Começo admitindo que estou entre aqueles que sofrem de síndrome de abstinência quando não tem depoimento na CPI da Covid. E que, como desde o início da pandemia eu só escrevo, leio e foco na COVID-19, talvez me lembre de mais coisas que um bom número de pessoas. Isso, ao mesmo tempo, me dá nos nervos e me diverte. Mas que esse povo tá desmemoriado, ora se está.
Tome-se o caso do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que dia desses bradava contra o fechamento dos hospitais de campanha de seu estado, governado pelo petista Camilo Santana. Em junho do ano passado, porém, os bolsonaristas não só criticavam a abertura de hospitais de campanha, como o próprio presidente incentivava seus apoiadores a invadir hospitais e fotografá-los para mostrar que estavam vazios e que a pandemia era uma farsa, não havia tantos doentes assim. Um ano depois, a tropa de choque governista, convenientemente amnésica, quer saber por que esses hospitais não continuaram abertos quando, efetivamente, ficaram vazios. Se governadores tivessem mantido esses hospitais abertos, com altos custos, a bancada estaria se esgoelando, acusando-os de desperdício de recursos públicos.
Por falar em dinheiro, o senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) podia nos fazer o favor de comprar uma máscara decente, uma PFF2, que se ajustasse ao rosto. Toda vez que Sua Excelência abre a boca para iniciar sua longa arenga em louvor a Bolsonaro, a máscara se equilibra perigosamente na ponta do excelentíssimo nariz, e o senador ajeita a coitada pela frente, com a mão. Alguém, por caridade, explique ao ilustre parlamentar que é para ajeitar pelas alças, ou o convença a comprar uma máscara de boa qualidade.
Outro motivo de diversão diante da TV é o uso de pronomes de tratamento. Os senadores começam cumprimentando o depoente e chamando de Vossa Excelência, na segunda frase Vossa Excelência vira Vossa Senhoria, mais adiante Vossa Senhoria vira o Senhor e no final da pergunta já é um reles você. Fico esperando o dia em que, no calor dos debates, alguém ali vai disparar um “mas tu não disse antes que...?” É só o que falta, porque, ao inquirir Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, o já mais que folclórico senador Luis Carlos Heinze (Progressistas-RS) se dirigiu a ele como “seu” Dimas, como se Covas fosse o dono do botequim da esquina.
Esquecimentos
Heinze tem memória curtíssima, o que o leva a repetir diariamente suas loas à cloroquina e ao inexistente “tratamento precoce” para a COVID-19. A Heinze cabe o duvidoso mérito de ter alçado a diminuta cidade catarinenses de Rancho Queimado (2.748 habitantes, IBGE/2010) ao posto de capital mundial da clorocoisa. Um de seus momentos memoráveis na CPI deu-se durante o testemunho do CEO da Pfizer para a América Latina, Carlos Murillo, que estava lá para falar das seguidas negativas do governo para adquirir o imunizante da empresa.
Assim que tomou o microfone, Heinze partiu para a cloroquina, deixando o pobre CEO imaginando o que, diabos, ele ou a Pfizer tinham a ver com o antimalárico. Não importa quem está depondo, Heinze vem com a cloroquina, com Chapecó, Porto Feliz, Porto Seguro ou qualquer outro local em que algum prefeito distribui o tal "Kit Covid" como se fosse bala de goma. E repete ad nauseam o “causo” do paper que foi retirado da Lancet e o “causo” do estudo de Manaus, suspenso após a morte de 11 pacientes que receberam doses altas de cloroquina. O ilustre parlamentar convenientemente se esquece de que o estudo teve aprovação de comitê de ética para ser feito e, principalmente, que foi financiado, entre outros, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) e – acredite – por “fundos federais liberados por senadores”.
