Tem lógica engolir ouro?

Artigo
24 jan 2022
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Se você pensou que a loucura chegou ao seu limite quando lhe indicam o consumo de água com nanopartículas de prata, sinto trazer más notícias.

A nova moda é o consumo de ouro coloidal. Caso você seja adepto desta prática, peço encarecidamente que leia o artigo e reconsidere.

Lá vamos nós de novo: O que é ouro coloidal?

Segundo o informe técnico do fabricante:

 

“OURO COLOIDAL é um composto mineral formado por nanopartículas (tamanho entre 1 e 100 nanômetros) de OURO (Au) 24k 1000 totalmente puro e sem ligas, suspensas em água pura sem contaminantes.

“O ouro coloidal é um composto mineral utilizado há muitos anos e, de acordo com numerosos estudos, possui valiosos benefícios e resultados, além de não ser prejudicial à saúde e não ter contraindicações”.

 

Para a sorte (ou azar) de quem está lendo, tenho um folheto do fabricante que lista as supostas benesses do ouro coloidal. Citando ipsis litteris: “No século 19, o ouro coloidal foi comumente usado nos Estados Unidos no combate ao alcoolismo, sendo desde 1927 usado no tratamento de artrite e, a partir de 1965, é listado como o remédio número um contra a obesidade. Trabalhos recentes apontam um aumento de 20% no Q.I. de pessoas que ingerem diariamente doses de ouro coloidal por apenas três semanas”.

A firma ainda alega que o ouro coloidal serve para aumentar a acuidade mental, aumentar a energia vital (melhorando a libido), recuperar a memória, ajudar no tratamento do câncer de próstata e ovário.

Se não bastassem as incongruências das informações e as alegações extraordinárias (um remédio só que funciona para câncer, obesidade, artrite e alcoolismo? O velho ditado sobre muita esmola e santo desconfiado aplica-se aqui com perfeição), a Anvisa autorizou, por meio de resolução emitida há quase um ano, ações de fiscalização, proibindo a comercialização, distribuição, fabricação, propaganda e uso do ouro coloidal.

O que motivou essa ação?

Simples: a propaganda e a venda do produto violam vários artigos da legislação brasileira sobre produtos medicinais, incluindo o que proíbe induzir o consumidor ao erro, atribuindo ao produto “finalidades ou características diferentes daquelas que realmente possua” (Lei 6.360/76, artigo 59).

Mas afinal, o que a literatura científica diz sobre ouro? Antes de prosseguir, é importante notar que as mesmas características que tornam o ouro útil como reserva de valor e material de joalheria – sua enorme resistência à oxidação, corrosão e à interação química com outros materiais – também fazem dele, à primeira vista, um péssimo candidato para qualquer tipo de ação biológica. O ouro era usado em obturações dentárias exatamente por se manter praticamente inerte no interior da boca.

Segundo uma publicação presente do site do Laboratório de Química do Estado Sólido da Unicamp (LQES), sob a rubrica “Cultura da Química”, as alegações medicinais a respeito do ouro são milenares e aparecem em diferentes localidades. O metal teria sido utilizado pelos egípcios para o tratamento odontológico, como pomada pelos romanos para o tratamento de úlceras de pele e, na Europa medieval, os alquimistas misturavam pó de ouro em bebidas para atenuar as dores nas pernas.

O artigo ainda cita que o ouro é utilizado como um auxiliar no encurtamento da caquexia (estado catabólico extremo que, se não tratado, ocasiona atrofia muscular e drástica redução do tecido adiposo), como "remédio número um" no combate à obesidade e no aumento da acuidade mental, concentração e Q.I. (o panfleto sobre ouro coloidal da empresa denunciada pela Anvisa plagia trechos inteiros desse artigo publicado na Unicamp – ou vice-versa).

E por aí vai. Há uma penca de outras “finalidades” que o texto pontua. Contudo, sem oferecer qualquer tipo de referência ou evidência, sem mencionar quais testes, e de que tipo, teriam gerado os resultados alegados, e sem nenhuma advertência para o leitor. Isso é particularmente perigoso, visto que o público, impressionado ao encontrar alegações desse tipo no site de uma universidade de ótima reputação, pode acabar sendo influenciado pelo artigo, adquirir a substância e expor-se a riscos.

