Em 2016, o Washington Post noticiou um estudo de cientistas da computação da Columbia University e do French National Institute que concluía que 6 em 10 pessoas compartilham o link de uma notícia sem sequer terem lido o conteúdo. Apesar de defasado, é possível que o número desses propagadores que ignoram o conteúdo das notícias tenha subido com a chegada da pandemia e com as campanhas presidenciais de Donald Trump e Jair Bolsonaro, movidas pelo compartilhamento de notícias falsas.
O aumento do uso das redes sociais foi responsável ainda pelo aparecimento de um fenômeno na comunicação. De uma hora para outra, anônimos ganharam protagonismo divulgando ciência, alguns fazendo um trabalho quase heroico e preenchendo um vácuo que, num mundo ideal, seria ocupado por profissionais especializados e bem remunerados.
Como, porém, nem tudo são flores, junto com divulgadores competentes e confiáveis apareceram também oportunistas, sintonizados tanto com as ansiedades do público, assustado e curioso, quanto com as de pesquisadores que sentem a necessidade de se fazer ouvir: de repente, o maior problema da comunicação pública da ciência brasileira deixou de ser o esnobismo histórico da “torre de marfim”, condescendente e impaciente na hora de “falar com o povo”, e foi substituído por seu oposto polar, o “hype”.
Em comunicação de ciência, a palavra "hype" está associada a material de divulgação científica ou de jornalismo científico que traz uma visão exagerada ou sensacionalista dos riscos ou dos benefícios de uma descoberta ou tecnologia. No Brasil, a necessidade, premente e inegável, de valorização e defesa da ciência nacional, diante dos esforços do governo federal em sufocá-la e do combate à pandemia, produziu um espírito militante na comunidade de divulgação científica e uma aura de receptividade e simpatia em setores da mídia que, se ajudaram a multiplicar vozes importantes e a disseminar mensagens que salvaram vidas – sobre máscaras e vacinas, por exemplo – também aumentaram a vulnerabilidade geral do sistema a hypes.
Vamos a dois exemplos recentes: manchetes sugerindo que veneno de cobra poderia ajudar no tratamento de COVID-19 e que pipoca de micro-ondas estaria associada a alterações cerebrais que ocorrem no Alzheimer. Os estudos que serviram de objeto para ambas as notícias, conduzidos em universidades nacionais de excelente reputação, têm caráter tentativo e preliminar, que em nada justifica a esperança (no primeiro caso) ou o medo (no segundo) produzidos pela forma como foram apresentados na imprensa.
Ser tentativo e preliminar não é um demérito dos estudos: a ciência, afinal, avança por etapas. Hipóteses são submetidas a sequências de testes, cada um mais rigoroso que o anterior, até que falhem ou superem as barreiras e sejam aceitas como uma das verdades provisórias que compõem o conhecimento científico.
Nos dois exemplos acima, existe a possibilidade da redação de um título honesto, mas em tempos de “jornalismo de títulos”, expressão utilizada pelo ombudsman da Folha de S.Paulo para se referir ao sensacionalismo das manchetes, o que vale é o clique no link – e para isso, que se dane o esmero na redação.
É importante notar que nenhuma das manchetes dos exemplos acima menciona que os testes foram feitos in vitro, ou em animais. É preciso uma leitura cuidadosa e algum conhecimento em ciência para perceber que existe uma Via Láctea de distância para encontrar um medicamento na prateleira da farmácia proveniente do veneno de cobra, ou para concluir que é preciso reduzir o tamanho do saco de pipoca no cinema para evitar o Alzheimer.
Um artigo publicado em Journal of Science Communication (Fioravante e Fioravante, 2018) mostra que 90% das moléculas promissoras encontradas em experimentos são descartadas na fase pré-clínica. Soma-se a isso que a maioria dos resultados de estudos feitos em ratos ou camundongos não se reproduz em humanos. Ou seja, o otimismo na notícia é dispensável. O sensacionalismo deve ser evitado sempre.
Embora culpar o veículo ou plataforma de comunicação que se encontra na “ponta final” do processo de divulgação científica – jornal, revista, rede social – pelo hype ainda seja uma atitude muito popular, a literatura sobre o assunto (Caulfield e Condit, 2012); (Sumner et. al., 2014) mostra que, em parte significativa dos casos, a distorção já parte do press release – do comunicado à imprensa – chancelado pelo próprio pesquisador ou por sua instituição. A mídia, nesses casos, apenas “passa adiante” o que recebe, omitindo-se em seu dever de crivo crítico, gerando uma bola de neve que é amplificada nas redes sociais (Taschner et. al., 2021).
O lento despertar, acelerado pela pandemia, da ciência brasileira para a necessidade de comunicar-se com a população deu margem à criação de um mercado, ainda pequeno, de assessorias de comunicação científica. É compreensível que empresas que prestam serviços, por uma questão simples de sobrevivência, busquem satisfazer os clientes que as contrataram. No caso das empresas de divulgação científica, elas podem até fazer um bom serviço (desde que o contratante queira isso).
As métricas tradicionais de avaliação de desempenho de assessorias de imprensa incluem o número de “menções” – quantas vezes o cliente é citado em veículos de mídia – e, na era das redes sociais, a quantidade de compartilhamentos e interações com o conteúdo. Esse sistema abre espaço para incentivos perversos, pró-hype, que não são muito diferentes dos trazidos pela obsessão da academia com números de publicações e citações.
Observa-se, a partir daí, a formação de um círculo vicioso: de um lado há o assessor que sente que precisa agradar o docente que apareceu com a pauta, e do outro a grande mídia que quer publicar um conteúdo grátis e chamativo – se for bobagem e alguém reclamar, o veículo ainda pode oferecer o álibi de que está apenas reproduzindo o que veio de uma prestigiosa universidade.
Outro acontecimento indesejável trazido pelo movimento do pêndulo da cultura científica brasileira, ao afastar-se da torre de marfim e aproximar-se do hype, foi o aparecimento dos influenciadores científicos picaretas. Twitter e Instagram são campos férteis, onde muitas dessas figuras conquistam legiões de fãs. Embora a distinção entre pessoas bem preparadas e aquelas que não sabem direito nem o que estão falando possa ser feita facilmente por especialistas, é bem provável que a população em geral, incluindo alguns jornalistas, tome como verdadeiros alguns conceitos que não encontram lastro em nenhum saber científico.
A dificuldade de distinção pode estar associada ao próprio formato dessas redes sociais que limitam a quantidade de toques em cada publicação. Se, de um lado, é importante aproximar-se da população, por outro, é imprescindível que se mantenha o rigor da informação. Na toada da publicação ruim, a definição do termo "divulgador científico" sofre risco de passar por uma banalização perigosa.
O desafio de conciliar as exigências de novos gostos e formatos aos compromissos com ética e qualidade não é novo no universo da comunicação. Falhas trágicas são bem conhecidas, como a “espiral para o fundo do poço” que hoje envolve boa parte da programação de TV aberta. Aprender com erros – próprios e alheios – é uma das características mais marcantes da ciência. Que seja também de seus divulgadores.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)