Missão, visão, valores. Atualmente, não basta a uma empresa se dedicar ao seu negócio. Espera-se ainda que tenha claros seus objetivos e meios para alcançá-los, entenda os impactos que sua atividade e modos de atuação podem ter na sociedade e no meio ambiente. Expectativas que desembocam numa espécie de construção de identidade, uma antropomorfização do ente corporativo. Assim personificadas, as empresas também passam a buscar funcionários compatíveis com o que veem como sendo sua “cultura organizacional”.
É o chamado “fit cultural”, expressão que se espalhou na área de gestão de recursos humanos e trouxe o desafio de identificar quem, entre os candidatos a emprego, estaria mais alinhado aos propósitos e propostas da firma. E se para isso soam absurdos os crescentes relatos de empresas recorrendo a pseudociências como a astrologia e seus “mapas astrais” na tentativa de traçar os perfis de postulantes às vagas, também aumenta o uso de testes psicológicos de personalidade, raciocínio, habilidades sociais e outras características, além de análises com auxílio de sistemas de inteligência artificial, para tentar encontrar o funcionário ideal.
Mas o quanto há de ciência de fato nestes testes e questionários? Servem mesmo para identificar compatibilidades (ou incompatibilidades) corporativas? Josemberg Andrade, psicólogo e professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações (PSTO) da Universidade de Brasília (UnB), explica que esses instrumentos fazem parte do campo da psicometria, uma área de conhecimento importante da psicologia que usa ferramentas da matemática e da estatística para a construção de medidas psicológicas de características individuais.
“A psicometria é uma área que preza muito pelas evidências empíricas e observações”, afirma. “Com ela, procuramos aferir construtos - tudo aquilo que não é observável a olho nu, mas pode ser inferido –, que na psicologia incluem processos mentais como inteligência, personalidade, raciocínio abstrato, verbal, mecânico, espacial”.
Para isso, no entanto, é preciso primeiro que os próprios testes sejam postos à prova quanto à sua validade e confiabilidade, destaca.
“Depois de desenvolver um teste, a partir de várias pesquisas em torno de teorias psicológicas, o primeiro passo é aplicá-lo a uma amostra de pessoas, não para avaliar esta amostra no que ele foi desenhado para medir, mas justamente verificar sua validade e confiabilidade”, diz. “De modo geral, testes psicométricos podem ser considerados válidos quando efetivamente medem aquilo que se dispõem a avaliar, e confiáveis se, dadas condições similares, produzem resultados similares. Inteligência, personalidade, raciocínio, para citar alguns casos, são traços psicológicos relativamente estáveis. Por exemplo: ninguém muda totalmente de personalidade da noite para o dia, a não ser em caso de um trauma muito grave, então um teste de personalidade deve dar resultados parecidos se aplicado duas vezes, de forma parecida, no mesmo indivíduo”.
‘Caixas-pretas’
Especialista em psicometria, Andrade conta que há muitos testes no mercado desenhados para medir características diversas, incluídas como desejáveis nos processos de seleção, como capacidade de aprendizagem, habilidades emocionais, inteligência e interesses, que trazem estas evidências empíricas e têm uso aprovado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio de seu Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi). Isto não quer dizer, no entanto, que sejam estes os testes que estão sendo utilizados nos processos de recrutamento e seleção, nem que os testes, mesmo os considerados válidos e confiáveis, tenham sido desenvolvidos ou estejam aptos para dar o tipo de resposta que um recrutador de RH espera, ressalta Juliana Porto, também psicóloga e professora do PSTO/UnB.
“Apesar da sua importância, as áreas de recursos humanos e os processos de recrutamento e seleção são dos menos prezados nas organizações”, diz. “Os prazos são curtos, e a operação, em geral, terceirizada num setor extremamente fragmentado. São muitas empresas oferecendo serviços, um problema de ecossistema na área que acaba matando praticamente qualquer possibilidade de um bom processo de seleção, e abre caminho para uso de coisas como mapas astrais”.
Diante disso, Juliana considera que questão vai muito além do uso inadequado da psicometria.
“Hoje em dia, está muito na moda falar de fit cultural, que vem a ser identificar características em candidatos a vagas e quanto elas coadunam com a cultura de sua organização”, comenta. “Mas a verdade é que muitas vezes as empresas não definem muito bem que características desejáveis seriam essas, tampouco qual a sua cultura organizacional”.
Assim, a psicóloga defende que deve ser feito um caminho reverso, primeiro identificando entre os já empregados na organização as características e competências que melhor se traduziram em bom desempenho, adaptação e adesão à cultura, para só depois buscá-las entre os candidatos.
