Em fevereiro de 2021, um de nós tratou da questão da importância dos rankings para as universidades em artigo para o Portal da Unesp. Ali se lê que "rankings são ferramentas úteis, mas não devem ser utilizados isoladamente: estar bem ou mal colocado ou nem mesmo aparecer em algum deles pode não significar nada ou, paradoxalmente, significar muito". O excerto guarda uma interpretação mais ampla, relacionada ao risco de perda da identidade da instituição que toma índices definidos externamente como metas internas. A mesma interpretação pode ser estendida a veículos de comunicação.
Jornais de grande circulação já vêm há algum tempo dando sinais de que a coisa não anda muito bem: o Estado de S. Paulo, com a redução considerável do seu tamanho, continua a ser chamado de Estadão apenas por uma questão histórico-afetiva. O Grupo Folha, depois de 22 anos, encerrou o Agora São Paulo. O Globo descontinuou a distribuição da versão impressa em Brasília. Além desses sinais, que refletem uma crise financeira, a imprensa enfrenta uma disputa de credibilidade com veículos de qualidade bem inferior, sofrendo ataques de figuras de todo o espectro político.
Jornais sempre publicaram seções consideradas "menos sérias" e voltadas para o entretenimento – astrologia é um exemplo quase onipresente. Porém, se no passado esses conteúdos eram publicados de modo despretensioso, hoje o jornal precisa concorrer com informações vindas diretamente de redes sociais, sites e blogs com conteúdo gratuito e sem o compromisso com o jornalismo sério.
A expressão grafada em itálico no parágrafo anterior merece atenção especial. Será que a população consegue distinguir o que é o jornalismo sério? Material publicado por veículos tidos como sérios sempre merece ser considerado sério? Infelizmente, a resposta para ambas as perguntas é: não.
Quando a imprensa escolhe confundir alhos com bugalhos, muitas vezes colocando questões de ciência como questões de opinião, ela se põe no mesmo patamar de credibilidade das redes sociais, onde encontramos uma mistura indiscriminada de informações verdadeiras e falsas – neste caso, a triagem do conteúdo bom e ruim não é feita pelo veículo de informação (que muitas vezes desinforma), mas pelo leitor.
Publicamos há algum tempo um artigo sobre matéria na Folha de S.Paulo que falava da preparação de água solarizada. O texto da Folha traz uma narrativa de que a água, em contato com a luz do Sol, poderia conservar propriedades que ajudariam a "afastar a depressão" e "amenizar o desânimo". Qual o objetivo de uma publicação desse tipo? Além do conteúdo escancaradamente falso, o texto ainda adota uma postura leviana e irresponsável em relação à depressão, uma doença grave.
Em sua luta renhida para sobreviver no mundo das redes sociais e com verbas e recursos cada vez mais escassos, a imprensa parece ter adotado, de modo consciente ou não, uma divisão de seus conteúdos em duas categorias, que poderíamos chamar de “alto risco” e “baixo risco”, ou “alto prestígio” e “baixo prestígio”. A categoria privilegiada diz respeito a política, economia e eventuais questões de fora desses campos que possam ter grave repercussão política e econômica (o caso das vacinas para COVID-19 é um exemplo).
Nessas áreas, a (ainda) chamada grande imprensa – em versão impressa ou online – faz tudo o que pode para merecer e preservar a imagem que tem de si mesma, de apuradora e disseminadora da melhor informação disponível: o brasileiro que deseja se manter a par das barbaridades do governo Bolsonaro ou das estripulias do Centrão raramente encontrará opção melhor ou mais confiável do que os grandes jornais.
Infelizmente, nos domínios considerados de baixo risco, impacto ou prestígio, a degeneração do conteúdo e o relaxamento dos padrões de qualidade são evidentes.
É especialmente frustrante constatar como as competências desenvolvidas para lidar com o drama científico do combate à pandemia não se transferiram para a cobertura usual das ciências da saúde, que voltou à velha prática de amplificar resultados preliminares, inconclusivos e de duvidosa relevância clínica.
A capacidade de compreender e respeitar diferentes graus de evidência científica e filtrar estudos por nível de qualidade, decidindo o que deve ou não ser divulgado com base em critérios de qualidade metodológica, opinião de especialistas independentes e plausibilidade prévia, que tanto ajudou a imprensa a lidar de modo correto com cloroquina, ivermectina, proxalutamida, parece falhar, como o motor de partida de um carro de bateria fraca, quando entram em pauta medicina alternativa, conhecimentos “tradicionais”, ataques a produtos transgênicos e a promoção de orgânicos.
Voltamos também a ter a obrigatória nota semanal com “nova promessa de cura” revezando-se, de modo tedioso e previsível, com o “novo fator de risco” – para câncer, Parkinson, Alzheimer...
A crise do jornalismo e a perda de credibilidade da imprensa junto a parcela importante do público não se explica somente pela publicação de conteúdos irresponsáveis nas rubricas negligenciadas como de “baixo risco”: seria injusto negar as campanhas orquestradas por interesses, principalmente políticos, para desacreditar o trabalho jornalístico exatamente nas áreas onde um esforço heroico ainda é feito para preservar a excelência.
Mas, ao relegar o material supostamente “de baixo risco” ao papel de mero caça-cliques, a imprensa comete um crime e dois erros. O crime é de fraude contra o consumidor: a mesma marca que garante que a denúncia de corrupção contra o Ministério da Educação é sólida também deveria garantir a notícia de que água solarizada cura depressão.
O primeiro erro decorre disso: a notícia irresponsável mina a credibilidade da notícia séria. No limite, nenhum jornal merece mais confiança do que a notícia mais mal apurada que publica. Ou o cabeçalho na primeira página garante a qualidade de tudo o que vem depois, ou não garante nada.
O segundo erro é supor que os temas de “baixo risco” sejam, mesmo, de “baixo risco”. O escândalo da fosfoetanolamina sintética que sacudiu o país em 2015 talvez seja um exemplo extremo, mas o fato é que notícias irresponsáveis sobre estudos inconclusivos são um dos motores de uma indústria perversa de suplementos alimentares enriquecidos com moléculas “mágicas” (“a nova promessa de cura” dos jornais) e de produtos “naturais” livres de “toxinas” (“o novo fator de risco”).
Um pouco do que foi dito acima também pode ser aplicado às universidades. Não é aceitável que se ensine – corretamente – a mecânica quântica em um curso de Física e, no curso de Enfermagem, lecione-se uma disciplina como, por exemplo, "Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde", como aconteceu na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Os professores do curso de física da FURG acertadamente redigiram um manifesto sobre isso. Universidades também têm que definir o que querem: assim como, no limite, nenhum jornal pode se considerar melhor do que sua notícia mais mal apurada, nenhuma universidade tem realmente o direito de se ver como melhor do que seu pior curso.
Pautar-se pelas ondas de redes sociais é tentador, mas é preciso que os jornais se apeguem àquilo que construiu suas reputações, em vez de dilapidar o capital de credibilidade acumulado em material errado ou irrelevante. Um jornalismo bem-feito e, no caso da ciência, com jornalistas bem preparados, que saibam o que estão escrevendo.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)