Forças de maré têm efeitos biológicos?

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1 dez 2021
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A variação nas funções e atividades biológicas das plantas que se repetem regularmente, com um período aproximado de 24 horas, é conhecida como o ciclo circadiano. Este ciclo é responsável por regular, por exemplo, o processo de fotossíntese, a germinação de sementes e a floração de plantas.

Seres humanos também possuem ciclos biológicos, manifestados, por exemplo, pela alternância constante entre o sono noturno e a disposição diurna. É verdade que nem todas as pessoas experimentam os ciclos exatamente da mesma forma, e nem todas as espécies vivenciam seus ritmos biológicos de modo concordante entre si, mas o entendimento geral dos ciclos, e a investigação dos fatores que os causam, é alvo de pesquisa constante da Biologia.

 

 

Ritmos da vida

O campo que estuda os ciclos circadianos é chamado de cronobiologia. Trata-se de uma área de pesquisa relativamente jovem e em rápida evolução, que visa compreender a origem, os mecanismos e as prerrogativas dos relógios biológicos. Para entender a importância da cronobiologia: em 2018, pesquisadores franceses produziram resultados indicando que certos tipos de cirurgia cardíaca, se realizados à tarde, podem levar a melhores resultados para os pacientes, em comparação com a cirurgia matinal.

O relógio circadiano pode responder a sinais ambientais, como a variação da incidência de luz entre o dia e a noite, o passar das estações – com seus períodos associados a diferentes temperaturas médias, mudanças nas condições de luminosidade diária, umidade, ou qualquer combinação deles – e também à disponibilidade de alimento. Todos esses fatores podem afetar a hora em que genes são ligados e desligados. E é com esse controle fino que as plantas se informam como está o ambiente lá fora, uma vez que não têm visão, olfato ou audição.

Em caso de seca prolongada, por exemplo, essa complexa rede de informação ativa genes que estão relacionados ao estresse ambiental e fazem com que as plantas transpirem menos. Entender o mecanismo por trás de tudo isso pode nos ajudar a ter uma produtividade maior de cultivares, diminuir o uso de pesticidas e ajustar o ambiente para oferecer as melhores condições possíveis para a planta desejada.

 

Ritmos das marés

Quem já esteve na beira da praia, especialmente por algumas horas seguidas, deve ter conseguido perceber que o mar avança e recua periodicamente sobre a areia: uma consequência das marés, um fenômeno que decorre de variações, momento a momento, da influência gravitacional da Lua e do Sol sobre objetos na superfície da Terra.

Todo objeto com massa atrai outro objeto com massa no Universo: essa atração é calculada por meio da determinação do valor da força gravitacional entre eles, a qual será tão maior quanto maiores forem as massas envolvidas no sistema e tão menor quanto mais distantes entre si estiverem elas.

Dessa forma, é verdade que nós atraímos e também somos atraídos por todos os objetos e astros ao nosso redor, desde canetas, mesas e outras pessoas, até a própria Terra, a Lua, o Sol e os demais planetas e corpos menores no espaço. Porém, como as massas de todos esses elementos, e suas distâncias até nós, não são iguais, os efeitos gravitacionais que sentimos também não são. Como as massas dos objetos à nossa volta são muito pequenas quando comparadas à massa da Terra, cotidianamente somos atraídos de forma predominante apenas pelo nosso planeta: é por isso que vivemos “presos” à superfície terrestre e as coisas não ficam “se arrastando” magicamente atrás da gente.

As massas da Lua e do Sol, no entanto, também estão ao nosso redor, e são bem maiores que as massas dos objetos cotidianamente à nossa volta. Mas as enormes distâncias que nos separam delas já são suficientes para que as suas atrações gravitacionais sobre nossos corpos sejam bem menores que a que sofremos pela presença da Terra sob os nossos pés.

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As coisas se tornam curiosas quando analisamos os efeitos de atração gravitacional com um pouco mais de detalhes: rigorosamente falando, todo objeto tem um tamanho mensurável, de modo que sempre deve haver um pedaço dele um pouco mais perto da Lua, por exemplo, fazendo com que, agora sabemos, ele seja atraído por ela de modo um pouco mais intenso que as outras partes mais distantes. Isso gera as chamadas “forças de maré” sobre o objeto, causando-lhe uma tendência de deformação (uma descrição matematicamente rigorosa do processo pode ser encontrada aqui).

Esse é um dos fatos que está por trás da explicação do “sobe e desce” na água do mar causado pela Lua, uma vez que sempre haverá certa porção das águas oceânicas mais próxima dela. O outro fato – que não detalharemos aqui, mas pode também ser encontrado na referência indicada – tem a ver com efeitos centrífugos da movimentação do sistema Terra-Lua.

