Tarja magnética não transmite "frequência da saúde"

Artigo
24 mar 2023
fitas cassete

 

Diz um ditado popular que todo dia saem de casa um malandro e um otário, e quando os dois se encontram, sai negócio. Apesar da frase se aplicar a várias situações, nem sempre ela se estende a qualquer picaretagem que aparece por aí. Algumas vezes, porém, não existe dolo na venda de algum produto ou serviço mágico e, nesse caso, “malandro” talvez seja uma expressão por um lado injusta e, por outro, otimista demais.

Não é adequado começar um texto de comunicação de ciência expondo o leitor a juízos de valor de potencial ofensivo, ainda mais quando o objetivo é chegar ao público que consome o produto ou serviço mentiroso. É difícil, porém, expressar de maneira satisfatória a indignação causada por algumas bobagens que circulam por aí. Refiro-me, neste caso, a dois vídeos veiculados recentemente pelas redes sociais, usando uma ladainha sobre “ondas” e “frequências” para vender produtos enganosos.

Em um deles vemos alguém tentando vender um cartão comum, com tarja magnética, para curar os problemas da vida: “Esse cartão de inteligência artificial, eu consigo fazer nele o armazenamento das frequências, das vibrações e das ondas que eu preciso que você receba. Eu consigo fazer um cartão para facilitar o emagrecimento com frequências de compulsão, ansiedade [...] eu consigo fazer um cartão com frequências de ocitocina, dopamina, serotonina [...] não tem como você não receber a frequência do cartão [...] depois de gravarmos a frequência nele, essa tarja magnética vai ficar em contato com o corpo e o paciente fica recebendo as frequências”.

O segundo exemplar utiliza uma narrativa semelhante para vender um aparelho. O vídeo mostra um equipamento de onde saem alguns eletrodos que se fixam na pele: “ele [o criador da geringonça] armazenou dentro do aparelho todas as frequências vibratórias de vírus, de bactérias, de parasitas [...] todos que você imaginar. O aparelho identifica a frequência desse parasita no seu corpo e através de uma ressonância ele aniquila aquela frequência e os parasitas morrem”.

A Revista Questão de Ciência já publicou mais de um artigo abordando a questão das ondas eletromagnéticas (aqui, aqui e aqui). É conveniente, porém, repetir parte das explicações dos textos anteriores.

A radiação eletromagnética pode ser classificada de acordo com a sua frequência (a quantidade de oscilações da onda em um intervalo de tempo). Em ordem crescente de frequência, temos as ondas de rádio AM e FM, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios X e raios gama. A região do espectro correspondente à luz visível é uma estreitíssima faixa de frequência entre o infravermelho e o ultravioleta: a imensa maioria das frequências de radiação é invisível aos nossos olhos.

Dependendo da frequência, as ondas eletromagnéticas podem também ser divididas em dois grupos: radiação ionizante e não-ionizante. A partir do ultravioleta, a onda possui uma energia que permite que ela "arranque" elétrons de átomos e moléculas, transformando-os em íons – daí o nome, “ionizante”.

Essa alteração pode causar danos no DNA, resultando no aparecimento de um câncer. Radiação não ionizante, embora não cause alteração nos genes, também pode provocar algum dano dependendo, por exemplo, da sua potência e do tempo de exposição da pele. É só lembrar que algumas cirurgias utilizam lasers nos procedimentos.

Agora, sobre o uso do eletromagnetismo em tecnologias de armazenamento de dados. Desde as fitas cassetes, passando pelos discos rígidos (HDs) até os modernos solid state drives (SSDs), apesar da tremenda evolução na capacidade de armazenamento, o objetivo que se busca, em última instância, é o registro, e posterior recuperação,  de informações. Diferente de antenas de rádio, TV ou celular, que emitem ondas eletromagnéticas, captadas pelos respectivos receptores, os meios de armazenamento (fitas, discos etc.) não emitem sinal. Nesse caso, o eletromagnetismo é como uma impressora, que deixa uma marca que pode ser lida pelo equipamento adequado, assim como um livro impresso pode ser lido por quem conhece a língua em que foi escrito.

O embuste do “cartão milagroso” já começa, portanto, quando se diz que a tarja do cartão está emitindo uma onda eletromagnética proveniente do que está gravado lá – tarjas não são antenas emissoras. É importante, porém, dizer que todas as coisas com temperatura acima do zero absoluto emitem onda na região do infravermelho, mas para que isso tenha algum efeito relevante – aquecer o meio ao redor, por exemplo – é preciso que a fonte emissora tenha uma potência razoável. E no caso do cartão, não existe nada relevante.

Outra questão, muito mais grave, é dizer que o cartão, gravado com as frequências inexistentes, supostamente associadas a hormônios (ocitocina, dopamina e serotonina) e a transtornos psicológicos (compulsão e ansiedade), poderia substituir a administração real dessas substâncias e ajudar em tratamentos. A irresponsabilidade de propagar uma informação falsa, que pode fazer com que as pessoas larguem tratamentos sérios, deveria ser punida no rigor da lei.

A segunda engenhoca promete curar enfermidades através da ressonância. O aparelho utiliza o discurso de uma terapia alternativa chamada bioressonância. Diferentemente do cartão, porém, este aparelho emite de fato uma onda eletromagnética, mas que não interfere na saúde das pessoas conforme anunciado.

O fenômeno físico da ressonância é associado à frequência natural de vibração de um objeto, por exemplo. Uma onda sonora com a frequência natural de uma taça de vidro pode fazer com que a taça quebre, por causa da vibração. Um caso famoso do efeito da ressonância foi o colapso da ponte de Tacoma.

Apesar de o fenômeno da ressonância ser real, sua utilização no contexto da terapia mencionada não encontra respaldo em testes clínicos e, do ponto de vista de plausibilidade teórica, é improvável que uma onda não focalizada, transmitida ao longo do corpo, possa ter qualquer efeito em “todos os vírus, bactérias e parasitas que você imaginar”. Até o Cremesp, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, emitiu nota desautorizando qualquer tratamento com base nesse aparelho.

Além do efeito deletério relacionado ao Código de Defesa do Consumidor, esses produtos, como também as terapias relacionadas à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, podem fazer com que pessoas abandonem tratamentos sérios, ratificados pela ciência, e piorem consideravelmente suas condições clínicas. Já passou da hora de a Justiça e o poder público serem mais atentos e ágeis para coibir essas coisas.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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