Terapias “energéticas” são contos de fadas

Apocalipse Now
13 jul 2019
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Energia fluindo pelas mãos?

Emily Rosa tinha onze anos de idade quando conseguiu algo com que muitos cientistas com décadas de carreira apenas sonham: assinar um artigo publicado num periódico científico de primeira linha. Há pouco mais de vinte e um anos, em abril de 1998, o Journal of the American Medical Association (JAMA) trazia a público o trabalho A Close Look at Therapeutic Touch, em que um experimento, desenhado por Emily dois anos antes para a feira de ciências da escola, demonstrava que praticantes de “toque terapêutico”, ou “TT” – uma forma de terapia por imposição das mãos – eram incapazes de detectar o tal “campo energético humano” de que suas supostas “curas” dependiam.

A metodologia adotada era de uma clareza solar: profissionais de TT tinham de introduzir suas mãos por um anteparo e determinar se, do outro lado, havia ou não a mão de outro ser humano. As chances de acerto, por pura sorte, eram de 50%. Se realmente houvesse um campo energético humano ou força vital detectável, o resultado deveria ser próximo de 100%. A real: 44%. O experimento publicado em JAMA foi composto por 280 testes individuais, e os participantes tinham, em alguns casos, quase três décadas de experiência em TT.

Produto do Ocidente, o TT foi inventado, na década de 70 do século passado, por uma ocultista holandesa, radicada nos Estados Unidos, e uma professora de Enfermagem da Universidade de Nova York. As criadoras, no entanto, reconhecem as raízes da práticano pensamento oriental. 

Em artigo publicado em 1975 em The American Journal of Nursing, a professora de Enfermagem Dolores Krieger, uma das duas autoras do TT, cita o conceito indiano de prana, que ela interpreta como energia vital. A professora escreve que “a literatura afirma que o pranaé intrínseco ao que chamaríamos de molécula de oxigênio”. 

A parceira de Krieger na elaboração da teoria e prática do toque terapêutico, a ocultista Dura Kunz, foi durante anos presidente da Sociedade Teosófica dos Estados Unidos. Desenvolvida na América do Norte no fim do século 19, a Teosofia importou vários elementos do misticismo hindu, misturando-os a tradições místicas europeias.

Qigong

Vamos, então, ao Oriente. Dez anos antes da publicação de Emily Rosa, um grupo de pesquisadores dos EUA e do Canadá havia visitado a China, a convite de cientistas chineses, para auxiliar nos testes de práticas ligadas à medicina tradicional chinesa (MTC) e outros supostos fenômenos paranormais. 

As aventuras desse comitê, do qual fez parte o ilusionista James Randi, são descritas num dos capítulos do livro The Hundredth Monkey: And Other Paradigms of the Paranormal, mas a que nos interessa trata do teste de um certo Doutor Lu, mestre Qigong, uma forma chinesa de “cura” por imposição das mãos com (suposta) transferência, transmissão ou manipulação de alguma forma de energia vital. 

Embora supostamente alicerçada em tradições milenares, a terapêutica Qigong surge, com esse nome – “qi” significando algo como “espírito” ou “força vital” e “gong”, “perícia”, “habilidade” – em 1955, num centro de repouso para funcionários do governo comunista em Pequim. O primeiro tratado sobre o assunto é publicado em 1957. Em comparação, a técnica japonesa de reiki (“rei”, divino, miraculoso; “ki”, energia, sopro), em que o terapeuta que também busca canalizar ou emitir “energia vital” a partir das mãos, foi codificada na década de 20. 

A despeito, portanto, da antiguidade cultural dos conceitos de pranaqi ou ki, nenhuma das práticas hoje associadas à ideia tem, na verdade, mais de cem anos.

Sopro de ar

Como explica o especialista em história médica chinesa Yuan Zhong, citado neste artigo, durante milênios os médicos chineses tiveram de conviver com sérias restrições culturais que impediam a dissecação do corpo humano – algo que também foi comum no Ocidente –, e os principais modelos disponíveis eram as vítimas de execuções, que ocorriam principalmente por decapitação. 

“Após a descida do machado, o sangue deixa o corpo rapidamente, e os observadores da antiguidade presumiam que esse líquido vinha da cavidade corporal, não dos curiosos tubos, aparentemente vazios, que conseguiam ver depois de o sangue ir embora”, explica o médico e historiador. 

“Hoje, sabemos que esses vasos eram as artérias carótidas e veias jugulares, que transportam sangue”, prossegue. “Observadores antigos imaginaram que, como esses tubos pareciam vazios e murchos, algum tipo de ar ou gás especial deveria inflá-los, daí o nome qi”, que também admite o significado comezinho de “ar” (curiosamente, “prana”, em sânscrito, também tem o significado mundano de “respiração”).

Qigong na prática

Mas, voltando ao Doutor Lu: numa demonstração inicial, ele realizou suas manipulações energéticas sobre uma paciente, que reagiu de modo dramático, movendo-se “às vezes de forma lenta e comedida; às vezes, violenta e convulsiva”. O mestre Qigong estava a dois metros e meio da voluntária.

Os norte-americanos sugeriram uma demonstração da prática sob condições um pouco mais rigorosas. O teste foi, como no caso de Emily Rosa, de uma clareza fantástica: mestre e paciente foram colocados em salas separadas, sem contato visual ou acústico entre si (Doutor Lu tinha certeza de que sua capacidade de manipular e emanar qi funcionaria à distância, e através de paredes). 

Durante uma série de rodadas de duração predeterminada, o mestre iria emitir energia na direção da paciente ou se manter imóvel – o que aconteceria em cada rodada seria determinado por um lance de cara-ou-coroa. 