“Testes de personalidade, raciocínio ou outros só deveriam ser usados em processo de seleção em função de sua capacidade de prever o melhor desemprenho do funcionário após a contratação”, considera. “Para isso, precisamos saber quais são estes preditores, em análises anteriores ao processo seletivo. Temos técnicas para levantar isso, como, por exemplo, pegando funcionários de bom desempenho naquela função e aplicando testes para ver quais os níveis que têm nos vários indicadores. Precisamos saber porquê estamos usando testes psicométricos na seleção, se os indicadores escolhidos realmente fazem diferença no desempenho futuro do funcionário. Aplicar os testes só por aplicar, sem embasamento e conhecimento, que não passa de uma modinha em RH”.
Outro problema é a falta de informações sobre a validade e confiabilidade dos testes usados pelas empresas de recrutamento e seleção, ressaltam os especialistas. Uma rápida busca no Google por “fit cultural”, por exemplo, revela dezenas de ofertas e orientações de como fazer avaliações do tipo, mas pouco sobre o embasamento e validade das opções oferecidas. Já a Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica (CCAP), responsável pela aprovação ou não de testes psicométricos no sistema da SBP, não faz uma fiscalização ativa das avaliações oferecidas no mercado, atuando apenas como chancela oficial das opções de editoras e desenvolvedores que a buscam.
“A consultoria de recursos humanos pode dizer que é muito boa, que seus testes são bons, mas se ela não mostra quais são os estudos e os indicadores de validade e confiabilidade dos testes que usa, não temos como saber se seus resultados são válidos ou confiáveis e, consequentemente, se seu processo de seleção também é válido”, resume Juliana.
Opinião ecoada por Andrade.
“É como uma caixa-preta. Sem acesso aos dados, às evidências daquele teste, é difícil dizer se ele é válido ou confiável”, diz. “Neste casos, estes testes não deveriam ser usados como fonte única de informação para tomada de decisões que influenciam a vida de uma pessoa, como se está apta ou não para um trabalho. Para isso, é preciso contar com pelo menos alguma outra fonte primária de informação psicológica sobre o indivíduo, como uma entrevista ou observação sistemática. Ou, se temos instrumentos aprovados pelo Satepsi para aquela medida, então preferencialmente os processos de recrutamento e seleção deveriam usar estes instrumentos”.
A crescente realização das primeiras fases dos processos de seleção de maneira remota, via internet, cria uma camada extra de complicação, já que muitos testes e questionários não foram desenvolvidos ou aprovados para aplicação online, acrescentam os especialistas.
“Muitos destes testes dependem de os sujeitos estarem em ambientes controlados, sem ruídos e interrupções, o que não é a realidade de uso da internet a que muitas pessoas têm acesso”, frisa Juliana.
Andrade, por sua vez, lembra que a COVID-19 aumentou o debate em torno da prática.
“Os testes psicométricos são elaborados para propósitos e aplicações específicas, e a pandemia suscitou toda uma discussão em torno do tema”, conta. “Mesmo que você queira usar online um teste aprovado para aplicação presencial, ele foi feito para ser realizado em lápis e papel, então é necessário que se apresentem evidências de que ele pode ser aplicado online, e comprovar que a aplicação remota não interfere nos escores”.
Vieses de seleção
Outra preocupação dos especialistas é o uso de sistemas de inteligência artificial na análise dos perfis de candidatos a uma vaga. De acordo com eles, isto não só ignora a necessidade de uma fonte primária de informação psicológica para uma avaliação real de sua aptidão, como abre caminho para vieses de seleção que podem comprometer políticas de diversidade e até serem injustos e ilícitos.
“Uma grande empresa que abre vagas pode receber milhares de currículos e não tem como dar conta de tantas candidaturas”, reconhece Juliana. “Por isso, muitas delas, ou as consultorias que contratam, têm recorrido à inteligência artificial no processo de pré-seleção. A questão é que não sabemos quais são os parâmetros usados por estes algoritmos, e quem cria estas fórmulas muitas vezes não é especialista em recursos humanos, mas em inteligência artificial”.
Assim, a pré-seleção pode criar distorções que vão ecoar em todo processo de recrutamento. A psicóloga dá como exemplo o caso de uma posição de gerência.
“Se o algoritmo for baseado no histórico passado dos ocupantes desta vaga na empresa, muito provavelmente a preferência será por homens brancos de meia idade”, conta. “Legalmente, não se pode usar este tipo de critério, mas como não conhecemos o algoritmo, não temos como saber, e isso pode criar um viés de pré-seleção que mata qualquer política de diversidade que a empresa venha a ter”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência