realizar para saber se o processo funcionou, ou mesmo se o aparelho está fazendo alguma coisa. Enfim, como distinguir o aparelho real de uma caixa essencialmente vazia, só com alguns botões que fazem clic e luzes coloridas piscando do lado de fora.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)