Vamos escrever de novo sobre esse assunto? Essa é a primeira pergunta que fazemos quando pensamos em retornar ao tema da homeopatia. De fato, não há muito mais a se escrever sobre a prática em si – além de tudo o que já produzimos sobre o assunto para esta revista, temos ainda o resumo crítico abrangente encontrado na introdução do dossiê publicado em 2020 –, mas uma lição importante que a história e a sociologia da ciência trazem é de que nenhuma ideia, por mais errada que seja, realmente “morre” enquanto existir uma comunidade investida em mantê-la em circulação: como o Cid do épico espanhol, um cadáver de armadura, amarrado à sela de um cavalo de batalha, defendido por uma leal infantaria.
Esta não é, claro, uma propriedade exclusiva da homeopatia: astrologia, reiki, aromaterapia, exemplos outros não faltam. Então, por que tratar mais uma vez dessa prática? E por que eleger exatamente a homeopatia, e não qualquer outra terapia, como ícone do negacionismo científico institucionalizado?
A campanha 10^23, lançada pelo Instituto Questão de Ciência no final de 2019, pretendia iniciar uma ação mais contundente e contínua, de conscientização pública e pressão sobre as autoridades sanitárias, a respeito dessa terapia alternativa que é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). A emergência global trazida pela COVID-19 obrigou-nos a redirecionar nossos esforços e energias ao longo do ano passado e deste que se encerra, mas com o avanço da vacinação e um melhor entendimento da COVID-19, concluímos que este é um momento apropriado para retomar a 10^23.
A combinação de pandemia e redes sociais, estas sofrendo da contaminação de campanhas políticas baseadas em notícias falsas, liberou as hordas negacionistas que apregoavam o infame tratamento precoce, e também revelou inúmeros “influencers” científicos, cientistas de dados, estatísticos, epidemiologistas, jornalistas, entre outros tantos profissionais que se manifestaram pelas redes em defesa do respeito às evidências científicas, principalmente quando o que está em jogo é a saúde da população e a formulação de políticas públicas.
Vimos, portanto, que não é pequena a legião de defensores da ciência, mas é preciso saber o quanto desse consenso em torno do valor intrínseco da evidência empírica e do método científico se manterá quando for a hora de apontar as inadequações de práticas e doutrinas de longa tradição, e não necessariamente identificadas com o apoio a correntes políticas abomináveis.
A crença no absurdo
Poções que curam, feitas em sua grande maioria de água ou açúcar, sem princípio ativo e sem nenhum efeito adverso – não dá para imaginar que qualquer pessoa não deseje essa panaceia. O fato é que ela não existe. Pessoas são livres para acreditar naquilo que quiserem, mas permear o debate público com fantasias que deveriam ficar circunscritas aos primeiros anos da infância é um desperdício do erário.
O psicólogo Michael Shermer no seu livro "Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas – Pseudociência, superstição e outras confusões dos nossos tempos" escreve que “pessoas inteligentes acreditam em coisas estranhas porque têm capacidade para defender crenças às quais chegaram por razões não inteligentes”. Normalmente, a ciência não está muito presente – deveria estar – no cotidiano das crianças e adolescentes. A introdução tardia do pensamento crítico pode fazer com que as pessoas separem algumas práticas esotéricas em escaninhos mentais que não se submetem a um julgamento racional, simplesmente por uma questão de hábito, ou afetiva.
Todos os argumentos, com pequenas adaptações, utilizados nas redes sociais e jornais para minimizar o significado e as implicações da ausência de evidência científica para o tratamento precoce, da utilização inadequada dos medicamentos comprovadamente ineficazes, da qualidade ruim dos artigos publicados que advogavam em favor da cloroquina ou da ivermectina, podem ser facilmente transpostos para a homeopatia.
A principal diferença está na ausência de qualquer princípio ativo na poção homeopática – no caso das várias encarnações do “kit covid” os remédios eram algo além de água ou açúcar. Presumir que tenham efeitos biológicos (ainda que diversos dos esperados pelos promotores de falsas curas) não viola leis fundamentais da física e da química.
A retomada, portanto, da campanha 10^23 permitirá saber quem é de fato “a favor da ciência” ou somente utilizou esse discurso como ferramenta política. É bem provável que órgãos de imprensa, levados por interesses comerciais, sigam publicando receitas de água solarizada e dietas mágicas; e que associações e instituições acadêmicas, atravessadas por interesses corporativos, permaneçam fazendo manifestos anódinos “em defesa da ciência e da vida”. Mas gostaríamos de esperar que, em termos de postura individual, todas as pessoas que encheram a boca para defender a ciência encontrem em si a motivação e a coerência para transcender os limites da crítica socialmente confortável e do aplauso unânime.
Por que a homeopatia?
A homeopatia é um alvo preferencial por três razões. Primeiro, porque sua alegação central – aquilo que, em essência, a distingue de todas as demais ideias e crenças elaboradas pela Humanidade – é um absurdo óbvio, cuja incoerência insanável pode ser detectada sem esforço.
