Sensacionalismo científico e medo de adoçante

Artigo
7 mar 2023
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laboratório

 

Em menos de um ano após a minha revisão sobre os “impactos” do refrigerante diet na saúde, venho aqui, novamente, tratar de mais um “causo” de correlação envolvendo a utilização de um adoçante – no caso, o eritritol – e problemas cardiovasculares.

Para não repisar o terreno que já cobri no artigo anterior e me demorar na questão da segurança dos adoçantes –  até o momento, as evidências apontam que sim, são seguros –, acho mais interessante tratarmos tanto do estudo em questão quanto da forma que foi tratado na mídia, e tentar entender como a ânsia por noticiar de modo rápido mina a confiança do público nas próprias pesquisas.

 

O que é eritritol?

O eritritol é uma molécula com poder adoçante que varia entre 60% a 80% do açúcar. Além disso, é classificado como de baixa caloria e está presente – em baixas quantidades – em algumas frutas e vegetais. Por se tratar de um edulcorante natural, é possível obtê-lo a partir da hidrólise enzimática – reação onde uma enzima quebra uma molécula utilizando água – de amido de milho ou trigo, resultando em glicose que, futuramente, será fermentada por leveduras, culminando em eritritol e outros compostos.

Vale destacar que esse edulcorante não apresenta efeito cariogênico (não promove ou contribui para o aparecimento de cáries) e pode ser utilizado por pessoas com diabetes, visto que não gera impactos na glicemia e nem na insulina. Contudo, é necessário ressaltar que se consumido em excesso pode gerar desconforto gástrico, gases e diarreia.

Por fim, como observado por MAZI, T. (2023), o eritritol também é produzido endogenamente (pelo próprio organismo). Esse é um detalhe essencial. 

 

O estudo

Witkowski, M. et al. (2022) realizaram uma análise das moléculas presentes em amostras de plasma sanguíneo cedidas por 1.157 voluntários que estavam realizando cateterismo cardíaco – um exame que investiga possíveis obstruções das artérias, avalia o funcionamento das valvas (estruturas nos vasos que mantêm o sangue fluindo sempre na direção certa) e do músculo cardíaco.

Com essa informação, os autores identificaram quais dos compostos detectados no plasma estavam associados a ECAM (eventos cardiovasculares adversos importantes, caso da morte, infarto, acidente vascular encefálico, entre outros). Durante a busca, encontraram diversos polióis – a família de moléculas orgânicas à qual pertence o eritritol –, inclusive alguns que são utilizados em produtos processados e cetogênicos. Contudo, o que mais se destacou foi o eritritol, no topo da lista das moléculas associadas a ECAM. Com o intuito de aprofundar esses achados, os pesquisadores realizaram outros dois estudos, agora envolvendo voluntários que apresentaram algum problema cardiovascular. O primeiro foi denominado US Cohort, com 2.149 voluntários. O segundo, European Cohort, teve 833 voluntários. As pesquisas foram realizadas em centros especializados em lidar com doenças cardiovasculares e fatores de risco para essas doenças, caso de diabete tipo 2 e obesidade.

Os autores observaram, em ambos os grupos de voluntários, que os níveis circulantes de eritritol eram superiores nos indivíduos que apresentavam doenças cardiovasculares. Resultados semelhantes foram encontrados em indivíduos que experimentaram algum incidente de ECAM num acompanhamento feito ao longo dos três anos seguintes. Análise estatística mostrou ainda que havia uma maior probabilidade de um incidente cardiovascular ocorrer quando os níveis de eritritol estavam elevados.

Com base nessas associações e após realizarem diversos outros estudos, os autores concluíram que níveis aumentados de eritritol contribuem diretamente para um aumento no risco de trombose, verificado em modelos animais.

Por fim, os autores concluem que são necessários mais estudos que examinem os efeitos dos adoçantes artificiais no longo prazo e, especialmente do eritritol, sobre o risco de ataques cardíacos e infartos, particularmente nos pacientes mais expostos a doenças cardiovasculares.

 

O que tudo isso significa?

Apesar de ter passado por uma revisão por pares e ter sido publicado na Nature, há diversas minudências que apontam a nudez do rei.

Primeiro, trata-se de um estudo observacional: ou seja, o máximo que se pode concluir é uma possível correlação entre o eritritol e a ocorrência de problema cardíaco. Isso, porém, não significa que um evento seja causado pelo outro. Como já tratamos inúmeras vezes na revista, correlação não é causalidade. Mais detalhes a respeito, você encontra aqui, aqui e aqui.

Segundo, lembra quando mencionei que o eritritol também é produzido naturalmente, pelo próprio corpo? O nível de eritritol natural aumenta em casos de estresse oxidativo e hiperglicemia, dois fatores relacionados a doenças cardiovasculares. Igualmente importante, níveis aumentados de eritritol circulante servem como um biomarcador preditivo para o desenvolvimento de doenças crônicas, como diabete tipo 2 e, pasme, problemas cardiovasculares. Em outras palavras: gente com maior risco de desenvolver, ou que já apresenta, doenças cardiovasculares tende a apresentar um nível aumentado de eritritol – que independe do consumo de adoçantes.

Este fato nos leva a perguntar: como os autores do material na Nature sabem de onde veio o eritritol que estão detectando, se do próprio corpo dos doentes ou do consumo de produtos edulcorados?

Acredito que da mesma forma que o meme “Não temos provas, mas temos convicção”. Brincadeiras à parte, não têm como saber, visto que não verificaram os hábitos alimentares dos voluntários e nem diferenciaram o eritritol endógeno (do corpo) do exógeno (consumido).

Se não bastasse esses erros crassos, há um problema flagrante de alocação dos participantes do estudo. O grupo que apresentou os maiores níveis de eritritol circulante e maiores riscos de ECAM  foi composto por pacientes mais velhos (média de 70 anos), com maiores porcentagens de diabetes mellitus (36,6%), doença arterial cardíaca (85,0%), insuficiência cardíaca (37,9%) e histórico de ataque cardíaco (50,1%). Todas características que também contribuem para causar os problemas que os autores esperam descarregar nas costas do adoçante.

 

A notícia

Realizando uma síntese da matéria publicada pela CNN no dia 28 de fevereiro de 2023, “Adoçante zero calorias está associado a ataque cardíaco e infarto, aponta estudo”.

Os jornalistas informaram, com base na pesquisa, que um substituto do açúcar chamado eritritol foi associado a coágulos sanguíneos, infartos, ataques cardíacos e morte.

De acordo com o autor líder do estudo e diretor do Centro de Diagnóstico e Prevenção Cardiovascular, Stanley Hazen, “o grau de risco não foi moderado”, e continua: “caso o nível sanguíneo de eritritol esteja nos 25% do topo, em comparação com os 25% do fundo, há duas vezes mais risco de ataque cardíaco e infarto. Este achado demonstra que o eritritol elevado está no mesmo patamar que outros fatores de risco cardíaco, como a diabetes”.

Após isso, a matéria apresenta a resposta do Calorie Control Council (uma associação internacional que representa os interesses das indústrias que produzem comidas e bebidas de baixa ou com calorias reduzidas). Ali, o diretor executivo Robert Rankin ressalta que os resultados apresentados pelo estudo contradizem décadas de pesquisas científicas que demonstram a segurança dos adoçantes de baixa caloria. Ele salienta que os achados não devem ser extrapolados para a população geral, visto que os participantes da intervenção já apresentavam um maior risco de eventos cardiovasculares.

O mesmo padrão de cobertura foi seguido pela maior parte da mídia nacional: um alarde desnecessário em cima de um estudo de correlação medíocre e repleto de pontos cegos que enfraquecem até mesmo as conclusões que poderiam, honestamente, ser sugeridas pelo resultado. Mas não é possível culpar os veículos – pelo menos dessa vez –, dado que os principais insufladores de medo foram os próprios pesquisadores. Isto fica nítido neste trecho: “A ciência precisa verificar o eritritol a fundo, dado que a substância está amplamente disponível. Se ela é perigosa, precisamos saber”. E neste: “Eu normalmente não faço alardes desta natureza. Mas desta vez, acredito que devemos prestar atenção com bastante cuidado”.

