No último dia 15 de agosto, a Agência Fiocruz de Notícias (AFN) noticiou um estudo que avaliou os benefícios do reiki para a saúde mental. A metodologia se baseou no relato de oito mulheres a respeito da aplicação de reiki, via celular, acompanhada de sons de alta vibração. O desenho experimental bizarro e a constatação imediata de que não é possível concluir nada daí gerou indignações, surpresas e algumas “passadas de pano” na rede social do passarinho azul.
É importante dizer que a Fiocruz, fundação vinculada ao Ministério da Saúde, é uma instituição séria, com uma importante atuação na ciência e tecnologia de saúde na América Latina, como ficou claro durante a pandemia, com a produção e pesquisa de vacinas. Talvez por isso, a comunidade nacional de cientistas e de comunicadores de ciência tenha se espantado ao vê-la compartilhando uma notícia que causa certa vergonha alheia por conta do procedimento experimental que, de tão ruim, nem chega a estar errado.
Não é de hoje que instituições, sob o manto da pluralidade, emprestam a sua reputação para abrigar assuntos mais adequados para templos e igrejas. A promoção de terapias presentes no rol das Práticas Integrativas e Complementares (PICs) é um exemplo disso. É claro que o conceito de saúde e bem-estar é amplo – a administração de um placebo, assistir um bom filme, uma boa conversa que desperta a sensação de acolhimento, uma massagem relaxante ou a meditação que acalma explicam satisfatoriamente os efeitos dos procedimentos sem precisar recorrer ao esoterismo e a fantasias que violam leis bem estabelecidas da física.
No livro “Pilares do Tempo”, o paleontólogo Stephen Jay Gould cunhou o termo de magistérios não interferentes (MNI) para separar os assuntos de religião e ciência. De acordo com Gould “a ciência trata das rochas, e a religião da rocha eterna; a ciência estuda como funciona o céu, e a religião, como ir para o céu”. O conceito de MNI é parcialmente verdadeiro: pondo de lado a questão de que as religiões têm forte dificuldade em resistir à tentação de açambarcar o “ministério” da ciência (veja-se, por exemplo, a fala da ex-ministra Damares Alves lamentando o ensino de evolução), o limite que a proposta busca impor à investigação científica só faz sentido para as questões que não podem ser dirimidas pela evidência empírica. Não é o caso de terapias que prometem efeito específico, isto é, para além do que vem do placebo e do contexto emocional-social – nesses casos, quem afirma eficácia precisa jogar o jogo da ciência.
Para casos como o do reiki e outras terapias energéticas, a inexistência de uma energia sobrenatural curativa pode ser verificada facilmente em um projeto de feira de ciências feito por uma criança de 9 anos (isso não é exagero: o estudo da criança foi publicado no Journal of the American Medical Association - JAMA). Nesses casos, apelar para o pluralismo e florear o discurso, ignorando o avanço da fantasia sobre a realidade, só mostra o apego tão comum à pseudociência de estimação.
Emprestar a reputação de instituições de ciência para divulgar e dar espaço para crendices é passar para a população a ideia de que existe algum debate genuíno e um interesse relevante em torno de assuntos que já foram examinados e descartados pela maioria esmagadora da comunidade científica. Vale dizer que não existe preconceito ou discriminação gratuitos no descarte. Essas práticas simplesmente não têm nenhuma plausibilidade teórica – contradizem conceitos bem estabelecidos da física e da química – ou resultado clínico que justifique qualquer estudo (salvo estudos socioantropológicos, históricos ou psicológicos). Em outras palavras, não só não fazem sentido na teoria como, quando testadas com os devidos cuidados, não funcionam na prática.
Defender que existe espaço para o estudo de qualquer coisa – abstraindo todo o contexto epistêmico e considerações de plausibilidade prévia da proposta – em instituições públicas é pressupor que o benefício da dúvida corresponde a uma linha de crédito perpétua. O raciocínio é errado porque o tempo e os recursos financeiros (incluindo o salário dos cientistas) para projetos de pesquisa não são infinitos. Financiar uma eterna busca pelo unicórnio rosa invisível que sempre foge da sala dois segundos antes de ligarmos nossos equipamentos não parece ser uma alocação racional de recursos públicos.
No final do século 20, uma discussão de até quando se deve fomentar uma pesquisa do tipo “fada-do-dente” foi feita envolvendo a parapsicologia. Embora o contexto aqui seja explicitamente o sobrenatural, relatos sobre psicocinese, o poder de mover coisas somente com o pensamento, ou o depoimento sobre a materialização de objetos não estão muito distantes de algumas afirmações feitas pela denominada medicina integrativa, presente nas PICs.
A ciência da fada-do-dente consiste basicamente em estudar as características e detalhes de um fenômeno antes de estabelecer se ele existe: você pode medir a quantidade de dinheiro que a fada-do-dente deixou sob o travesseiro, se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que a fada-do-dente não existe, e há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais.
Naquele momento, o físico-filósofo Mario Bunge escreveu que a parapsicologia não havia feito nenhuma previsão testável, e que os parapsicólogos apenas alegavam que os dados eram anômalos e que estavam além da ciência comum. Acrescentou ainda que não havia interesse dessa comunidade em encontrar leis e sistematizá-las em teorias, mas sim em apoiar antigos mitos espiritualistas ou substituir religiões perdidas.
A alegação dos parapsicólogos vai exatamente na mesma linha do discurso pós-modernista epistemológico adotado pelas PICs de que elas estariam fora do escopo da “ciência ocidental materialista”. Se existe algo interessante nesse balaio de terapias, é entender o motivo que leva as pessoas a apoiarem práticas que negam a realidade dos fatos. Por hora, nada justifica gastar dinheiro público ou colocar em risco a reputação de instituições sérias em troca de sabe-se lá o quê.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência