Em tempos de negacionismo e fake news e em meio à mais recente pandemia, eis que surge uma provocação em muitos debates: por que não escutamos a ciência? Essa é uma pergunta aparentemente simples, mas complexa de ser respondida, sobretudo quando a ciência tropeça ao tentar correr.
Embora a culpa pela falta de confiança na ciência quase sempre seja atribuída pelos pesquisadores à ignorância dos indivíduos que a negam, neste artigo o cientista das ciências naturais e da vida ocupa o banco dos réus. Não pelo autor ser um cientista anticiência, porque definitivamente não sou, mas por fazer o mea culpa em nome da classe. Convido colegas cientistas a fazer reflexões necessárias sobre como a nossa formação acadêmica, os instrumentos que usamos para medir a nós mesmos e a nossa falta de visão holística do mundo contribuem para o abismo entre a ciência e a sociedade – e sobre como é nossa a responsabilidade primária de eliminar essa distância.
Desde que iniciamos nossa jornada como pré-cientistas na graduação, os cursos são radicais na formação técnica. Com poucas exceções, as matérias cursadas por aspirantes a cientistas focalizam a apropriação de conhecimento específico na área de escolha. Na graduação, nossa visão de mundo é reduzida para o mais essencial o possível para ocuparmos cargos específicos no mundo do trabalho segmentado. O aspirante a cientista é treinado pela geração anterior de cientistas a concentrar-se em resolver lacunas pontuais do conhecimento.
A combinação dessa formação tecnicista e a diminuta relevância no aprendizado de ciências humanas nos faz inteligentes e ignorantes ao mesmo tempo. Aprendemos a ler o mundo natural, mas gaguejamos quando opinamos sobre as contradições sociais e como resolvê-las. Em grande medida, o cientista possui baixa percepção crítica dos problemas sociais, por vezes se autodenomina apolítico para não expor ignorâncias, e perpetua o modus operandi que mantém a ciência se comunicando numa linguagem inacessível pela sociedade.
Aprendemos ao longo da carreira que a moeda fundamental para o sucesso profissional é o artigo revisado por pares com a publicação de resultados da aplicação do método científico. O filme recente da Netflix “Não olhe para cima” faz menção ao valor da publicação científica como determinante para o prestígio do pesquisador. Ao longo desta jornada, também aprendemos que a quantidade de artigos publicados é mais determinante para o sucesso do que a qualidade. Não raro, o cientista com mais artigos obtém mais apoio financeiro e percorre a carreira a passos largos.
Não foi sempre assim. Albert Einstein, gênio da modernidade, passou 11 anos entre 1905 e 1916 sem publicar nada enquanto desenvolvia a Teoria da Relatividade Geral. Curiosamente, ainda publicou um artigo em 1949 defendendo uma economia não-capitalista e um sistema educacional voltado para resolver problemas sociais [1], demonstrando apropriação em tópicos para além da física. Com produtividade medíocre pela lógica "quantitativista", Einstein dificilmente seria bem-sucedido no meio acadêmico atual.
Essa involução de qualidade para quantidade desencadeou uma série de consequências nocivas ao mundo científico, dentre as quais: 1) explosão do número de revistas científicas (sobretudo na faixa de menor qualidade e impacto), com redução no rigor da revisão por pares; 2) redução do espaço físico para publicações; 3) naturalização da prática de fatiar os resultados em múltiplos artigos (conhecida por salami science, notoriamente popular no Brasil); 4) perda de rigor na aplicação do método científico e da reprodutibilidade de resultados; 5) aumento no número de artigos publicados e posteriormente retratados pelas revistas científicas (a maioria por dados questionáveis e/ou falta de ética na conduta científica [2]); e 6) enclausuramento do cientista no laboratório, para atingir suas pretensões individuais.
Essa lógica produtivista relativiza e miniaturiza o processo da descoberta científica, e apesar de ser encarada com normalidade pelos pesquisadores atuais, ainda não foi bem explicada para a sociedade. A Plataforma Lattes é um dos maiores observatórios públicos para a avaliação do cientista brasileiro. Tal plataforma permite o amplo registro de atividades acadêmicas, incluindo textos publicados em linguagem acessível com vistas ao público não-especialista, criação de materiais didáticos, entrevistas, organização de eventos, websites e blogs, entre outras formas de extensão e popularização da ciência.
