Vitamina D: panaceia ou paranoia?

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26 jan 2023
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Como todos devem se lembrar, no auge da pandemia houve inúmeros ensaios clínicos que buscaram determinar a relação entre vitamina D, infecção pelo coronavírus e o grau de severidade da doença.

Um exemplo disso foi a revisão sistemática e metanálise realizada por Ghasemian, R. et al. (2021), composta por 23 ensaios clínicos, totalizando 11.901 participantes. Os pesquisadores viram que grande parte dos pacientes acometidos pela COVID-19 também apresentava DEFICIÊNCIA de vitamina D. Além disso, identificou-se que os deficientes para a vitamina apresentavam até três vezes mais chance de serem infectados pelo SARS-CoV-2 e cinco vezes mais chance de evoluírem para uma condição severa de COVID-19. Contudo, não houve uma associação significativa entre o nível de vitamina D no sangue e mortalidade.

Esse foi o gatilho para a criação de um marketing prometendo “aumentar/turbinar” a imunidade por meio do consumo de suplementos vitamínicos. Segundo a Alanac (Associação dos Laboratórios Farmacêuticos nacionais), a venda de vitamina D cresceu 93% entre abril de 2020 e abril de 2021. A estratégia, portanto, gerou resultados positivos para a indústria da “Big Wellnes” – caso não tenham lido, sugiro que leiam o texto do Cesar Baima (jornalista e editor-assistente da RQC) sobre o assunto, um dos mais incríveis do ano de 2022.

Contudo, há uma questão que persiste: os pesquisadores observaram que pessoas com deficiência de vitamina D tinham risco de sofrer com formas mais graves da doença. Então, para esse subgrupo específico, a suplementação vitamínica poderia ser benéfica. Mas será que isso vale também para pessoas que já têm nível normal de vitamina D?

Dando um breve spoiler: não!

 

Mas como chegamos aqui?

Eu tenho uma hipótese sobre certezas da vida. A primeira é que nós todos morreremos algum dia. A segunda, por sua vez, é que, independentemente de onde estejamos, a pseudociência estará lá para nos estressar.

Para corroborá-la, revelarei o presente que recebi no inimigo oculto: o livro chamado “Além da Vitamina D”, escrito por Leda Al Debes e com o prefácio do Dr. Cicero Gali Coimbra, criador do “protocolo Coimbra” para doenças autoimunes.

Compartilharei um pequeno compilado de falácias que me fizeram sofrer ao longo da leitura. Espero que gostem.

“Esses depoimentos trazem a esperança, cada vez mais correta, de que a assim chamada ‘medicina baseada em evidências’ inevitavelmente será (e progressivamente está sendo) substituída pela ‘medicina baseada na etiologia’, ou, seja, fundamenta no conhecimento dos mecanismos e no combate à causa da doença”. Falácia de amostra não representativa: como alguns depoimentos selecionados podem demonstrar que uma conduta é mais correta do que outras? Procurando bem, é possível encontrar “clientes satisfeitos” de qualquer coisa. É exatamente para evitar esse tipo de viés que a medicina baseada em evidências busca apoiar-se em estatísticas obtidas de grandes amostras.

“Como exemplo denunciador da situação em que vivemos, basta que sejam lidas as declarações de personalidades como Richard Horton (editor-chefe da renomada revista médica The Lancet, sediada na Inglaterra), em 2015: “Metade de toda a literatura médica é falsa”. Sim, Richard Horton usou essa frase. Contudo, isso é só metade do que ele disse. Eis a versão completa, em tradução livre: “O caso contra a ciência é claro: grande parte da literatura científica, talvez metade, pode não ser verdadeira. Afligida por estudos com baixíssimas amostras, análises exploratórias inválidas, efeitos minúsculos e conflitos de interesses flagrantes. Junto a isso, há uma obsessão por buscar tendências com importância dúbia, a ciência voltou-se à escuridão. Como um participante disse ‘métodos pobres dão resultados’”. Uma flagrante citação seletiva. Aliás, a crítica aos “estudos com baixíssimas amostras, análises exploratórias inválidas, efeitos minúsculos e conflitos de interesses flagrantes” serve como uma luva à tal “medicina baseada em etiologia” que o livro prega.

Antes que os ávidos defensores deste protocolo perguntem: “Por que você não falou dos diversos relatos presentes no livro que comprovam a eficácia da vitamina D?”. Simples: não comento experiências anedóticas. Além de não serem evidências científicas, revolta-me o uso de pessoas fragilizadas para a promoção de um tratamento não comprovado cientificamente.

 

A vitamina, afinal

Apesar de ser denominada como vitamina lipossolúvel – solúvel em gorduras –, também podemos considerá-la um hormônio, dado que ela pode ser obtida tanto através da alimentação quanto por produção endógena.

Sabe aquela história de ficar uns quinze minutinhos no Sol? Então, essa é a forma mais “simples” de sintetizar a vitamina D (também conhecida como calciferol). Contudo, não é a única. Também é possível obtê-la por meio da alimentação ou suplementação – lembrando, suplementação só por indicação de um profissional habilitado, caso haja necessidade.

Após a vitamina D ser sintetizada, é necessário ativá-la para que exerça suas funções. Isso ocorre no fígado e nos rins, dando origem à molécula1,25 di-hidroxicolecalciferol ou, para os íntimos, calcitriol.

Na forma ativa, exerce atividade imunomoduladora (auxiliando nas respostas às infecções) e estimula a diferenciação celular (processo biológico que regula a expressão de um grande número de genes) em diversos tecidos. Além disso, a vitamina D é fundamental na homeostase do cálcio e do fósforo. O calcitriol aumenta a absorção de cálcio e fósforo no intestino delgado e a reabsorção de cálcio nos rins, diminuindo a excreção do mineral pela urina – fundamentais para a manutenção da massa óssea.

O calcitriol também vem sendo associado com a secreção de insulina pelas células B pancreáticas; com a síntese e secreção de hormônios da tireoide e paratireoide; e com a regulação da pressão arterial pelo sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona (SRAA).

 

Deficiência 

Como observado por Siddiqee, M. et al. (2021), muitos estudos apontam que 1 bilhão de pessoas apresentam deficiência em vitamina D, e 50% da população global, aproximadamente, apresenta insuficiência (com valores “sub-ótimos” da vitamina no sangue).

Apesar da deficiência estar presente tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento, existem grandes variações entre países e indivíduos.

Dentre os fatores que podem ajudar a entender esta variação, destaca-se a localização geográfica – principal fator relacionado à exposição solar, sua duração e intensidade –, cor da pele, idade, problemas outros de saúde e o Índice Massa Corporal (IMC).

 

Bala de prata?

A vitamina D é, em si, importante para a manutenção da saúde, mas a ideia de que também seria uma espécie de “remédio” ou “preventivo” para doenças não ligadas diretamente à deficiência de calcitriol é, para dizer o mínimo, questionável.

Amrein, K. et al. (2020) realizaram uma revisão narrativa com o intuito de entender e, principalmente, apontar possíveis erros metodológicos empregados em grandes estudos de intervenção, em que a suplementação de vitamina D é testada como se fosse um medicamento. Os autores criticam muitos estudos por incluírem um grande número de participantes sem deficiência de vitamina D, o que para eles pode mascarar os benefícios da suplementação, mas ainda assim veem a possibilidade de benefícios para pacientes que apresentam doenças respiratórias - caso dos adultos e das crianças com asma -, dados os efeitos imunomoduladores, anti-infecciosos e anti-inflamatórios. Também, na gravidez, citam estudos associando alto risco de deficiência de vitamina D a desfechos adversos como pré-eclâmpsia (aumento da pressão arterial durante a gravidez) e diabetes gestacional.

Mais interessante, os resultados analisados indicam que suplementação de vitamina D parece reduzir três grandes problemas enfrentados na gestação: pré-eclâmpsia (redução de 60%), diabetes gestacional (redução de 50%) e o parto prematuro (redução de 40%).

Os autores também investigaram outras duas patologias que poderiam ser influenciadas e/ou estarem associadas com baixas concentrações de vitamina D, o câncer e o diabetes, principalmente o tipo 1. Apesar de estudos observacionais encontrarem uma relação entre a deficiência e o aparecimento dessas patologias, estudos randomizados não encontraram essa causalidade.

A revisão encontrou ainda sinais de benefício da suplementação de vitamina D em situações em que a deficiência da vitamina tem alta probabilidade de ocorrer, como sepse (complicação de uma infecção severa) e transplantes de órgãos. Pacientes envolvidos em transplantes podem apresentar insuficiência da vitamina por diversos motivos, como limitação de exposição solar e da atividade física, diminuição no consumo de alimentos fonte de vitamina D e, ainda, disfunção de órgãos-chave para a metabolização da vitamina D – fígado e rins.

Há, no entanto, dois “problemas” com relação ao artigo. O primeiro é que se trata de uma revisão narrativa – não utiliza critérios explícitos e sistemáticos, e a interpretação das informações estão sujeitas à subjetividade dos autores. Segundo, AMREIM, K. apresenta conflito de interesse: recebeu  honorários de palestrante e um “incentivo” da empresa Fresenius Kabi (uma companhia de assistência médica global especializada em medicamentos, biossimilares, tecnologias para infusão, transfusão e nutrição clínica). A presença de conflito de interesse não invalida os resultados, mas sugere que pode ter ocorrido uma visão mais parcial sobre o tema.

Então, antes de sair correndo para a farmácia comprar uma vitamina de que talvez você nem esteja deficiente, considere trabalhos de outros pesquisadores.

Bouillon, R. et al. (2022) também realizaram uma revisão da literatura. Neste caso, os pesquisadores resumiram os resultados de estudos randomizados controlados conduzidos entre 2017 e 2020, e de estudos que utilizaram randomização mendeliana (um tipo de análise que investiga um ou mais desfechos a partir de um possível efeito causal entre uma variante genética e uma determinada exposição).

Após revisarem os resultados obtidos por grandes ensaios clínicos, os autores constataram que o aumento da concentração sérica de vitamina D dentro da faixa normal (entre 20 ng/ml a 50ng/ml), em adultos não deficientes, não trouxe benefícios adicionais à saúde, nem para outros desfechos clínicos, caso do risco de quedas e fraturas, câncer, doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e mortalidade geral. Por conta disso, salientam não haver necessidade de prescrição de vitamina D para indivíduos sem deficiência.

Agora, em relação às doenças autoimunes, foi observado que há uma forte relação causal entre baixos níveis séricos de vitamina D – em decorrência da genética – e um aumento no risco de esclerose múltipla (doença crônica, inflamatória, autoimune e que gera danos a bainha de mielina dos neurônios). Contudo, esses resultados não foram identificados para outras doenças de mesma natureza, como artrite reumatoide, lúpus eritematoso, rinite alérgica, entre outros.

Os pesquisadores concluem recomendando que a suplementação de vitamina D deve ser utilizada com sabedoria, e para quem realmente precisa.

Curiosamente, o que ocorre é o contrário: pessoas com deficiência severa de vitamina D – aproximadamente 7% da população mundial – não utilizam ou não têm acesso à suplementação; 1/3 da população vive com níveis séricos abaixo do ideal e, enquanto isso, muitas pessoas com níveis ótimos de vitamina D continuam consumindo suplementos sem benefícios claros.

Vale destacar que este artigo também apresenta conflitos de interesse: Bouillon recebeu verbas das empresas Fresenius, Abiogen, FAES Farma, Ceres, Procter & Gamble, e Richards, um dos coautores, trabalhou como consultor para as empresas GlaxoSmithKline e Deerfield Capital.

 

Por fim

Este artigo é um retrato das evidências que existem no momento. Há inúmeros ensaios clínicos em andamento. Talvez algum deles possa demonstrar algum benefício da suplementação extra de vitamina D para quem já tem o mínimo suficiente no corpo.

Até lá, mantenha-se cético sobre supostos protocolos milagrosos, publicidades mirabolantes e sumidades pseudocientíficas.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

REFERÊNCIAS

GHASEMIAN, R. et al. The role of vitamin D in the age of COVID-19: A systematic review and meta-analysis. Int J Clin Pract. 2021 Nov;75(11):e14675. Disponível em: <https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34322971/>.

Exame. Consumo de vitamina D praticamente dobra durante a pandemia. 2021. Disponível em: <https://exame.com/bussola/consumo-de-vitamina-d-praticamente-dobra-durante-a-pandemia/>.

BAIMA, C. A ditadura do bem-estar. 2022. Disponível em:

< https://www.revistaquestaodeciencia.com.br/artigo/2022/05/26/ditadura-do-bem-estar>.

HORTON, R. Offline: Whats is medicine’s 5 sigma ? Vol 385 April 11, 2015. Disponível em:

< https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736%2815%2960696-1.pdf>.

CHAGAS, C. e MARITINI, L. Vitamina D In: COZZOLINO, S. e COMINETTI, C. BASES BIOQUÍMICAS E FISIOLÓGICAS DA NUTRIÇÃO: NAS DIFERENTES FASES DA VIDA, NA SAÚDE E NA DOENÇA. 1. Ed. São Paulo. Manole. 2013. p. 413 – 426.

SIDDIQEE, M. et al. High Prevalence of vitamin D deficiency among the South Asian adults: a systematic review and meta-analysis.  BMC Public Health. 2021 Oct 9;21(1):1823. Disponível em:

< https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/34627207/>.

WORTSMAN, J. et al. Decreased bioavailability of vitamin D in obesity. Am J Clin Nutr. 2000 Sep;72(3):690-3. Disponível em:

< https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/10966885/>.

AMREIN, K. et al. Vitamin D deficiency 2.0: na update on the current status worldwide. European Journal of Clinical Nutrition volume 74, pages1498–1513 (2020) Disponível em:

< https://www.nature.com/articles/s41430-020-0558-y>.

BOUILLON, R. et al. The health effects of vitamin D supplementation: evidence from human studies. Nat Rev Endocrinol. 2022; 18(2): 96–110. Disponível em:

< https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8609267/>.

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