É inegável que vivemos em uma sociedade (hiper)medicalizada. Em nossa cultura, o medicamento ocupa papel central no âmbito dos tratamentos, e não é à toa que os profissionais que os prescrevem ocupam as posições de maior prestígio na hierarquia da saúde. Em grande parte dos casos, pressupõe-se que a interação entre médico e paciente deve, necessariamente, gerar a prescrição de um medicamento, mesmo quando não há uma hipótese clínica plausível, uma condição de saúde condizente ou um tratamento comprovadamente benéfico disponível.
A confiança exacerbada em medicamentos e a busca incessante por pílulas que aliviem qualquer tipo de sofrimento caminham com a falta de compreensão das probabilidades envolvidas na avaliação dos riscos e benefícios de tratamentos, o que provoca uma tendência de superestimarmos os benefícios e subestimarmos os perigos, tanto pelos pacientes quanto pelos profissionais de saúde.
Tal qual Brás Cubas e seu emplastro anti-hipocondríaco, o anseio aqui é tornar mais fácil a vida e a experiência humana por meio de algo que se pode comprar na farmácia. Isso se reflete em números: mais de 50% de todos os medicamentos são incorretamente prescritos, dispensados e vendidos; e mais de 50% dos pacientes não os utilizam corretamente. Esses números tendem a ser ainda piores nos países em desenvolvimento. Essa banalização participou, inclusive, da criação de panaceias pseudomilagrosas como a fosfoetanolamina e a cloroquina.
Contudo, é interessante notar que existe um movimento oposto, porém igualmente irracional, a aversão pura e simples ao uso de medicamentos. O receio exacerbado dos "riscos" da medicina convencional é estimulado por mensagens publicitárias e midiáticas, muitas vezes impulsionadas de modo irresponsável por celebridades, que exaltam a positividade e "ausência de riscos" de terapias “integrativas” e de um estilo de vida mais “natural”. Isso tem levado muitos pacientes a abandonar ou nem sequer iniciar tratamentos medicamentosos necessários.
É este o fenômeno que chamamos de “farmacofobia” neste texto: a aversão irracional ao uso de medicamentos. Um fenômeno que ignora que medicamentos utilizados racionalmente propiciam benefícios tanto aos pacientes quanto ao sistema de saúde. Por que isso acontece, e quais as consequências?
“A indústria farmacêutica faz lobby”
É certo que a indústria farmacêutica fez por merecer essa má fama. Ela de fato é extremamente articulada e faz um forte lobby, contribuindo para a medicalização excessiva. Mas também é verdade que praticamente todo tratamento, desde um simples alívio de dor e febre, até a eliminação de uma infecção bacteriana grave, pode se beneficiar de uma importante ferramenta: o medicamento. E mais importante que isso: o processo pelo qual os medicamentos são descobertos, desenvolvidos e testados está em consonância com o método científico.
Ao imaginar a indústria farmacêutica uma entidade uniformemente maligna, abandonamos a racionalidade e o senso crítico necessários para selecionar os tratamentos que trarão benefícios importantes e diferenciá-los daqueles que são excessivos ou desnecessários. E, de quebra, deixamos de perceber que existe também um grande marketing “holístico” e “good vibes” que faz parte do lobby de outra indústria, tão focada em lucro quanto a farmacêutica, mas que veste um disfarce mais bonito: a dos tratamentos e intervenções “naturais”.
“O que é natural não faz mal”
“Não vou tomar esse remédio que o médico passou, é muito forte. Prefiro tomar esse chá aqui”. Quantas vezes você ouviu algo desse tipo?
Há, entre as pessoas, a ideia de que tratamentos de origem artesanal sejam mais seguros do que tratamentos industrializados. No próprio exemplo do “chá”, podemos perceber que esse conceito é falacioso. Uma planta é um conjunto de substâncias químicas, muitas das quais capazes de interagir com nosso organismo e promover alterações fisiológicas, incluindo alterações deletérias e interações com medicamentos.
Porém, o “apelo natural” acaba tornando esse tipo de tratamento mais atraente para a população, incluindo para populações mais vulneráveis (como gestantes, crianças e idosos), expondo-os ao risco de uso indiscriminado. Se o que é “natural” não faz mal, não haveria problema algum em se consumir tabaco, ópio ou haxixe, não é mesmo?
O mesmo vale para dietas milagrosas, vitaminas, exercícios duvidosos etc.