Questão: será que a voluntária iria entrar em movimento, ou teria convulsões, nas mesmas rodadas em que Doutor Lu estaria enviando energias? Caso a hipótese qi estivesse correta, a correlação temporal entre uma coisa e outra deveria ser próxima de 100%. 

Resultado: “durante um período, a moeda saiu coroa quatro vezes seguidas; isso significa que o mestre Qigong não transmitiu qi por 14 minutos e 45 segundos. No entanto, a voluntária se contorceu ao longo de todo esse tempo. As duas únicas rodadas em que a voluntária se manteve imóvel foram rodadas em que a moeda havia caído cara e o Dr. Lu tentava influenciar a paciente”.

Físicos

O relato em The Hundredth Monkey diz ainda que experimentos para tentar detectar a suposta energia que fluiria dos dedos dos mestres Qigong já haviam sido realizados antes da chegada do grupo de investigadores norte-americanos, com resultados negativos. 

Energia das mãos?

Nenhuma das forças conhecidas da natureza – gravidade, eletromagnética e as forças nucleares – corresponde à descrição da energia vital ou qi. Físicos como Sean Carroll e o falecido Victor Stenger apontam que a existência de uma força capaz de afetar objetos na escala de órgãos humanos, mas que ainda não tenha sido detectada por instrumentos científicos, é virtualmente inconcebível.

“Todos os organismos vivos são compostos pelos mesmos quarks e elétrons que compõem uma rocha ou um rio”, escreveu Stenger no artigo The Physics of Complementary and Alternative Medicine. “Sofrem os efeitos das mesmas forças. Físicos conseguem medir os efeitos de forças eletromagnéticas em uma parte em um bilhão, mas não encontram a menor sugestão de forças vitais ou psíquicas especiais”. 

Carroll, em seu livro The Big Picture, afirma que, se existissem forças ou partículas capazes de fazer uma pessoa afetar outras pessoas ou objetos à distância, “já as teríamos descoberto”. A ciência está longe de saber tudo, diz ele, mas o que já sabe permite descartar algumas hipóteses.

Esse autor chama atenção para o conceito de domínio de aplicabilidade de uma teoria científica: Carroll não afirma que nenhum novo fenômeno físico jamais será descoberto; o que ele afirma é que qualquer nova força, se relevante na escala humana do cotidiano, já teria sido notada, se de fato existisse.

Sequer o fenômeno do emaranhamento quântico – em que partículas separadas por grandes distâncias são capazes de responder instantaneamente uma à outra – oferece refúgio. No livro Schrödinger's Killer App: Race to Build the World's First Quantum Computer, o físico Jonathan Dowling lembra que, na temperatura do corpo humano, “qualquer emaranhamento quântico seria destruído em um septilionésimo de segundo”. Nem mesmo as consultas do SUS são tão rápidas.

Fadas

Há vários anos, a médica e escritora Harriet Hall vem popularizando a expressão “Ciência da Fada dos Dentes”. Como ela mesmo explica num artigo

“Você pode estudar quanto dinheiro a Fada dos Dentes deixa em diferentes situações (primeiro contra último dente, idade da criança, dente num saquinho contra dente enrolado em papel, etc.), e seus resultados podem ser replicáveis ​​e estatisticamente significativos. Você pode achar que descobriu algo sobre a Fada dos Dentes; mas seus resultados não dizem o que você imagina, porque você não se deu ao trabalho de descobrir se a Fada dos Dentes é real ou se alguma causa mais plausível (os pais) poderia dar conta do fenômeno”.

A pesquisa dita científica sobre s propriedades terapêuticas do tal “campo energético humano”, pranaqiou ki são exemplos clássicos de Ciência da Fada dos Dentes: busca-se medir os efeitos de um fenômeno sem, antes, estabelecer-se a realidade do fenômeno. De fato, o corpus reunido em torno do tema é negativo, inconclusivo, ou, quando positivo,  tem tão baixa qualidade que é como se os pesquisadores estivessem evitando – talvez de modo inconsciente – sequer considerar seriamente a hipótese “sem fada”.

Uma revisão recente da literatura sobre toque terapêutico, descrita na revista Skeptic, revela o estado lastimável do campo. Em pelo menos um caso, o “efeito positivo” descrito não passava de erro na interpretação dos dados estatísticos. E as autoras encontraram ainda “vários artigos publicados pela mesma equipe de pesquisa, dos quais pelo menos dois foram publicados com autores em ordem diferente e em diferentes periódicos, mas relatam exatamente os mesmos dados”. 

As autoras concluem que, desde a publicação seminal de Emily Rosa, “a pesquisa sobre terapia energética não melhorou em nada; se houve mudança, foi para pior”. 

Balão de ar

Como apontado por Carroll, Stenger e outros, a existência de algum tipo de “campo energético humano” viola as leis da Física – as mesmas leis que permitiram que você baixasse este artigo da internet, e que mantêm acesa a tela em que o lê. 

Nada de energia das mãos

Faz muito mais sentido reconhecer que os conceitos milenares de pranaki ou qi não são nada além de elaborações pré-científicas da constatação, muito real, de que o ar e a respiração são essenciais para a vida, e de que há uma ligação forte entre o ritmo e fluxo da respiração e o estado emocional. 

Técnicas modernas, como reiki, Qigong e toque terapêutico, que tentam reinterpretar esses conceitos antigos em termos de campos e energias, cometem o mesmo erro das teorias “arqueológicas” que veem astronautas em pinturas pré-históricas. É uma mistura de perda de contexto e firme vontade de crer. 

Quando Dolores Krieger, uma das inventoras do toque terapêutico, escreveu que “o prana é intrínseco ao que chamaríamos de molécula de oxigênio”, ela estava, enfim, muito mais certa do que poderia imaginar.

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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