A mídia e a física do “não é bem assim”

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1 mar 2023
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O sensacionalismo e exagero das manchetes na mídia generalista não atingem só áreas como saúde e nutrição, em que estudos muito limitados ou ainda em fases iniciais, nas bancadas dos laboratórios ou com animais, logo se transformam na última esperança de cura de doenças como Alzheimer ou câncer, ou a dieta que é o segredo para uma vida longa e saudável, com pele jovem e sem calvície. A física e a astronomia também são alvos frequentes de estudos e textos que, no caminho da academia à mídia, veem seus resultados exagerados, contribuições sobrevalorizadas ou hipóteses superestimadas, em apresentações que simplificam em demasia seus temas e fenômenos.

É o caso recente de um par de estudos publicado em dois dos mais prestigiosos periódicos internacionais na área de astrofísica, o The Astrophysical Journal e The Astrophysical Journal Letters, ambos editados pela IOP Publishing, braço do Instituto de Física (IOP, na sigla em inglês), organização dos profissionais do campo da física no Reino Unido e Irlanda, em parceria com a Sociedade Astronômica Americana (AAS, também na sigla em inglês). Neles, um grupo de pesquisadores liderado por Duncan Farrah, da Universidade do Havaí, defende a ideia de que a chamada “energia escura” - a misteriosa “força” apontada como responsável pela aceleração da expansão do Universo, observada e relatada pela primeira vez em 1998 – viria dos buracos negros supermaciços encontrados nos núcleos galáxias, objetos extremos caracterizados justamente por sua imensa atração gravitacional, da qual nem a luz consegue escapar.

Divulgados pelos setores de comunicação social das instituições de alguns de seus autores, como a Universidade do Havaí e o Imperial College de Londres, os estudos e sua hipótese foram parar na mídia especializada, em sites como Space.com e o da revista New Scientist, além de jornais como o britânico The Guardian. Mas, mesmo tratadas de maneira condicional, as propostas atraíram a atenção, e críticas, da comunidade científica da área. E tamanha foi a polêmica que até a prestigiosa revista Science dedicou parte de sua seção de notícias à discussão.

No geral, os cientistas especializados receberam a ideia com grandes doses de ceticismo. “O que eles estão propondo não faz sentido para mim”, resumiu Robert Wald, físico teórico da Universidade de Chicago, falando à Science. “Não vejo maneiras que seja concebível que tais objetos (os buracos negros supermaciços) sejam relevantes à energia escura observada”. Ou, como respondeu William Kinney, cosmologista e professor do Departamento de Física da unidade de Buffalo da Universidade do Estado de Nova York, à afirmação do Guardian de que “os buracos negros contêm a energia que alimenta a expansão do Universo” no Twitter: “não, eles não contêm”.

 

Hype acima da relevância

É a ciência do “não é bem assim”, com universidades, instituições, pesquisadores, editoras e veículos de imprensa alimentando um sistema que premia o “hype” e a atenção do público sobre a qualidade, relevância e precisão do conhecimento produzido na academia. Na astronomia, por exemplo, é frequente destacarem a mais remota possibilidade de envolvimento de extraterrestres nos mais diversos fenômenos astronômicos observados nos últimos anos.

E são muitos os exemplos, como na passagem do objeto interestelar Oumuamua pelo Sistema Solar em 2017, que o físico teórico e professor do Centro de Astrofísica da Universidade de Harvard Abraham “Avi” Loeb diz ter sido uma sonda alienígena, ou que uma superestrutura tecnológica conhecida como esfera Dyson seria responsável pela variação no brilho da estrela KIC 8462852, que ficou conhecida como “Estrela de Tabby”. Ou, ainda, quando um grupo de pesquisadores sugeriu que a detecção do composto fosfina na atmosfera de Vênus seria sinal da existência de vida no planeta.

Voltando à física de altas energias, também temos os casos do Grande Colisor de Hádrons (LHC, na sigla em inglês), o maior e mais poderoso acelerador de partículas em funcionamento no mundo, e sua principal “descoberta”, o bóson de Higgs, anunciada em 2012. Antes mesmo de ser ligado, ainda em 2006 o LHC foi alvo de processo que buscava impedir sua operação baseado em boatos de que suas colisões poderiam criar buracos negros microscópicos que logo cresceriam, consumindo a Terra em um evento apocalíptico. Rumores que persistem até hoje, inclusive de que isso já aconteceu no “fatídico” ano de 2012, com o planeta e todos seus habitantes tendo sido substituídos por uma simulação, num exemplo global do chamado “efeito Mandela”.

Já o bóson de Higgs ganhou as manchetes a reboque de um apelido que desagradou tanto cientistas quanto religiosos: “partícula de Deus”. Teorizado nos anos 1960 por três grupos independentes de pesquisadores, entre eles o físico britânico Peter Higgs, que acabou lhe emprestando o nome, o bóson era a última das 32 partículas fundamentais do Universo (entre quarks, elétrons, neutrinos e outras) que compõem o chamado “Modelo Padrão” da Física que ainda não havia sido detectada até então. De acordo com a teoria, sua função é mediar a existência do chamado “campo de Higgs”, que seria responsável por conferir massa às demais partículas.

Nada a ver com Deus, mas o que não impediu que o bóson de Higgs ganhasse um apelido com conotação divina, fruto da esperteza de um editor frente a uma imprecação de físicos frustrados com a dificuldade em detectá-lo. No início dos anos 1990, o físico experimental americano Leon Lederman, em parceria com o escritor de ciência Dick Teresi, escrevia um livro de divulgação científica sobre a história da física de partículas em que queria chamar o esquivo bóson de “partícula maldita” (do inglês “goddamn particle”). Seu editor rechaçou a proposta, mas viu aí uma oportunidade, tirando a maldição no apelido da partícula, que foi parar no título da publicação - “The God Particle: If the Universe Is the Answer, What Is the Question?” (“A Partícula de Deus: Se o Universo é a Resposta, Qual é a Pergunta?”, em tradução livre) - e com a qual ela se popularizou.

“Exagerar resultados ou a importância de uma proposta é uma estratégia cada vez mais comum em toda ciência, não só na física”, diz o físico George Matsas, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “O tempo da ciência em geral é muito mais longo do que o do pesquisador, que numa carreira de 30 anos que ser promovido, virar professor titular, reitor. E isso faz com que a comunidade científica acabe valorando seu trabalho muito por seu impacto imediato”.

Assim, Matsas vê na busca por visibilidade a motivação por trás de muitas propostas que ganham as manchetes na física e na cosmologia, como no caso do estudo associando a energia escura aos buracos negros.

“Não vejo qualquer chance desta hipótese ter a ver com a natureza. É algo tão remoto que surpreende este estudo ter saído numa boa revista”, critica. “É o tipo de trabalho que especula sobre uma especulação. E quando você faz uma hipótese especulativa baseada em outra hipótese especulativa, a chance de você estar certo é muito pequena. Mas é algo que se tornou uma prática comum na física de altas energias. Existem muito poucos dados observacionais, então há muito espaço para especular, e nada impede uma pessoa de vir com uma hipótese absurda”.

O professor da Unesp conta que são tantas as perguntas em aberto neste campo que uma piada corrente entre os cientistas da área é que o número de estudos sendo publicados é tão grande que se fossem empilhados, a pilha cresceria mais rápido do que a velocidade da luz. “Mas não tem problema de que isso viole a Teoria da Relatividade (que, entre outras previsões, diz que a velocidade máxima do Universo é a da luz no vácuo), pois esta pilha não carrega nenhuma informação”, completa.

Para Matsas, tampouco é responsabilidade da mídia que estas hipóteses absurdas cheguem ao público em geral.

“Não é a mídia que vai consertar o sistema. Ela publica o que seja mais hype, mais sexy, o que vai atrair mais público, não interessa o quê”, avalia. “Quem deveria estar fazendo esta triagem, este filtro, é a comunidade científica. É, novamente, o caso deste paper, que mesmo quase sem nenhuma plausibilidade chegou tão longe. O que temos que questionar é mais por que ele chegou a ser publicado numa boa revista acadêmica, e não a notícia no jornal”.

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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