Contudo, nada disso tem peso significativo para agências de fomento quando da escolha dos pesquisadores e projetos que obterão recursos financeiros, ou mesmo para uma banca de concurso público durante a avaliação de um candidato a professor universitário.
De fato, agências de fomento, como o CNPq, e as universidades públicas atribuem pontuação decisiva a candidatos com base no tamanho da produção de artigos científicos voltados para os pares. Para piorar, essa obsessão pela quantidade também determina a velocidade com que o pesquisador já estabelecido conquista promoções: publicar artigos aos montes é a forma mais rápida de acumular pontos e saltar degraus da carreira (com aumento de salário) em qualquer universidade do país. Teríamos que nos esforçar muito para pensar uma forma mais eficiente do que esta de promover o salami science e o afastamento entre o cientista e a sociedade.
Com tamanho viés, raríssimos são os cientistas que se aventuram na “perda de tempo” de construir pontes entre o conhecimento produzido nas instituições acadêmicas e a sociedade.
Embora a ciência brasileira enfrente dificuldades financeiras pelo desamparo estatal, a falta de prioridade do governo não justifica o individualismo dos cientistas que competem uns contra os outros pelas migalhas oferecidas, nem a desconexão com a própria sociedade que somos parte.
Existem, em todo o país, células de cientistas que se esforçam para romper com essa lógica quantitativa retrógrada que limita o alcance social da ciência, e essas iniciativas precisam ser valorizadas e construídas.
Projetos de ciência móvel que promovem a popularização e a interiorização da cultura científica precisam ser fortalecidos, como o Ciência na Estrada e o Caminhão com Ciência, na Bahia; o Circuito Itinerante da Ciência, em Mato Grosso; o Labmóvel no Paraná; o Museu Itinerante Ponto, em Minas Gerais, e tantos outros esforços similares.
Mídias universitárias, se construídas com o engajamento de pesquisadores, poderiam preencher lacunas importantes no vazio intelectual promovido pelas mídias tradicionais. Eventos de extensão universitária deveriam ser priorizados em todas as universidades.
Como cientistas, também nos cabe desenvolver novas métricas para avaliar o pesquisador a partir do alcance da ciência que produzimos (não apenas em número de citações), aproximando o saber científico e a sociedade através da valorização do cientista que encara o desafio de popularizar o conhecimento para além do próprio laboratório e romper o favorecimento daqueles que dão de ombros a tudo que acontece no nosso entorno.
Como recentemente li nas sábias palavras do eterno Carl Sagan, somos todos cientistas, e mesmo aqueles que acham explicações em fake news estão buscando compreender o mundo [3]. Se quisermos que a ciência seja ouvida, não nos cabe o mero papel de nos trancarmos em nossas pesquisas para publicar respostas sobre a vida e o Universo, nem tampouco nos outorgarmos o título de guardiões da verdade, sobretudo quando sabemos que o rigor necessário para a aplicação do método científico está abalado.
Não podemos mais compactuar com a visão puritana da ciência que temos hoje, nem com o corporativismo de apenas reproduzir a lógica que nos foi ensinada. Também não podemos nos furtar do debate de como mudar as estruturas da ciência para reconduzi-la a uma posição de credibilidade junto à sociedade. Precisamos, com urgência, transformar a formação das próximas gerações de cientistas, adequar os mecanismos usados para a avaliação qualitativa do pesquisador e mediar a construção do conhecimento popular.
Às vezes, quando reflito sobre a ciência que temos hoje, nem eu consigo escutá-la.
A contragosto do CNPq e mediante decisão judicial final, Filip de Souza Polli é pós-doutorando do centro de pesquisas sem fins lucrativos Scripps Research Institute (CA, EUA), alocado no Departamento de Neurociências, o mesmo do mais recente Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina. Sua pesquisa envolve o estudo das bases moleculares do aprendizado e memória.
REFERÊNCIAS
[1] https://monthlyreview.org/2009/05/01/why-socialism/
[2] Grieneisen ML, Zhang M. A Comprehensive Survey of Retracted Articles from the Scholarly Literature. Plos One; 2012 7:10 (e44118). https://doi.org/10.1371/journal.pone.0044118
[3] Sagan C, Druyan A. The Demon-Haunted World: Science as a Candle in the Dark. Random House, 1995.