Para quem não se lembra, a primeira menção à cloroquina no contexto da pandemia foi publicada na Lancet na edição de 1º de maio de 2020, mas já estava disponível desde 24 de fevereiro online. Vinha de Wuhan, na China, esse estudo observacional pequeno, dizendo que talvez fosse interessante pesquisar o uso da cloroquina em pacientes graves. Logo depois, em abril, outro grupo chinês alertava para os riscos no uso da cloroquina, inclusive o da automedicação. Morro de vontade de mostrar esse e outros estudos para o senador Heinze, na esperança que ele venha a falar cloroChina e a hidroxicloroChina...
Conexão França
O que todo mundo se lembra é do estudo do francês Didier Raoult – médico e microbiologista que está na lista dos mais citados no mundo, com mais de 2.300 trabalhos publicados. Sua alta produtividade se deve ao fato de ele colocar seu nome em todos os estudos produzidos no instituto que dirige, a maioria publicados em duas revistas editadas por Michel Drancourt, seu subordinado. Conveniente, não?
Bom, dia 17 de março Raoult postou um vídeo anunciando uma pesquisa com 24 pacientes (apenas) que mostraria que a combinação cloroquina e azitromicina era eficaz contra a COVID-19. O governo francês embarcou na novidade, Raoult foi convidado a integrar o comitê do país para combate à pandemia, mas nunca participou de nenhuma reunião e saiu do grupo reclamando que os demais não entendiam nada de ciência. Este ano, Raoult admitiu que a clorocloisa e a hidroxiclorocoisa não diminuem os casos de morte por Covid, nem a necessidade de UTI, mas isso Heinze não fala.
A memória de Heinze não vai além de agosto do ano passado. Na quinta-feira (27), durante o testemunho de Dimas Covas, o senador voltou a citar Raoult, Vladimir Zelenko, que na prática é inventor do tal Kit Covid, e Luc Montaigner, ganhador do Nobel de Medicina pela descoberta do HIV, mas que aos 88 anos deu de defender a homeopatia, diz que vacinas causam autismo e que as vacinas de RNA são perigosíssimas. Vem sendo solenemente ignorado pela comunidade científica, mas é adorado por homeopatas e anti-vaxxers.
Heinze insiste que a rejeição ao Kit Covid é ideológica, e insiste em não se lembrar dos vários estudos que apontam para a ineficácia da substância. Na última semana, porém, teve a chance de tecer longos elogios a Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e Educação de Saúde do Ministério da Saúde e que era conhecida como “capitã cloroquina”.
De acordo com o mentirômetro da CPI, Mayra, que é médica pediatra, mentiu 12 vezes. A contagem de mentiras começou depois do depoimento do seu ex-chefe, o general Rolando Lero, também conhecido como Eduardo Pazuello. O ex-ministro foi até agora campeoníssimo em enrolação e memória curta, ganhando até mesmo do ex-chanceler Ernesto “ahnnn” Araújo, que não se lembra sequer de ter falado ou escrito algo que pudesse ofender a China. O general primeiro não se lembra de reunião, lembra-se, não se lembra quem estava na reunião, tem certeza que só soube da falta de oxigênio em Manaus dia 10 de janeiro, mas Mayra tem certeza que foi na noite de 7 janeiro. E se as pessoas estão morrendo asfixiadas em Manaus, o que ele tem a ver com isso? Providenciar oxigênio hospitalar não é atribuição do ministério, o estado do Amazonas que se virasse, porque, afinal, a culpa é da White Martins, a empresa que desse jeito de produzir mais, ora!
"Não sei..."
Pazuello caprichou na enrolação, abusou das contextualizações e exagerou nos prismas, que você pode ver daqui ou dali. Deu uma “explicação” primorosa para não responder por um mês os e-mails da Pfizer, a de que o sistema do Ministério da Saúde tinha sido infectado por um vírus e ele não conseguia abrir as mensagens. Por um mês? Jura? O ministério todo sem e-mails por um mês no meio de uma pandemia? Ou o vírus era seletivo e atacava só os e-mails da Pfizer? Tenho um técnico de computador muito bom, o Régis, que resolveria o problema do general rapidinho.
