A pandemia de COVID-19 deflagrou uma corrida global da comunidade científica e da indústria farmacêutica na busca de uma vacina contra a doença. Num feito inédito na história do desenvolvimento de imunizantes, apenas oito meses depois da identificação do novo coronavírus SARS-CoV-2, nove deles, utilizando as mais diversas técnicas e plataformas, já chegaram à fase 3 dos ensaios clínicos.
Normalmente a última antes da aprovação de uma vacina para uso geral, esta etapa da investigação - em que milhares de pessoas recebem o produto para avaliar sua eficácia, bem como revelar efeitos adversos raros, não detectados nas fases anteriores - também está sendo conduzida de forma acelerada e, em alguns casos, tem sido perigosamente atropelada por decisões regulatórias, com registros e autorizações emergenciais para utilização, como a russa Sputnik V e as chinesas das empresas CanSino Biologics e Sinovac Biotech.
Com isso, também cresce a urgência do debate do que fazer quando a(s) vacina(s) da COVID-19 chegar(em), para garantir sua melhor, mais justa e eficaz alocação e distribuição. Isto porque, por mais que indústria e cientistas se esforcem, durante um bom tempo elas devem permanecer produtos escassos. Definir quem será imunizado primeiro, quando e onde, e a ordem destas prioridades, terá que responder a questões científicas, éticas, políticas, econômicas e pessoais tanto no âmbito internacional quanto dentro de cada país.
De olho nestes temas, um grupo de especialistas encabeçado por Ezekiel J. Emanuel, do Departamento de Ética Médica e Políticas de Saúde da Escola Perelman de Medicina da Universidade da Pensilvânia, EUA, apresentou em recente artigo na revista Science uma proposta para estruturação do que chamaram de um Modelo Justo de Prioridade para a vacina da COVID-19. Voltada para iniciativas globais de disponibilização da vacina, como a COVAX – liderada pela Aliança Global para Vacinas e Imunização (Gavi), Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Coalizão para Preparação e Inovações para Pandemias (Cepi) -, fabricantes e governos nacionais, o modelo pretende ser uma alternativa mais ponderada e igualitária às estratégias em discussão na própria OMS e uma via para que indústria farmacêutica e países cumpram suas promessas de justiça e equanimidade na alocação dos imunizantes.
“Nacionalismo vacinal”
O primeiro grande obstáculo ético e político a ser superado, no acesso às eventuais vacinas contra a COVID-19, é sua distribuição internacional. Poucas instituições, em poucos países, têm capacidade técnica e industrial para a produção dos imunizantes em larga escala, o que significa que para a grande maioria das nações a única opção será a importação. E mesmo alguns países que estão se preparando para fabricar internamente as vacinas – como o caso do Brasil, onde, por exemplo, a Fiocruz assinou acordo com a dupla Universidade de Oxford/AstraZeneca para produzir sua ChAdOx-1, e o Instituto Butantan, com a chinesa Sinovac, para fabricar sua CoronaVac – ainda vão depender um bom tempo de insumos importados para tanto, ao menos até completarem os complexos processos de transferência de tecnologia de produção.
A tendência de os países que estão investindo alto no desenvolvimento das vacinas contra a COVID-19 exigirem prioridade para aplicação nas suas populações, como EUA e Reino Unido, apelidada “nacionalismo vacinal”, deve ter limites, dizem os especialistas. Assim, embora admitam que tal discussão possa ser vista como “irrelevante” por quem ache esta atitude inevitável – e como de certa forma já foi observado nesta pandemia, com a disputa por respiradores e, posteriormente, por medicamentos inicialmente apontados como promissores no combate à doença, como o remdesivir -, eles defendem que este tipo de parcialidade deve respeitar, se não padrões éticos e morais, ou mesmo interesses geopolíticos, ao menos critérios minimamente científicos.
“Para estabelecer a necessidade de uma distribuição internacional equânime (da vacina contra a COVID-19) não é preciso determinar um nível ótimo de prioridade. É suficiente identificar um limite máximo claro: uma parcialidade nacional que seja razoável não permite reter mais vacinas do que a quantidade necessária para manter a taxa de transmissão (Rt) abaixo de 1, quando a mesma vacina poderia mitigar danos substanciais relacionados à COVID-19 em outros países que não conseguiram manter a Rt abaixo de 1 por meio de esforços de saúde pública correntes”, escrevem na Science. “Os benefícios marginais das doses adicionais em um país capaz de manter a Rt abaixo de 1 são ínfimos, se comparados aos benefícios potenciais para os países onde a Rt permanece acima de 1 - pelo menos, até que uma vacinação de reforço seja necessária para manter a imunidade. Desta forma, com a Rt abaixo de 1, não há prejuízos evitáveis o suficiente para justificar a retenção da vacina. Quando um governo atingir este limite de parcialidade nacional, ele deve então liberar a vacina para outros países”.