Os efeitos de maré significativos percebidos no nosso planeta são causados por dois astros: o Sol e a Lua, sendo que as marés lunares são mais intensas do que as solares. De todo modo, a mesma discussão feita no parágrafo anterior, sobre o “sobe e desce” oceânico causado pela Lua, pode também ser aplicada para compreender o “sobe e desce” causado pelo Sol. É daí que podemos explicar a existência do ciclo mensal das marés: a configuração espacial do sistema Sol-Terra-Lua vai mudando ao longo do mês (o que é evidenciado pelas fases da Lua), fazendo com que os efeitos de maré lunar e solar sobre o nosso planeta estejam ora alinhados (quando a Lua está na fase cheia e na fase nova), ora cruzados (Lua em quarto crescente e quarto minguante), gerando, respectivamente, períodos de ocorrência de marés diárias mais intensas (“marés vivas”) e menos intensas (“marés mortas”).

Considere, agora, o que ocorre ao longo de cada dia do mês: como a configuração espacial Sol-Terra-Lua não muda muito em apenas 24 horas, a oscilação diária das marés altas e baixas, com cerca de 6 horas entre elas, é decorrente do fato de que a Terra gira em torno de seu próprio eixo: assim, modificam-se, periodicamente, as “faces” oceânicas que estão nos locais espacialmente adequados para ocorrência de uma maré cheia ou de uma maré baixa.

 

Ritmos em sincronia?

Ora, como os efeitos de marés sobre a água dos oceanos são claramente perceptíveis a qualquer um que se dê ao trabalho de permanecer por horas a fio na beira do mar, é bastante razoável esperar que esse fenômeno suscite questionamentos genuínos na cabeça de muita gente: uma vez que o corpo humano é constituído 60% por água, não deveríamos também apresentar ciclos biológicos em sincronia com ciclos das marés?

Essa lógica aparece como uma suposta justificativa para diversas afirmações: a Lua influencia no corte de cabelos; a Lua influencia no parto (quem nunca ouviu falar que as chances da mamãe entrar em trabalho de parto são maiores na Lua cheia, ou na “virada” da Lua?); a Lua influencia os peixes; a Lua influencia as plantas; e até a astrologia tem defensores que a utilizam para invocar a suposta influência dos astros nas nossas vidas.

Curiosamente, mesmo artigos científicos recentes investigam a sincronia entre ciclos biológicos e ciclos de marés. Neste artigo recente, por exemplo, os autores analisaram os dados de três estudos: o primeiro, de 1965, sobre a natação de isópodes, que são crustáceos que podem viver tanto em terra firme quanto na água doce ou salgada. O segundo, publicado em 1985, acompanhou o processo reprodutivo em colônias de corais, registrado por 6 meses, após 16 meses sob condições controladas e sem marés. Além disso, os autores incluíram os resultados de suas próprias investigações, publicadas em 2014, sobre a germinação de mudas de girassol.

A novidade do artigo que faz a compilação desse trio de pesquisas é que, agora, os autores correlacionaram a natação dos isópodes, a reprodução dos corais e o crescimento das mudas de girassóis com os ciclos das marés gravitacionais e encontraram um padrão concordante entre eles.

 

Resultado positivo?

É correto afirmar que o artigo anterior é bem-sucedido na tarefa de demonstrar sincronias entre oscilações biológicas e as variações gravitacionais causadas pelas mudanças cíclicas na configuração do sistema Sol-Terra-Lua. O que ele não faz, porém, é avançar para uma explicação acerca de mecanismos plausíveis para sustentar que células, átomos ou genes possam sofrer efeitos decorrentes de variações ínfimas na gravidade do local onde estão.

O artigo até explora algumas possibilidades, como a existência de grandes teias de microtúbulos interligados que conectam e fazem a comunicação entre células e tecidos das plantas. Neste modelo, as células individuais seriam perturbadas por forças muito fracas, como as das marés gravitacionais, o que poderia explicar sua relação com os ciclos biológicos. Porém, são apenas suposições.

Já em animais, a explicação considerada pelos autores estaria relacionada a uma suposta capacidade da membrana celular para sentir a variação da gravidade: o artigo chega a ensaiar um rápido cálculo de energia transferida para as células por meio de variações gravitacionais, mas, logo em seguida, afirma não haver evidências experimentais para corroborar a tese.

