Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) determinaram que uma molécula presente no veneno da cobra jaracuçu (Bothrops jararacussu) é capaz de – em culturas de células de macaco – reduzir a velocidade de replicação do vírus causador da COVID-19, o SARS-CoV-2. A descoberta foi apontada como “promissora” num comunicado à imprensa (press release) emitido pelo Instituto de Química da Unesp em Araraquara e replicado na mídia corporativa (outro exemplo, aqui; há muitos mais).
Mas “promissor”, nesse contexto, significa exatamente o quê? A molécula da jaracuçu se mostrou inofensiva para as células, o que já a coloca um degrau acima do lança-chamas, outra ferramenta capaz de inibir a reprodução do SARS-CoV-2 em cultura celular. Mas, se resolvermos prender o fôlego à espera de o antiviral brasileiro de veneno de cobra aparecer no SUS, no fim respiraremos aliviados ou acabaremos com a pele azul, estrebuchando no chão?
Algo que o material de divulgação da Unesp (e a repercussão midiática) deixa de mencionar é que a “taxa de mortalidade” de moléculas candidatas a medicamento – a proporção daquelas que começam “promissoras” mas terminam fracassando nos testes subsequentes – é de, por baixo, 90%. E mesmo moléculas que acabam superando todos os obstáculos só chegam às farmácias e hospitais depois de uma década, ou mais.
As vacinas para COVID-19 foram uma exceção notável à regra por dois importantes motivos: o grande número de empresas e governos que iniciaram pesquisas ao mesmo tempo (vários projetos, dos quais quase ninguém ouviu falar, fracassaram pelo caminho) e o volume astronômico de recursos investido nos testes, mobilizando dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo num curto intervalo de tempo.
Enfim, embora a descoberta seja um resultado científico interessante e, a seu modo, promissor, quando vista no contexto correto, a “promessa” que traz parece um pouco diferente da que foi vendida para o cidadão na rua, preocupado com a variante Delta e ligado no debate sobre terceiras doses de vacina.
Não se trata de menosprezar a pesquisa básica: se 90% das moléculas promissoras para alguma finalidade ligada à saúde humana acabam sendo descartadas, a descoberta das 10% que realmente se mostram capazes de salvar vidas começa de forma idêntica à das que fracassam. O único jeito de separar umas e outras é pesquisando todas as que se mostram promissoras e têm boa plausibilidade biológica.
Hype!
A palavra da língua inglesa hype costuma ser traduzida como “exagero”, mas tem um significado mais preciso em seu idioma original – “promoção intensa ou extravagante de um produto”, segundo uma edição antiga do Dicionário Oxford; “anunciar algo de modo excessivo, exagerando suas boas qualidades, de modo a atrair muita atenção”, de acordo com definição mais recente. A expressão teria tido origem nos Estados Unidos, há cerca de 100 anos, com o sentido de “trapaça”. No Merriam-Webster, o verbete diz: “divulgar ou promover de modo extravagante”; “promoção extravagante ou artificial”. Aparece ainda como sinônimo de “enganar”.
Em comunicação de ciência, o termo vem sendo aplicado, de forma técnica, para definir material de divulgação científica ou de jornalismo científico que oferece uma visão exagerada dos riscos ou benefícios de uma descoberta ou tecnologia.
Fora os aspectos éticos, o hype tem os efeitos de reduzir a credibilidade da ciência e dos cientistas – quando as previsões ou promessas exageradas não se cumprem –, de distorcer a percepção de risco da população (“se tudo causa câncer, vou mais é ficar com o meu cigarrinho”) e, quando o assunto é saúde, causar ansiedades desnecessárias e expectativas irreais.
Cientistas costumam culpar jornalistas pelo hype, mas a coisa não é tão simples. Existe uma boa quantidade de pesquisa sobre o assunto mostrando que, em geral, todos os participantes do processo de comunicação são cúmplices (eu mesmo já publiquei um paper a respeito). Crucialmente, estudo realizado na Inglaterra em 2016 mostra que o hype na imprensa comercial tende a ser estimulado pelo já presente nos comunicados oficiais das instituições de pesquisa.
Diz estudo
O material sobre veneno de jaracuçu e COVID-19 configura hype? O título original do press release da Unesp, “Veneno de cobra brasileira tem molécula que inibe o coronavírus”, pode ser lido como sugerindo que uma picada de cobra vai combater o vírus; a linha fina, “Composto produzido pela Jararacuçu bloqueou a reprodução do SARS-CoV-2 em células”, acrescenta contexto e desfaz a ilusão da picada salvadora, mas a ausência da expressão “de macacos” ao final é intrigante. Espaço, há.
A cobertura do restante da imprensa seguiu o tom dado pelo release. “Cobra brasileira tem no veneno molécula capaz de inibir o coronavírus” (Exame); “Pesquisadores descobrem que veneno de cobra brasileira pode ajudar no tratamento da Covid” (Globoplay); “Veneno de cobra brasileira combate a reprodução de novo coronavírus” (TV Cultura); “Veneno de cobra brasileira inibe até 75% da reprodução do novo coronavírus, diz estudo” (O Globo); “Veneno de cobra jararacuçu pode impedir reprodução do coronavírus” (Veja); e assim por diante.
Alguns veículos usaram de cautela, lançando mão do verbo “poder” em seu sentido de “talvez, quem sabe” ou da locução salvadora “diz estudo”. Outros foram mais ousados. Ninguém, até onde pude apurar, preocupou-se em inserir “células” ou “cultura de células” no título. A revista Galileu cita “células de macaco” na linha fina, mas o título parece mais assertivo do que os fatos permitem: “Veneno de cobra brasileira tem molécula que bloqueia SARS-CoV-2”. O Estadão também inclui as células de macaco na linha fina, e faz um título mais cauteloso: “Veneno de cobra pode inibir em 75% reprodução do coronavírus, diz estudo brasileiro”.
Em células
Nada disso, claro, é hype do tipo visto na época do Projeto Genoma Humano, onde parte do material divulgado prometia “a chave do segredo da vida”, mas a omissão generalizada – e, não há como não imaginar, estratégica – dos prazos para a descoberta ir do laboratório à farmácia (e da baixa probabilidade inicial de o caminho se completar) tem bem a cara do tipo de “hype lite” que marca muito da comunicação sobre pesquisa fundamental no Brasil e no mundo, e que deu origem ao divertido movimento “em camundongos”, que cobra de instituições científicas e jornalistas que incluam essa informação crucial – que o resultado do estudo se aplica a animais, não (ainda) a seres humanos – em seus títulos. Talvez seja hora de lançar um movimento “em células”?
A sequência de incentivos que leva às várias formas de hype é bem conhecida. O pesquisador tem interesse em ver seu nome em evidência, ganhar prestígio junto aos pares, ao público e aos financiadores. O assessor de imprensa da instituição quer que seu press release chame a atenção, seja lido e gere matérias. Já o jornalista quer “emplacar” a matéria – vê-la publicada e divulgada pelo veículo onde atua – e ser lido.
Uma preocupação constante do jornalista de ciência – principalmente em veículos generalistas, que também cobrem política, economia, esportes, etc. – é a de não “matar” a matéria, isto é, não incluir logo de cara alguma informação que torne o conteúdo “desinteressante”, que possa alienar o leitor ou (horror dos horrores!) convencer o editor a gastar aquele precioso espaço com algum assunto mais candente, tipo a nova dancinha do TikTok.
No Brasil, o primeiro termo da sequência – o pesquisador, e ainda mais o pesquisador de instituição pública – costumava ser relativamente imune à atração do hype, quando não avesso a qualquer tipo de iniciativa de “popularização” de seu trabalho. Isso, em geral, porque a comunicação com o público tendia a ser malvista na academia e os incentivos (verbas, promoções, cargos, honrarias) eram largamente independentes da fama, extramuros, do autor e de seu trabalho.
Décadas de esforço para convencer o cientista da importância de colaborar para que a população conheça a ciência feita no Brasil – a mesma população que paga impostos, sustenta as pesquisas e vota nos políticos que decidem se vale mais a pena construir estádios ou laboratórios – e a ascensão do culto da celebridade em todas as esferas sociais têm mudado isso.
Nesse aspecto, o “hype lite” seria até um preço pequeno a pagar, se a única alternativa fosse o retorno à torre de marfim. Felizmente, não é: chegou a hora de falar abertamente sobre células e camundongos.
ALTERAÇÃO (em 30/08/2021): No primeiro parágrafo, a expressão "emitido pela Unesp" foi substituída por "emitido pelo Instituto de Química da Unesp em Araraquara", para maior precisão e clareza.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto) e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)