Contudo, a publicação da Unicamp levanta um ponto interessante: parece haver diferentes aplicações do ouro em saúde. Algumas com certo respaldo científico, outras, sem nenhum e outras, ainda em fase experimental. Algumas moléculas que contêm átomos de ouro, como aurotimolato de sódio (C4H3AuO4S-2) têm ou já tiveram uso terapêutico – algumas foram estudadas para tratar artrite e câncer, duas doenças citadas no panfleto –, mas falar de moléculas orgânicas que contam com ouro em sua composição é muito diferente de falar de partículas de ouro metálico puro 24 quilates (supostamente, o “princípio ativo” do ouro coloidal) suspensas em água.

No caso das moléculas orgânicas, as eventuais propriedades medicinais são delas, do conjunto todo – não do ouro em si. Água (H2O), a molécula completa, mata sede, mas átomos de oxigênio ou hidrogênio, isoladamente, não.

Será que há, pelo menos, um único estudo que corrobore a utilização do ouro coloidal como um agente terapêutico?

Segundo o estudo de GIJOHANN, D. et al. (2010), nanopartículas de ouro apresentam características únicas, podendo variar de tamanho e formato (dependendo da necessidade). São extremamente versáteis e com grande potencial na área da saúde, variando de veículo para fármacos (drug delivers), passando pela terapia fototérmica e terminando como um potencial exame de imagem para avaliação do estreitamento coronariano.

Vale destacar que, nessas possíveis aplicações, o ouro é coadjuvante; sozinho, não parece servir para nada: é ou veículo para moléculas orgânicas, ou usado como contraste ou, no caso da terapia fototérmica, utilizado como agente mecânico de aquecimento – mas requer ser estimulado por radiação eletromagnética.

Tudo bem, admito que utilizei um estudo antigo, com toda a certeza houve muitos avanços com relação a esse campo, certo?

Mais ou menos. Segundo a revisão de BAULFOURIER, A. et al. (2020), há diversos estudos que demonstram e corroboram a utilização das nanopartículas para exames de imagem, diagnóstico e transporte de remédios. Contudo, os autores ressaltam que, até o momento, as agências regulatórias da Europa e dos EUA não aprovaram a comercialização de nanopartículas de ouro.

Além disso, os autores apontam a carência de testes clínicos randomizados duplo cego com grupo controle. No total, há quatro experimentos em andamento (fase I e II), dentre eles, três são relacionados à terapia Aurolase (utiliza uma nova classe de nanopartículas de sílica, revestidas com ouro, convertendo luz em calor, na esperança de destruir tumores sólidos) desenvolvida pela companhia NanospectraBiosciences para o tratamento de tumores na cabeça e no pescoço, nos pulmões e na próstata.

Como era de se esperar, as nanopartículas de ouro também não auxiliam no tratamento da obesidade. A única maneira de o ouro ser um coadjuvante interessante para a perda de peso seria se mais países seguissem a ação do governo de Dubai no ano de 2013, que ofereceu ouro como recompensa para aqueles indivíduos que perdessem peso (a cada quilo perdido o participante recebia 1 grama de ouro). É impossível negar, nessas condições, que o ouro pode ser um auxiliar fantástico no combate à obesidade.

Para completar: “ouro” é um elemento químico e, como tal, aparece na natureza em diversas formas e combinações. Também pode ser manipulado pela engenhosidade humana em ainda mais formas e mais combinações. Algumas podem ser benéficas para a saúde humana, algumas tóxicas, algumas inócuas – mas apenas testes científicos bem conduzidos podem distinguir umas de outras.

Nesse sentido, o ouro coloidal tem muito pouco a mostrar. Há estudos em camundongos que, forçando um pouco a barra, sugerem pequenos benefícios, mas há outros que indicam danos ao cérebro dos animais.

Não há razão para imaginar que o ouro, apenas por ser ouro, trará algum benefício. É preciso não confundir os papéis cultural, histórico e econômico do metal com sua suposta atividade biológica.

 

Mauro Proença é nutricionista

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