Segundo, porque, a despeito dessa incoerência fundamental, conta com ampla aceitação social no Brasil, sendo até mesmo reconhecida como especialidade pelo CFM. Trata-se de um caso exemplar, e gritante, de o fruto de uma série de acidentes históricos e de certas conveniências – políticas, econômicas, ideológicas – conseguir sobrepor-se à verdade dos fatos.
Terceiro, porque a prática está integrada ao SUS, consumindo, portanto, não apenas recursos privados, mas também públicos. Não cabe mensurar o valor total despendido, mas a relação custo/eficiência – quanto menor a razão, melhor. Considerando que um medicamento deve funcionar mais do que um placebo para ser considerado efetivo, a razão custo/eficiência da homeopatia seria infinita, independentemente do dinheiro despendido: o denominador da conta é zero.
É importante lembrar que existe um mercado homeopático, um setor econômico pouco transparente dentro do qual prosperam profissionais farmacêuticos e farmácias de manipulação especializadas em agitar frascos de água, aspergir bolinhas de açúcar e cobrar caro por uma atividade que, disfarçada de prática laboratorial científica, não passa de um ritual mágico cujo produto é nada.
Porque homeopatia é feita de nada: a característica essencial da doutrina é o postulado de que o poder medicinal de uma substância amplia-se à medida que essa substância é diluída. Muitas diluições homeopáticas são tão extremas que nenhuma molécula ou partícula do princípio ativo indicado no rótulo resta no frasco que chega ao paciente.
Isso significa que, se tirarmos os rótulos de uma série de preparados homeopáticos, não existe nenhuma técnica que permita rotulá-los de maneira correta novamente, para além do número de acertos esperados numa distribuição aleatória. Um médico ou farmacêutico homeopata tentando distinguir entre dois frascos, um contendo água e o outro, o mais potente preparado homeopático, está em situação pior do que uma criança tentando adivinhar em qual das mãos de um adulto esconde-se um doce. Homeopatas sabem disso, mas buscam escudar-se atrás de argumentos e evasivas que, no limite, reduzem-se a um par de estratégias.
A primeira, mais antiga, é a do apelo à experiência clínica individual (o homeopata, em sua carreira, vê pacientes melhorarem) e à tradição (a homeopatia existe há mais de 200 anos e, se fosse falsa, já teria sido descartada). Esse apelo é inválido: a história de medicina está repleta de tratamentos que pareciam funcionar, e que foram defendidos por séculos (ou milênios, no caso das sangrias) mas que, quando submetidos a testes científicos adequados, mostraram-se ineficazes ou, mesmo, prejudiciais. O perigo de seguir tradições cegamente está bem explicitado neste artigo.
Ademais, os casos de “cloroquiners” e “ivermectiners” que “estão vendo com os próprios olhos” os pacientes melhorarem de COVID-19 após o uso desses medicamentos, ineficazes contra a doença, deveriam causar, no mínimo, algum incômodo naqueles que defendem a experiência clínica como um valor epistêmico em si, independente dos fatos científicos externos e dos testes controlados.
A segunda, mais recente, é a de mimetizar a ciência, seja criando testes próprios com resultados positivos, seja apelando para especulações sobre as fronteiras atuais do conhecimento científico, sugerindo que “a verdadeira causa” dos supostos efeitos homeopáticos estaria escondida em algum lugar imediatamente além do alcance da ciência atual – mas que estaríamos “quase lá”. Essa estratégia, no entanto, também falha.
Os simulacros de pesquisa científica homeopática carecem de qualidade e sustentação. Também, os estudos de boa qualidade sobre o assunto, quando realizados, convergem para resultados negativos (algo que nosso dossiê, além de vários outros levantamentos internacionais, mostra).
Do magnético ao quântico
Por fim, o recurso à especulação sobre o que haveria além das fronteiras da ciência é uma marca típica do pensamento pseudocientífico, que busca cavar para si uma trincheira de respeitabilidade capturando o jargão da ciência mais avançada de sua época, usando-o para impressionar os incautos. No século 18, efeitos impossíveis eram atribuídos a fluidos magnéticos; hoje, evocam-se sobreposições quânticas. O argumento, em essência uma forma de apelo à ignorância (“ninguém entende isso direito, logo isso valida a minha ideia”), não era aceitável então, e segue não sendo hoje.
A Humanidade, em pleno século 21, envia sondas para Júpiter e capta imagens que são remetidas para a Terra. Conseguimos medir deformações no espaço-tempo dez mil vezes menores que o diâmetro de um próton. Resfriamos átomos próximos ao zero absoluto. A ciência não explica tudo e temos ainda muito para aprender, mas se existisse algo de real na homeopatia, os cientistas já teriam detectado.
No contexto brasileiro, lançar uma campanha de conscientização sobre pseudociências e de combate a políticas públicas sem base em evidências tendo como foco a homeopatia significa escolher um alvo que é ao mesmo tempo o mais fácil (por causa dos absurdos óbvios e da massa de evidência negativa) e o mais difícil (pelas raízes profundas da prática nas corporações médica e farmacêutica, e da força política que essas raízes geram). Ampliar a consciência do público sobre a parte fácil, a fim de debelar as dificuldades, é o objetivo de nossa campanha 10^23.
Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)