Qualquer intervenção gera custos ao paciente ou ao sistema de saúde. Um custo não apenas financeiro, mas também clínico (possíveis efeitos adversos ou consequências não intencionais) e comportamental (por exemplo, achar que está protegido contra COVID-19 porque tomou um medicamento e se expor mais ao vírus). Estes custos precisam ser superados pelo benefício (comprovado) da intervenção. Caso contrário, estamos, do ponto de vista de economia clínica, fazendo um mau negócio.
Novos “remédios”
O discurso de quem é avesso aos tratamentos medicamentosos por princípio é o de que há uma banalização no seu uso. Que a sociedade está medicalizada demais. Contudo, ao remover o medicamento da equação, essas mesmas pessoas elevam outras intervenções ao status de medicamento.
“A dieta X é capaz de tratar o câncer”
“O alimento Y cura a depressão”
“A vitamina Z aumenta a imunidade”
Note que não está sendo proposta uma mudança saudável no estilo de vida. Não está sendo feita a chamada promoção de saúde, que de fato poderia reduzir diversos fatores de risco para inúmeras doenças. Não estamos, portanto, reduzindo a medicalização. Estamos apenas substituindo medicamentos científicos por remédios não científicos e seguindo (hiper)medicalizados da mesma forma. Só que com um pouco menos de racionalidade, já que a maioria dessas “novas” condutas não tem embasamento na ciência.
Psicofobia
Esse cenário fica ainda mais obscuro no âmbito da saúde mental.
“Essa pessoa aí precisa de um gardenal”. Já ouviu essa expressão? É uma frase usada em um contexto ofensivo, e que deixa implícita a ideia de que o uso de um medicamento está atrelado a um transtorno ou doença.
Essa frase, geralmente empregada no sentido de afirmar que a pessoa é “louca”, mostra mais de um tipo de ignorância. A ignorância sobre transtornos mentais (e a psicofobia para com as pessoas que sofrem desses transtornos) e a ignorância farmacológica sobre os efeitos do gardenal.
Explico: gardenal é o nome comercial do fenobarbital, que pertence à classe dos barbitúricos. No passado, tinham ampla gama de aplicações clínicas, sendo utilizados para insônia, ansiedade, epilepsia etc. Com o advento dos benzodiazepínicos (fármacos mais seguros), seu uso diminuiu drasticamente, ficando hoje limitado principalmente para o controle de convulsões/epilepsia.
Sabemos que, na Idade Média, as convulsões eram atribuídas à possessão demoníaca ou ação de espíritos malignos. Se existisse gardenal na Idade Média e você quisesse ofender alguém por conta da sua psicofobia, talvez você pudesse dizer: você está possuído, já tomou seu gardenal hoje? Mas como não estamos na Idade Média (embora tenha dias que eu questione isso), a expressão, além de preconceituosa, não faz sentido algum.
Exemplos como este são comuns no âmbito da saúde mental e são reforçados por profissionais que demonizam os psicofármacos. Há o entendimento, pela sociedade, de que muitos transtornos mentais não passam de “frescura”, falta de “força de vontade”, ou “ausência de deus no coração”. Em um contexto como esse, usar um medicamento passa a ser entendido como sinal de fraqueza. Além disso, alguns profissionais e terapeutas duvidosos afirmam, de maneira falaciosa, que tais medicamentos são apenas paliativos e que não ajudam a tratar, de fato, o problema.
Sobra então para o paciente, que já está em sofrimento psíquico, ter que lidar com o preconceito e com a sensação de “fracasso” associada a tudo isso.
Muito ou pouco? Proporcional!
Medicamentos são ferramentas imprescindíveis. Uma das tecnologias mais incríveis e fascinantes desenvolvidas pela Humanidade. Abrir mão desse valioso recurso é retroceder séculos (acredite, você não gostaria de viver no mundo como era antes dos antibióticos). “Muita medicalização” ou “pouca medicalização” não são formas adequadas de tratar do assunto. O segredo está na proporção. Os tratamentos devem ser racionalmente proporcionais às condições que estão sendo tratadas. Qualquer desbalanço nessa razão, para mais ou para menos, trará algum grau de prejuízo.
Iniciativas para reduzir o chamado overtreatment (“sobretratamento”) são extremamente bem-vindas, desejadas e até mesmo necessárias, desde que pautadas pela racionalidade e por evidências científicas (como a iniciativa Choosing Wisely). Mas é preciso ter em mente que, se hoje estamos aptos a fazer esse tipo de reflexão, é porque a medicina científica fez nossas vidas mais longas e saudáveis, por meio de ferramentas importantes como vacinas e medicamentos eficazes.
André Bacchi é professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico por meio dos podcasts Synapsando, Scicast, Spin de Notícias e Scikids