Muito cuidado com a prata coloidal

Artigo
9 dez 2021
plata

 

Depois que assisti ao vídeo do “homem alcalino”, o YouTube resolveu me indicar diversos conteúdos parecidos. Agora, todos os dias aparecem coisas como: “conhece os benefícios da alcachofra?”, “açúcar, droga ou veneno?” e “PRATA COLOIDAL: Antibiótico, Antivirótico, Antifúngico...”.

Este último título, por algum motivo, chamou-me a atenção. Já ouvira a respeito da prata coloidal – um preparado de partículas de prata em suspensão num meio líquido, geralmente água – e sobre a hipótese de que conseguiria combater o vírus SARS-CoV-2. Contudo, também me lembro de que ficou comprovada sua ineficácia. Então, por que foi novamente suscitada?

Por mais que o vídeo seja relativamente curto (10 minutos e 27 segundos), e sua narradora, uma senhora simpática, há uma infinidade de problemas, partindo de afirmações esdrúxulas sem comprovação científica (entraremos nisso ao longo do texto), passando por falta de conhecimento com relação aos trabalhos citados, e terminando com uma falácia de apelo à autoridade.

As afirmações, erradas ou exageradas, contidas na exposição podem parecer inofensivas. Entretanto, há dois problemas que precisam ser discutidos.

 

  1. Fragilidade:

Alegações falsas são prejudiciais a todos. Mas pessoas fragilizadas por problemas de saúde ficam mais suscetíveis a acreditar e aderir a tratamentos e produtos alternativos, o que tende a levar ao abandono de tratamentos eficazes e mais seguros.

 

  1. Irresponsabilidade:

A propagação de informações inverídicas em meios de comunicação de massa pode acarretar problemas graves. Um exemplo é a frase do ex-presidente americano Donald Trump, em abril do ano passado: “E então vejo o desinfetante, onde o vírus é eliminado em um minuto. Um minuto. Existe uma maneira de fazer algo assim, injetando dentro ou quase limpando?”. Após a afirmação estapafúrdia, o centro de controle de envenenamento da cidade de Nova York recebeu 30 chamadas relacionadas à intoxicação por desinfetantes, mais que o dobro de período igual no ano anterior.

Vale destacar que, até o momento, não há estudos realizados em humanos que evidenciem benefícios proporcionados pela prata coloidal quando ingerida. A defesa de seu uso baseia-se, quando muito, em especulações sobre resultados de estudos in vitro e, com sorte, experimentos em modelos animais.

Ademais, o Australian Adverse Drug Reactions Bulletin, Vol 26, No 5 do ano de 2007 (boletim emitido pelo subcomitê que auxilia na avaliação de segurança de medicamentos na Austrália) recebeu quatro notificações de toxicidade ocasionadas pelo consumo crônico de prata coloidal. Nesses casos, todos os indivíduos apresentaram argiria (acúmulo de íons de prata na pele e nos tecidos, mudando a coloração para um cinza-azulado). Se não bastasse a nova cor, foram relatadas anormalidade na função hepática, fadiga debilitante e amnésia.

Semelhante a Nostradamus, também não acerto previsões. Contudo, acredito que os defensores da substância (catalogar a prata coloidal como suplemento alimentar é incorreto) encontrarão os mais diversos “argumentos” para defender sua utilização.

Possivelmente dirão que o boletim de 2007 é ultrapassado e que a ciência provou a segurança da prata coloidal. Além do mais, ela é "natural" (como se tudo que viesse da natureza fosse seguro).

Ou, ainda, que o artigo é uma ferramenta de controle de massas a serviço das empresas farmacêuticas e das agências reguladoras internacionais.

Antes de entrarmos em delírios, devo esclarecer que há, de fato, estudos que mostram a segurança da prata coloidal. Contudo, esses trabalhos apresentam dois pontos que enfraquecem muito a conclusão: as amostras dessas pesquisas são pequenas e, principalmente, a utilização não é crônica. Os estudos delimitam um tempo necessário para avaliar a segurança da substância, não sendo possível afirmar que utilizá-la de modo prolongado, ou repetido, não trará efeitos deletérios.

Mas afinal, o que é prata coloidal?

Segundo uma das marcas que a produzem, “prata coloidal é o termo usado para descrever minúsculas partículas de prata (íons de prata ou nanopartículas de pratas) suspensas em um líquido. Devido ao seu tamanho pequeno, um processo de filtragem normal não os removeria, então é usado o processo de eletrólise”.

Abstraindo a falta geral de sentido da sentença (por que o plural, “pratas”? O pronome “os”, antes de “removeria”, refere-se a quê? Não pode ser “partículas”, que é substantivo feminino), pode-se depreender, talvez, que a eletrólise – processo em que uma corrente elétrica é usada para mover íons – é a responsável pela introdução da prata na água.

Óbvio que os confusos autores também enaltecem os supostos benefícios da prata coloidal. Porém, eles se diferenciam de figuras como a youtuber mencionada no início do artigo em dois aspectos: enfatizam que os estudos foram em tubos de ensaio e deixam algumas referências, caso o cliente queira saber mais sobre o produto.

Dentre os artigos mencionados, somente dois são abertos, os demais só apresentam um breve resumo do que será encontrado no texto.

