Comunicação sensacionalista deixa ciência de ressaca

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29 jun 2022
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Com o protagonismo da ciência na mídia, conquistado durante a pandemia, e atendendo também à demanda gerada por cientistas brasileiros que, enfim, deram-se conta do valor estratégico de abrir canais de comunicação com o público, vimos surgir diversas empresas que se apresentam como especializadas em comunicação de ciência e vendem serviços de divulgação para universidades e outras instituições que fazem pesquisa científica. Muitas organizações passaram a contratar essas empresas para redigir matérias e reportagens.

A fim de viabilizar-se, uma empresa precisa de clientes que paguem por seus serviços. Para tanto, é preciso, primeiro, conquistar esses clientes e, depois, mantê-los satisfeitos. Pode-se dizer que há, digamos, dois “grandes modelos” para perseguir esse fim: um que poderíamos chamar de “farmacêutico” (em que o profissional usa sua expertise para dar ao cliente o que ele precisa, mesmo que seja um remédio amargo) e outro, o “bartender”, que dá ao cliente o que ele acha que quer – mas que pode lhe trazer dores de cabeça no dia seguinte e problemas de saúde graves no futuro. 

É surpreendente e preocupante constatar que alguns jornalistas que enveredaram pelo caminho da comunicação institucional da ciência abraçaram o modelo “bartender”; e que as instituições que os contratam não se deem conta do risco a que se expõem em termos de imagem e credibilidade.

Os danos produzidos pela comunicação científica “bartender”, que tende a gerar “hype” (uma percepção exagerada e distorcida dos benefícios ou riscos de uma descoberta ou tecnologia), já foram descritos na literatura.  Exemplos históricos próximos não faltam – basta lembrar os casos da fosfoetanolamina e da cloroquina. O assessor bartender transforma o sensacionalismo em modelo de negócio. A qualidade do texto é tratada como algo secundário – o produto que se vende não é a boa matéria, mas a disseminação, em curto prazo, da “descoberta”, do nome do pesquisador e de sua instituição, a qualquer preço.

Escrevemos em outros artigos (aqui e aqui) sobre o problema do hype. Em tempos em que vários leitores leem apenas o título e a linha fina da matéria, o exagero irresponsável pode ser facilmente criado: utilizando o nome de uma instituição respeitada, basta escrever que veneno de cobra cura Covid, pipoca de micro-ondas causa Alzheimer ou que um creme de avelã reduz o colesterol para garantir cliques, likes e compartilhamentos, as métricas fundamentais do bartender.

A crítica aqui não trata especificamente da realização das pesquisas básicas – o avanço do conhecimento na sociedade depende dessas pesquisas. O problema está na maneira de se comunicar o achado. É verdade que o modo mais fácil de conseguir engajamento com um resultado de pesquisa fundamental é amplificando sua suposta relevância imediata para o público, o que se faz omitindo ou jogando para o pé do texto certas “verdades inconvenientes”, como o fato de o estudo ter sido conduzido em células, ou em animais de laboratório, ou num grupo muito pequeno e não representativo de voluntários humanos. Mas “fácil” não é sinônimo de “correto”.    

Outro fato apontado na literatura sobre comunicação de ciência, principalmente na área de saúde, é que notícias exageradas sobre descobertas científicas tendem a se basear em comunicados à imprensa exagerados. Estudo publicado em 2014 já concluía que “melhorar a precisão dos comunicados à imprensa da academia pode representar uma oportunidade fundamental para reduzir o noticiário enganoso sobre saúde”.

É concebível que, quando o comunicado, ou press release, é gerado por um operador terceirizado, o cuidado em preservar a reputação da instituição pese menos do que o desejo de promover o cientista-cliente, o que gera incentivos extras para o hype. Mas, infelizmente, nada impede que incentivos perversos tomem conta também dos canais institucionais, ainda mais quando se confunde “reputação” com “promoção”.

Em 2019, o jornal O Estado de São Paulo publicou uma reportagem de página inteira com o título “Pesquisa indica que não há dose segura de agrotóxico”. Uma busca no Facebook com as palavras “zebrafish” e “agrotóxico” mostra que esse título sensacionalista é produto de uma dessas empresas de divulgação científica – no caso, uma cuja existência precede a pandemia.

Qualquer pessoa com o mínimo conhecimento científico identifica o erro no título e, neste caso, não é necessário nem sequer ler o texto ou o estudo. Para qualquer substância, sempre existe alguma dosagem mínima abaixo da qual o efeito é zero (homeopatas com as suas ultradiluições provavelmente vão duvidar disso). A matéria publicada no Estadão ainda tinha o agravante de não mencionar qualquer artigo ou preprint publicado onde seria possível verificar os dados experimentais.

Uma pesquisa atual no site do grupo de pesquisa ou no currículo Lattes da autora do estudo, a imunologista Monica Lopes-Ferreira, do Instituto Butantan de São Paulo, não retorna nenhum artigo técnico relacionado à reportagem do Estadão. Apesar de a pesquisadora aparecer como uma das coautoras no texto “Agrotóxicos: críticas à regulação que permite o envenenamento do país”, publicado em 2021, as referências relacionadas à pesquisa são somente a própria reportagem e um press release do Fórum Catarinense de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos.

É bem provável, portanto, que os dados da pesquisa mostrando que não existe limite inferior seguro para agrotóxicos não tenham sido submetidos a uma revisão por pares, condição fundamental para que um estudo passe a fazer parte da literatura científica séria. Mesmo sem os dados brutos – o Instituto Questão de Ciência fez a solicitação para a pesquisadora, mas não foi atendido – ou um artigo publicado, a redação do bravo matutino considerou que a pauta era apropriada para ocupar uma página inteira.

Pautas inapropriadas, com chamadas sensacionalistas e provenientes de instituições sérias de pesquisa, são convenientes para os veículos da grande mídia: as reportagens geram cliques e engajamento – mesmo que estejam propagando desinformação, pois o público em geral não identifica o erro. Em última instância, se o veículo que compartilhou a notícia for questionado, é sempre possível bancar o jornalista “isentão” que desconhecia o assunto abordado e que embarcou no assunto de boa-fé, porque a pauta vinha de uma instituição respeitada. Por seu lado, a empresa de comunicação se vangloria de ter encaixado a pauta num veículo de primeira linha e, assim, servido ao cliente – como um bom bartender.

Mesmo que a falta de rigor do jornalismo de ciência não seja algo completamente novo (escrevemos sobre o caso da fusão a frio aqui), o dinamismo incorporado à comunicação nos dias de hoje, em grande parte catalisado pelo surgimento das redes sociais, pode ter agravado ainda mais o problema, ao criar uma “ética alternativa” onde engajamento vale mais do que precisão. O esvaziamento ou extinção das editorias especializadas em ciência nos jornais também contribui para a proliferação de conteúdo ruim. A contratação e a formação de pessoas especializadas e comprometidas não com resultados imediatos, mas com a reputação de longo prazo das instituições de pesquisa e dos veículos de imprensa, é algo que deve ser perseguido por jornais e universidades.

A assessoria de imprensa bartender tem como contraparte e complemento o jornalismo bartender, que não existe para informar, mas entreter. Um dos recursos usados por esse tipo de jornalismo é, exatamente, o da sensacionalização da ciência, construindo estereótipos que reduzem descobertas científicas a anedotas de botequim e levam o público à indiferença (“se tudo causa câncer, para que parar de fumar?”). Nenhum engajamento vale esse preço.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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