Gostaria muito de agradecer o senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico, por ter sabatinado o general, que murmurava “não sei, não sou médico” a cada pergunta sobre coronavírus: sabe quando foi o primeiro surto causado por eles? Sabe quantos existem? Sabe como é progressão no organismo? Que se instalam primeiro no nariz, na boca, na garganta e enquanto isso vão contaminando outras pessoas? Então como o sr. pode dizer que máscaras não são importantes nesse tipo de transmissão? "O sr. sabe...”, disparou o senador, ouvindo seguidos "não sei, não sou médico” e finalizou: “E como teve coragem de assumir o ministério se não sabe nada e não foi procurar saber?”
Quase levantei e aplaudi aqui em casa: era a primeira pergunta que eu teria feito ao general. A segunda seria “O senhor tem alguma noção de como se negocia compra de vacinas neste planeta?” Porque de todas as falas de Pazuello a mais abjeta é a que dá preço à vida dos brasileiros. O general achou alto demais o preço da vacina da Pfizer, US$ 10 a dose: duas doses, US$ 20. Pelo câmbio desta segunda, US$ 1 custa R$ 5,23; duas doses, portanto, R$ 104,60. Em bom português, para o general a minha vida, a sua, a de cada brasileiro vale menos de R$ 104,60. Ponto.
O ex-ministro, em seu depoimento, afirmou que uma certa plataforma TrateCov, desenvolvida pelo ministério para, supostamente, ajudar os médicos de Manaus a diagnosticar COVID-19, foi hackeada e alterada. O aplicativo foi diversão nas minhas redes sociais, porque você colocava dados do suposto paciente – eu usei minha gata Sophia, 18 anos, com coriza, espirros e irritação nos olhos (ela tem rinite alérgica) – e invariavelmente a recomendação era o famigerado e inútil Kit Covid.
Oxigênio
A plataforma foi baseada num estudo chamado AndroCoV, publicado numa revista chamada Cureus Journal of Medical Science, de baixíssimo impacto, e que foi revisado em um único dia – revisão por pares costuma demorar um tempão. Estudos importantes costumam ser citados por outras pesquisas. Pois bem, o tal estudo até hoje acumula zero citações, tal sua irrelevância.
Daí vem a tal Mayra e desmente o ministro, diz que plataforma não foi hackeada. A plataforma desapareceu, segundo a secretária, e está sendo atualizada. Desde janeiro? Mayra jura que se tivessem usado o kit em Manaus não haveria tantos mortos, omitindo que boa parte dos manauaras já tomava cloroquina. Esse pode ser um dos motivos para a população buscar postos de atendimento só quando o quadro se agravava, já que confiam na proteção da droga ineficaz.
Mayra também jura que, nos primeiros dias de janeiro, quando esteve em Manaus promovendo o tal Kit Covid, não viu, nem ouviu falar de preocupação com falta de oxigênio hospitalar. Mas tem certeza que tem pênis inflável na entrada da Fundação Oswaldo Cruz, tapetinhos com a imagem de Che Guevara, pôsteres com as inscrições Marielle Vive, Lula Livre e uma pauta LGBT.
A CPI da Pandemia também escancarou o machismo dos digníssimos parlamentares, que levantam a voz, batem boca, se ofendem, mas se unem todos para pedir calma e afirmar que a bancada feminina está “nervosa” quando uma das senadoras fala alto para ser ouvida, ou não ser ofendida. As mulheres foram para a CPI preparadas, com sangue nos olhos e faca na boca, independentemente dos partidos: a macharada que as respeite e abaixe a crista.
Prepare a pipoca, porque esta semana tem mais: começando pelo depoimento da médica cloroquinista Nise Yamaguchi, que precisa explicar suas idas a Brasília para agir como “conselheira informal” do presidente Bolsonaro. Aguarda-se com ansiedade seu encontro com o senador Heinze.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros