Regra britânica de edição genética mantém superstição do “natural”

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24 mai 2022
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A saída do Reino Unido da União Europeia (UE) trouxe o benefício – talvez o único – de livrar os cientistas e agricultores britânicos do amaranhado de regras e proibições que, na prática, inviabiliza o uso de tecnologias modernas de modificação genética na UE. O primeiro fruto dessa recém-conquistada liberdade é, precisamente, um fruto: uma variedade de tomate enriquecida com vitamina D e que, segundo a revista The Economist, deve estar disponível nos supermercados ingleses já no próximo ano.

A liberação do uso de biotecnologia na agricultura britânica ainda não é completa, no entanto. Escócia e País de Gales, que dividem a ilha da Grã-Bretanha com a Inglaterra, provavelmente seguirão proibindo a produção local de organismos geneticamente modificados (GMOs), e mesmo a regra inglesa que permitiu a criação e comercialização dos tomates vitaminados é bem limitada.

A nota técnica publicada em abril deste ano autoriza apenas produtos que “poderiam ocorrer na natureza” (para citar a norma ipsis-litteris, “plantas geneticamente modificadas que poderiam ter sido produzidas por técnicas tradicionais de cultivo ou poderiam ter surgido via processos naturais”).

Na prática, a regra visa proibir plantas transgênicas – isto é, criadas pela inserção de genes de espécies diferentes – e limitar a manipulação genética autorizada a técnicas que exploram o mecanismo natural de reparo do DNA, como certos usos da tecnologia CRISPR, que permite recortar trechos de material genético com precisão. O tomate vitaminado, por exemplo, surge da remoção de um fragmento de DNA do tomate comum.

Trata-se, no entanto, de um critério esdrúxulo, tanto do ponto de vista lógico quanto histórico e científico. Em termos lógicos (ou filosóficos), é impossível determinar de modo cabal se uma modificação qualquer (mais vitamina, resistência a pragas ou o que quer que seja) não poderia, sob nenhuma circunstância, ocorrer naturalmente. Em termos científicos, a regra ignora o fato de que transferências de genes entre diferentes espécies é, sim, uma ocorrência natural: por exemplo, pelo menos 8% do genoma humano teve sua origem em vírus, incluindo o gene que permite a existência da placenta.

Em termos históricos, estabelece uma dicotomia entre “modificação genética” e “técnicas tradicionais” que é insustentável. Essas técnicas existem num contínuo, e se a intervenção direta no genoma da planta (em vez, por exemplo, do uso “tradicional” de agentes mutagênicos, como produtos químicos e radiação, para criar variações aleatórias) difere das demais é em grau de controle e precisão, e nada mais.

O que a norma faz é prestar reverência quase religiosa às falácias essencialista e naturalista. Quem se apega à falácia naturalista pressupõe, ainda que muitas vezes de modo inconsciente, a existência de uma espécie de “sabedoria profunda” na natureza, uma inteligência benfazeja, com a qual seria tolice “brincar” – que as coisas são do jeito que são “por um bom motivo”. É a mesma intuição por trás do conservadorismo político-ideológico-moral, só que aplicada à natureza. Não deve ser confundida com a constatação, eminentemente racional, de que a espécie humana é parte da natureza e, como tal, beneficia-se de certas condições ambientais e ecológicas que devem ser reconhecidas e preservadas, para nosso próprio bem.

A essencialista, por sua vez, olha para o DNA particular das diferentes espécies de animais e planetas como se fossem essências no sentido metafísico – que quando a Bíblia diz que Deus criou os seres vivos “cada um segundo sua espécie”, na verdade estava se referindo aos genomas específicos. Se a bioquímica e a evolução ensinam alguma coisa, no entanto, é que os seres vivos do planeta Terra existem num contínuo, compartilham inúmeros genes entre si e vêm de um ancestral comum. Essencialismo biológico é criacionismo atávico.

O problema, como a Royal Society, academia de ciências do Reino Unido, já havia apontado ano passado, está na insistência em regular processos em vez de regular produtos: uma nova variedade de feijão, tomate, laranja (ou frango, ou peixe) pode ser benéfica ou prejudicial para a saúde humana e o meio ambiente segundo suas características individuais objetivas, não de acordo com o método pelo qual foi desenvolvida. Separar métodos em “tradicionais” ou “genéticos” (os adjetivos poderiam muito bem ser “puros” e “impuros”) é contrabandear superstição e preconceito religioso para o ambiente regulatório.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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