 

Heróis e vilões

Para entender os efeitos que alegações indevidas acarretam na área da nutrição, KININMONTH, A. et al. (2017) investigaram a qualidade das notícias de nutrição publicadas por cinco jornais populares do Reino Unido, seis dias por semana durante seis semanas do verão de 2014.

Ao todo, foram incluídos 141 textos jornalísticos sobre nutrição. A nota de qualidade média ficou em torno de 2 pontos (o máximo que um artigo poderia receber era 17 e o mínimo, -12). Trinta e um porcento das publicações foram consideradas de baixa qualidade. Textos não assinados, ou que focaram em obesidade ou comidas processadas, foram os que apresentaram as notas de mais baixa qualidade.

Os autores concluem que apesar dos avanços na cobertura do tema, problemas persistem. Pesquisas em saúde continuam sendo mal interpretadas; resultados preliminares são reportados como “descobertas do século”. Por conta disso, afirmam que novas medidas devem ser tomadas para melhorar a qualidade da cobertura da nutrição pela mídia e minimizar os danos à saúde pública.

Por fim, eles acreditam que três medidas seriam fundamentais para esta melhora de qualidade: “Primeiro, nós propomos que os jornalistas recebam treinamento adequado em assuntos envolvendo método científico e saúde. Segundo, os editores dos jornais deveriam considerar publicar um número menor de artigos, de alta qualidade e baseados em periódicos científicos. Terceiro, pesquisadores, profissionais da saúde, universidades e assessores de imprensa são a chave para assistir na transmissão de informação clara...”

De modo semelhante, IHEKWEAZU, C. (2023) realizou um estudo que investigou a prevalência de informações conflitantes sobre nutrição e saúde na edição online de The New York Times de 1996 até 2016. A amostra final incluiu 375 artigos, onde 228 trataram da relação entre dieta e saúde. Destes,12,7% conflitam entre si.

Observou-se que certos constituintes da dieta apresentaram relação volátil com algum desfecho de saúde, podendo apresentar associação positiva, negativa ou neutra, dependendo da notícia. Um exemplo é a relação entre o álcool e o câncer de mama: esta associação, tal como noticiada no Times, sofreu diversas mudanças no período de alguns meses.

Se não bastasse isso, foi observado que itens ligados tanto a um desfecho positivo quanto a um desfecho negativo de saúde poderiam gerar mensagens conflitantes, tornando a aderência a um alimento ou dieta mais desafiador, principalmente naqueles com menor conhecimento de ciência. 

A autora ressalta que isto não é de todo mau, dado que o conhecimento sobre dietas e saúde evolui na medida que novas pesquisas são conduzidas. Contudo, ressalta que pesquisadores, jornalistas e assessores de imprensa devem realizar um trabalho em conjunto para minimizar os impactos do conflito em informações nutricionais.

Mauro Proença é nutricionista 

 

 

REFERÊNCIAS

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WITKOWSKI, M. et al. The artificial sweetener erythritol and cardiovascular event risk. Nat Medicine (2023). https://www.nature.com/articles/s41591-023-02223-9.epdf?sharing_token=G-V9p_P9VF_NrlyxWWbIgtRgN0jAjWel9jnR3ZoTv0MTnVt_Yzm2YDkmKtSZJOysYZlROr0ymfAdj9yPHH8bMVWpKjhPzPeMT8zTG9DpNMmnfRfOqNqOH8PhwI2X9sxfHMa-Tpawl-dyIWq9WdTUO2lqDJWIHLoFK3aG5AGi1YhJA9wBG1MP6-JY2bDGUM7uqt1wx64p5HMOZY0cvojnNQ%3D%3D&tracking_referrer=www.cnn.com

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