Um dos artigos abertos é o de Dakal, T. et al. (2016), que tem como finalidade elucidar quais as bases mecanicistas das nanopartículas de prata coloidal para agirem como um antimicrobiano.

O artigo faz um excelente trabalho ao explicar que as nanopatículas de prata apresentam características únicas, conferindo um amplo espectro de aplicações, variando de utilizações biomédicas, industriais ou, ainda, para o meio ambiente. Os autores ressaltam que as propriedades antibacterianas promovidas pelas nanopartículas de prata resultam do seu tamanho, formato, concentração e solução coloidal (partículas entre 1 e 100 nanômetros dispersas em um soluto).

O artigo ainda afirma que as nanopartículas de prata já provaram sua eficiência contra 650 microrganismos, e que o motivo disso são suas diversas frentes de ação:

 

1. Adesão das nanopartículas de prata na superfície das células e na parede da membrana (por apresentarem diferenças de cargas, há uma atração eletrostática entre as nanopartículas e as membranas dos microrganismos, facilitando a adesão, ocasionando na diminuição do citoplasma e desprendendo a membrana, culminando na ruptura do invólucro celular). 

2. Penetração das nanopartículas, ocasionando danos na estrutura intracelular (estudos sugerem que as partículas interagem com certas proteínas, alterando suas estruturas tridimensionais, acarretando o bloqueio dos sítios de ativação e impedindo sua funcionalidade).

3. Indução de toxicidade celular e geração de estresse oxidativo em bactérias (as nanopartículas de prata têm a habilidade de gerar espécies reativas de oxigênio, caso do peróxido de hidrogênio, do ânion superóxido, entre outros. Este efeito é tóxico para micróbios).

4. Modulando os caminhos de sinalização (as nanopartículas de prata confundem os sinais químicos que os microrganismos usam para levar a cabo suas atividades de sobrevivência e reprodução).

 

Se não interpretar essas informações com olhar crítico, possivelmente, ao final da leitura, você estará convencido de que a panaceia prateada é real.

Como dito anteriormente, o artigo é excelente em explicar a ação da prata coloidal. Contudo, falha ao não deixar claro que os resultados observados são provenientes de estudos in vitro. Pior do que isso, ao consultar as referências utilizadas, é possível observar que os autores não utilizaram (ou encontraram) pesquisas realizadas em humanos. Isso não invalida o artigo, mas, infelizmente, nos deixa a esmo, visto que não é possível extrapolar os resultados obtidos. Saber que algo mata bactérias numa placa de vidro num laboratório é bem diferente de saber o efeito do produto em um ambiente muito mais complexo, como o organismo humano. Voltando ao exemplo de Trump, desinfetante mata bactérias em placas de laboratório.

Observando a literatura disponível, há uma escassez de estudos que utilizaram voluntários para determinar os reais efeitos da prata coloidal quando ingerida. O mais próximo que encontrei foi um artigo que utilizou um gel dental com nanoparticulas de prata.

Neste, Freire, P. et al. (2017) avaliaram a eficácia de um gel dental com partículas de prata no combate ao Streptococcus mutans (bactéria associada ao aparecimento de cárie dentária). Os resultados obtidos foram favoráveis à prata coloidal. Contudo, a amostra era incrivelmente baixa (12 crianças), sendo necessários mais estudos que repliquem o resultado.

Vale destacar que o National Center for Complementary and Integrative Health (NCCIH), órgão do governo dos Estados Unidos criado para pesquisar e avaliar terapias alternativas e que faz parte dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) daquele país, soltou um parecer, em abril de 2017, afirmando que a prata está presente em alguns curativos de aplicação tópica, geralmente utilizados para tratar queimaduras e machucados. Entretanto, a agência reforça que não há evidências que corroborem a ingestão da prata coloidal. Além disso, o parecer alerta que a utilização excessiva do produto pode levar a uma condição conhecida como argiria, de que já falamos.

Os pontos levantados pelo NCCIH são reforçados pelo estudo de Leino, V. et al. (2021).Neste, os autores investigaram as alegações terapêuticas e técnicas de marketing utilizadas por fabricantes de prata coloidal na Finlândia.

Os pesquisadores revisaram o conteúdo de três sites que vendem a prata coloidal e o confrontaram com a literatura científica vigente. Ao todo, foram levantadas 15 alegações, dentre elas, 10 eram falsas e cinco, “desinformativas” (omitiam dados, afetando a avaliação do consumidor). Além disso, a pesquisa observou outras irregularidades cometidas pelos fabricantes, como designar a substância como um suplemento alimentar (ação proibida pela União Europeia segundo a Diretiva 2002/46/EC) e referenciar os “benefícios” por meio de outros sites comerciais.

Como não há, até o momento, estudos que demonstrem as benesses da prata coloidal quando ingerida, podemos declarar que a panaceia prateada é um delírio e que o único propósito para se ingerir a substância é caso a pessoa queira ter a coloração de um smurf.

 

Mauro Proença é nutricionista

 

Declaração do autor

Antes que alguém me acuse de caixa dois, declaro não ter recebido nenhum subsídio da Big Pharma, Anvisa e nem dos incas venusianos.

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