A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou há poucos dias um excelente guia sobre COVID-19, refletindo os consensos científicos mais sólidos sobre o assunto. Até onde sei, o guia da SBI contém a primeira diretriz clara, em português, sobre autoisolamento, preenchendo (mais uma) lacuna deixada pela postura negligente do Ministério da Saúde frente à pandemia:
“Todos os pacientes com suspeita clínica forte de COVID-19 e os com doença confirmada (exame de RT-PCR de nasofaringe positivo) devem ficar 10 dias em isolamento respiratório domiciliar, isto é, devem ficar preferencialmente sozinhos no quarto, afastados de seus familiares e amigos. (...) Nenhum exame está indicado para alta do isolamento ou volta ao trabalho, nem RT-PCR de nasofaringe e nem sorologia. Deve-se contar 10 dias de isolamento respiratório, desde que sem febre nas últimas 24 horas, a partir do primeiro dia de sintomas”.
E, num reconhecimento de fatos bem estabelecidos que não deveriam surpreender ninguém que não se sinta tentado a sair por aí com papel alumínio na cabeça para se proteger da radiação 5G do planeta Nibiru, o guia afirma que não existe remédio ou tratamento precoce eficaz para a doença:
“A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento farmacológico precoce para COVID-19 com qualquer medicamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal, dióxido de cloro), porque os estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais. Ou seja, não existe comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes contra a COVID-19.”
Essa constatação inocente, no entanto, parece ter causado espécie em setores do Ministério Público Federal, que decidiu cobrar explicações da SBI, para “conhecer os estudos clínicos que embasaram as ‘recomendações’ divulgadas pela entidade”.
Haveria muito a dizer a respeito do tom da nota publicada no site oficial do MPF sobre a solicitação, a começar pelas aspas (irônicas?) em torno da palavra “recomendações”, mas me debruço sobre um par de itens apenas, a título de exemplo: a requisição de cópias “dos estudos clínicos randomizados que amparam o uso de analgésicos e antitérmicos em pacientes infectados pela COVID-19” e dos “estudos clínicos randomizados que ‘recomendam’ nenhum tratamento farmacológico para COVID-19, especialmente com os medicamentos indicados na publicação”.
Esse par pressupõe que o nível de evidência requerido para justificar o uso ordinário de certos medicamentos – antitérmicos para reduzir febre – seja equivalente ao necessário para justificar o uso extraordinário de outros – antimaláricos e antibióticos contra uma doença viral. O aparente desprezo pelo princípio básico de proporcionar a força da evidência à excepcionalidade da alegação, vindo de um órgão público incumbido exatamente de conduzir investigações e produzir provas, é um tanto quanto perturbador.
Politização
Mas a questão talvez tenha menos a ver com a filosofia da evidência e da persuasão racional e mais com persuasão política: não é segredo que a defesa do “tratamento precoce” baseado em cloroquina, antibióticos, vermífugos e vitaminas tornou-se uma bandeira do bolsonarismo. Isto pode explicar a curiosa implicância de certas autoridades para com uma lista de recomendações médicas que não contempla esses medicamentos.
Há precedentes históricos e internacionais, datando pelo menos desde que a Igreja Católica decidiu cobrar explicações de Galileu. Mas nem é preciso ir tão longe. O estado de São Paulo, por exemplo, foi palco de uma tragicômica CPI da Fosfoetanolamina, cujo relatório final – que considerou ineptos os testes que comprovaram a ineficácia do produto contra o câncer – foi alvo de condenação pela comunidade científica. Ainda mais recentemente, o pesquisador Marcus Lacerda, da Fiocruz-Amazônia, foi alvo de ação do MPF por ter conduzido um estudo sobre cloroquina que gerou resultados negativos.
Na década passada, nos Estados Unidos, era relativamente comum que congressistas ou representantes do equivalente americano do Ministério Público (procuradores-gerais, procuradores distritais) tentassem intimidar cientistas que faziam descobertas politicamente inconvenientes, por meio de exigências burocráticas excessivas e descabidas.
“Parece estar ocorrendo um sério abuso do poder do procurador-geral (...) desde quando investigamos professores por discordarmos deles?” As palavras indignadas foram proferidas, em 2010, pelo deputado estadual da Virgínia (EUA) Mark Herring, depois que o então procurador-geral do estado, Ken Cuccinelli, usou sua autoridade para exigir que a Universidade de Virgínia lhe entregasse todos os documentos pertinentes ao período em que o climatologista Michael Mann atuara na instituição, entre 1999 e 2005.
Mann havia sido o principal autor das primeiras reconstituições da história do clima terrestre que resultaram no famoso gráfico do “taco de hóquei”, mostrando uma disparada da temperatura média global no século 20, na comparação com o milênio anterior. Cuccinelli, em si quase uma caricatura ambulante do conservadorismo mais empedernido – a ponto de apoiar leis criminalizando a “sodomia” –, era, também, um negacionista do aquecimento global. Estava convencido, a priori, de que o trabalho de Mann era fraudulento e buscava evidências disso na papelada da universidade.
E essa nem foi a primeira dança de Michael Mann com o assédio legal. Em 2005, o deputado federal do partido republicano Joe Barton enviara-lhe uma carta exigindo que o cientista lhe entregasse uma lista extensa de documentos, incluindo “a localização de todos os arquivos de dados relacionados a cada um dos artigos científicos publicados dos quais o senhor é autor ou coautor” e “documentação de apoio, tais como código-fonte de computador, informação de validação e outras informações auxiliares”.
As exigências de Barton foram, também, duramente criticadas por outras lideranças políticas e condenadas em editoriais de veículos como “Nature”, “Science”, “Washington Post” e “New York Times”.
O Brasil vem adquirindo o cacoete de imitar certas peculiaridades dos Estados Unidos, principalmente no que diz respeito ao extremo mais conservador do espectro político. Talvez fosse apenas uma questão de tempo para que, após o “Trump Tropical”, desenvolvêssemos Bartons e Cuccinellis dos trópicos.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)