Errando sobre dinossauros e evolução

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27 set 2022
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dino crystal palace

 

As evidências da descendência com modificação e ancestralidade comum da vida são, além de numerosas, poderosas. A paleontologia de dinossauros, por exemplo, fornece um conjunto robusto de fatos que sustentam muito bem as predições gerais da teoria evolutiva. Quando preciso tentar convencer alguém sobre a possibilidade de evolução em grande escala, quase sempre me volto ao que é um dos maiores triunfos da paleontologia de vertebrados das últimas décadas: o estabelecimento do fato de que as aves são dinossauros viventes.

O que eu não sabia é que ao erigir o grupo Dinosauria em 1842, Richard Owen, um grande anatomista da Era Vitoriana e um dos maiores rivais de Charles Darwin, não fez apenas uma proposta taxonômica. Usou os dinossauros contra as ideias transmutacionistas (que negavam a imutabilidade das espécies) da época, especialmente as de Robert Grant, que defendia o transmutacionismo nos moldes propostos por Jean-Baptiste de Lamarck — especialmente enfatizando a noção de progresso na evolução da vida.

Antes de prosseguir, uma nota: não conclua dos próximos parágrafos que Owen era um ferrenho criacionista, defensor da fixidez das espécies. Não, esse não é o caso. Contudo, Owen certamente não concordava com a visão materialista de Lamarck e Grant (e por materialismo entende-se aqui como sendo a noção de que os princípios físicos, químicos e biológicos são suficientes para explicar a origem e evolução da vida, sem necessidade, portanto, de apelar para forças metafísicas). Para mais detalhes sobre a visão de Owen sobre evolução, ver a biografia escrita por Nicolaas Rupke (2009).

Quando os primeiros dinossauros foram descritos, Megalosaurus (por Buckland, 1824) e Iguanodon (por Gideon Mantell, 1825), ainda sem serem classificados como “dinossauros”, evidentemente, foram vistos como versões gigantes de lagartos. As estimativas de comprimento foram feitas, portanto, assumindo-se as proporções típicas desses répteis. Assim, Buckland estimou que o Megalosaurus se "igualava em altura [aos] nossos maiores elefantes e, em comprimento, deve ter ficado um pouco aquém das nossas maiores baleias". Após a consideração de algumas complicações, ele chegou ao valor mais modesto de algo entre 18 e 21 metros de comprimento.

Richard Owen, desconfiado dessas estimativas assombrosas, abordou a questão de forma diferente. Empregando um método de medição das vértebras e estimativa do número total delas com base em crocodilianos e lagartos, Owen reduziu a estimativa de comprimento: Megalosaurus, por exemplo, teria, segundo Owen, cerca de 9 metros. E essa não foi a única modificação. Owen aproximou anatomia dos dinossauros à dos mamíferos, em termos de proporções e organização: ao invés de imaginar os dinossauros com membros se projetando lateralmente, por exemplo, Owen presumiu uma postura mais semelhante à dos mamíferos, com os membros mais para abaixo do corpo.

O resultado dessa revisão, pelo menos em se tratando da anatomia e da aparência, foi visto nas reconstruções de dinossauros para o Palácio de Cristal de Londres, de 1854, que foram feitas sob supervisão de Owen. Embora representem répteis gigantes, elas se assemelham, no formato, a mamíferos paquidermes (como elefantes e rinocerontes), aos quais, inclusive, Owen fez alusão algumas vezes ao descrever os dinossauros. Uma das reconstituições criadas por Owen ilustra este artigo.

Os dinossauros, na visão de Owen, eram o apogeu dos répteis. Ele escreveu:

"Os Megalossauros e Iguanodontes, regozijando-se com essas modificações mais perfeitas do tipo Reptiliano, atingiram a maior massa e devem ter desempenhado os papéis mais conspícuos... que este mundo já testemunhou em criaturas ovíparas e de sangue frio".

Uma vez que Owen tinha reconhecido apenas três espécies (Hylaeosaurus era a terceira) de dinossauros até então, e considerando que os espécimes eram fragmentários, é justificável concluir que inferiu (e errou) muito, com base em muito pouco. Assim, a transformação “paquidérmica” que Owen impôs aos dinossauros não é simplesmente reflexo de um melhor conhecimento dos fatos. Seja como for, os novos dinossauros, conforme Owen os concebeu, tinham o benefício de refutar o transmutacionismo Lamarckista de Robert Grant.

Robert Edmond Grant foi professor de Darwin em Edimburgo, quando o jovem Charles tentava, por livre e espontânea pressão paterna, uma carreira na medicina. Sobre Grant, Darwin disse em sua autobiografia:

"Um dia, quando caminhávamos juntos, ele fez um discurso elogioso das ideias de Lamarck sobre a evolução. Ouvi-o com surpresa e em silêncio e, tanto quanto posso julgar, sem que aquilo surtisse efeito em minha mente".

Ao contrário do que se aprende em muito cursos de biologia, que enfatizam demais a herança dos caracteres adquiridos (inclusive atribuindo falsamente a ideia a Lamarck) e o uso e desuso, no coração das ideias transmutacionistas de Lamarck estava a organização da vida em um contínuo de complexidade, dos mais simples organismos ao homem. Robert Grant, já na University College London, comparou essa ideia central ao registro fóssil, avaliando se a história da vida era de ascensão e escalada de complexidade e perfeição, ou não. Grant concluiu que “a doutrina das petrificações, mesmo em sua condição imperfeita presente, nos fornece considerações que parecem favorecer a hipótese do Sr. Lamarck”.

Os dinossauros de Owen, bem como outras instâncias do registro fóssil, refutavam essa alegação. Ora, se eram o apogeu da condição reptiliana e haviam existido no longínquo Mesozoico, onde está a escalada em complexidade, perfeição ou "nobreza taxonômica" que Lamarck e Grant supunham existir? Onde os trasmutacionistas diziam ver ascensão, Owen vinha degeneração, pois os répteis da fauna moderna não são tão "perfeitos" quanto os dinossauros, aqueles "terríveis lagartos" (o significado etimológico da palavra “dinossauro”) do passado distante.

Assim, o nascimento dos dinossauros, como categoria, foi parte de um ataque à transmutação progressista e materialista esposada pelo rival Robert Grant. Hoje, em se tratando da evolução nos moldes darwinianos de ancestralidade comum e descendência com modificação, vemos que, no debate vitoriano, todo mundo estava meio certo e meio errado: temos um corpo de conhecimento que é materialista (como Grant supunha e Owen negava), mas não implica em progresso (nos moldes que Grant defendia, mas Owen criticava). Não é um chamado para a humildade intelectual?

 

João Lucas da Silva, mestrando em Ciências Biológicas, Paleontologia, no Laboratório de Paleobiologia, Unipampa, Campus São Gabriel. Divulgador científico no canal Coelho Pré-Cambriano, twitter @pre_cambriano

 

Para saber mais:

DESMOND, Adrian J. Designing the dinosaur: Richard Owen's response to Robert Edmond Grant. Isis, v. 70, n. 2, p. 224-234, 1979.

OWEN, Richard. Report on British fossil reptiles, part II. Report for the British Association for the Advancement of Science, Plymouth, v. 1841, p. 60-294, 1842.

RUPKE, Nicolaas; OWEN, Richard. Biology without Darwin, a revised edition. 2009.

 

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