É bem verdade que a investigação dessas relações, e a discussão de mecanismos, faz parte da ciência; mas o ceticismo também faz, e aqui ele cabe bem tanto pela falta de mecanismo explicativo como por dois motivos adicionais. O primeiro é que nem toda relação entre dois eventos implica, obrigatoriamente, que um deles seja a causa do outro (veja, aqui, inúmeros exemplos de correlações fortuitas bastante curiosas, mas sem qualquer relevância para estabelecer causa e efeito).

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E o segundo é que o entendimento atual da Física e da Astronomia é de que os efeitos de marés somente são relevantes para objetos de tamanho e massas significativos quando comparados ao sistema gravitacional em questão. Assim, curiosamente, existem marés mensuráveis não apenas sobre as águas oceânicas, mas sobre a própria crosta terrestre, uma vez que sua massa e extensão assim permitem.

Sabendo disso, é muito difícil sustentar que pequenas células, genes ou fluidos biológicos possam “sentir” as mudanças gravitacionais causadas pelas variações das posições do Sol e da Lua. Basta lembrar que, mesmo sendo verdade que muitas plantas e animais têm a água como componente importante – ou até majoritário – nas suas estruturas, uma piscina olímpica, que certamente tem uma massa de água muito maior que a presente nos seres vivos, e, portanto, sofre uma força gravitacional mais intensa do que eles, não apresenta qualquer mudança em sincronia com a Lua, com o Sol, ou com qualquer outro astro.

Dessa forma, é mais provável afirmar que são outros fatores externos, que não as mudanças ínfimas gravitacionais sobre os seres vivos, os responsáveis por fazer surgir os ciclos biológicos que se apresentam ao nosso redor, como mudanças na temperatura, umidade, iluminação, disponibilidade de alimentos e até genes responsáveis por fazer com que atividades rítmicas apareçam – para ser justo, todos esses estímulos também são ratificados como possibilidades no próprio artigo.

Vale ressaltar também que a correlação entre ciclos biológicos com marés gravitacionais ainda precisa ser consolidada por meio de mais estudos que visam verificar as afirmações por meio da tentativa de reprodução de resultados. Por exemplo, um estudo de um grupo finlandês, publicado no ano 2000, refutou a hipótese levantada em uma publicação na Nature de 1998 que havia concluído que os diâmetros dos caules das árvores flutuaram em sincronia com as marés gravitacionais.

Os finlandeses, além de não conseguirem reproduzir o experimento seguindo os mesmos métodos, demonstraram que o fenômeno pode ser explicado pela simples transpiração das plantas, fenômeno cuja periodicidade ocasionalmente pode coincidir com a do ciclo das marés.

 

Mudanças ambientais

Como adendo importante dessa discussão, vale ressaltar que não estamos querendo sustentar, aqui, que as marés nunca terão efeitos sobre sistemas ecológicos na Terra. Até porque, por exemplo, se considerarmos uma espécie qualquer que dependa das mudanças de maré para se alimentar, se proteger de predadores e/ou procurar um eventual parceiro para acasalamento, então é certo que ela apresentará comportamentos dependentes da condição do mar. Porém, e aqui reside uma importante conclusão, essa mudança comportamental não está sendo causada pela “percepção gravitacional” do indivíduo em si, mas sim pelas mudanças reais na configuração do ambiente onde ele vive.

Isso pode se manifestar, por exemplo, no comportamento de alguns peixes ou de outras espécies que vivem em ambientes sujeitos às marés, o que torna razoável a ideia de que a pesca, sob certas condições, precisa estar atenta à fase lunar e à hora do dia para ter sucesso. Da mesma maneira, espécies que dependam da iluminação ambiente para suas atividades noturnas podem se beneficiar de uma Lua cheia, alterando os padrões manifestados de comportamento ao longo das noites com diferentes fases lunares.

Em suma, é fato que a Lua é mesmo um astro de aparência dominante quando está presente no céu noturno. Ela gera encantamento, curiosidade e admiração, tendo sido consequentemente envolvida em muito mito, magia e mistério ao longo do tempo. Há efeitos da Lua sobre a Terra que são bem reais, como as marés oceânicas e as mudanças na iluminação noturna dos ambientes, o que pode se desdobrar em influências biológicas, mas apelar para a gravidade lunar, por meio do efeito de maré, para explicar fenômenos que ocorrem em objetos de pouco tamanho e baixa massa – como nosso corpo, plantas, cabelos, bebês, peixes ou células – parece mesmo uma ideia lunática.

 

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia. É autor de livros de física para o Ensino Superior e de divulgação científica, como o “Armadilhas Camufladas de Ciências: mitos e pseudociências em nossas vidas” (Ed. Autografia)

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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