Populações prioritárias
Cumprida esta condição de contenção da disseminação da COVID-19 em níveis não-epidêmicos, traduzidos em uma taxa de transmissão abaixo de 1, a questão de uma distribuição internacional justa da vacina contra a doença converge com a da sua alocação intranacional. Novamente, a decisão de que setores da população devem ser atendidos primeiro, e por que, deve ser baseada em critérios bem definidos que levem em conta aspectos científicos, éticos e econômicos, para além de simplesmente “quem pode pagar”.
Neste ponto, a proposta apresentada pelo grupo de especialistas em seu artigo na Science busca introduzir algumas variáveis de forma a tornar mais justos e igualitários os dois principais esquemas atualmente em debate no âmbito da COVAX na OMS, que têm como ponto de partida a população total de cada país.
No primeiro destes esquemas, já aceito mas em revisão pela iniciativa, inicialmente seriam disponibilizadas vacinas suficientes para imunizar 3% das pessoas, com alocações proporcionais subsequentes até que cada país tenha vacinado 20% de sua população. O segundo esquema, por sua vez, prevê a distribuição de vacinas segundo, prioritariamente, a quantidade de profissionais de saúde na linha de frente do combate à pandemia, seguida da proporção de sua população acima dos 65 anos e, por fim, do número de pessoas com comorbidades que aumentam o risco de severidade da COVID-19.
De acordo com os especialistas, mais do que isso, esta distribuição deve ter como objetivo geral primário evitar mortes prematuras e incapacitação, seja diretamente por COVID-19 ou indiretamente por outras doenças, devido ao estresse ou colapso dos sistemas de saúde. Já uma segunda fase deverá reforçar a primeira meta, ao mesmo tempo em que busca reduzir o fardo social e econômico da pandemia, como o fechamento de escolas e de atividades não essenciais. Pelo modelo, só numa terceira e última etapa a vacinação deve ter como objetivo cortar a transmissão comunitária da doença, permitindo então, finalmente, a renormalização das relações sociais e econômicas.
Para tanto, os especialistas sugerem a configuração de uma métrica básica que intitularam “perda de anos de expectativa de vida padrão (SEYLL, na sigla em inglês) evitada por dose de vacina”. Segundo eles, a introdução da SEYLL como mais um parâmetro para o cálculo de alocação dos imunizantes traz três grandes vantagens. A primeira é que, para além de considerar que todas as mortes importam, a métrica ressalta o impacto das mortes prematuras. A segunda é que a SEYLL incorpora ao cálculo a preocupação moral de valorizar todas as vidas igualmente entre os diversos países, independentemente de condições preexistentes ou diferenças na expectativa de vida entre os vários países. Por fim, este parâmetro já é normalmente usado em estudos que avaliam o impacto global de outras doenças, podendo ser facilmente transposto para o caso da COVID-19.
A adoção do SEYLL como guia para disponibilização internacional das vacinas também traz mais flexibilidade à distribuição intranacional dos imunizantes, de acordo com as características particulares de cada país, como seu perfil demográfico, estágio na pandemia, prevalência de comorbidades e capacidade do sistema de saúde, entre outras. Desta forma, embora algumas nações possam reduzir mais as mortes prematuras vacinando os estratos mais idosos de sua população, outras podem mirar em reduzir a transmissão imunizando potenciais super-disseminadores, ou proteger aqueles com maior risco de infecção e trabalhadores de grande importância social fortemente afetados pela pandemia, para além dos profissionais de saúde, como os professores e outros funcionários do setor de educação, em especial do ensino infantil (pré-escola) e básico.
Oportunidade
Outro motivo para debater desde já como será a distribuição e alocação das vacinas contra a COVID-19 é a oportunidade que este processo abre para investigar, na prática, a eficácia e real impacto das diferentes estratégias que venham a ser adotadas, nos moldes do que poderia ter sido feito, mas não foi, com as intervenções não-farmacológicas, como as variadas medidas de distanciamento social, quarentenas obrigatórias de indivíduos, contact tracing e lockdowns.
Desta forma, estudos comparativos envolvendo diferentes cidades, regiões ou mesmo países inteiros poderiam indicar, por exemplo, se o foco na vacinação de potenciais super-disseminadores de fato pode ajudar a conter a propagação de um vírus, se a imunização prioritária de populações de mais alto risco de complicações pela doença realmente reduziu a mortalidade precoce, se proteger os professores permitiu manter as escolas abertas e o consequente alívio das pressões sociais e psicológicas sobre pais e crianças, entre muitas outras perguntas.
Além disso, dada a urgência para a aprovação e uso das vacinas, muitas questões básicas sobre seu funcionamento, também fundamentais para determinar as melhores estratégias para sua aplicação, só deverão ser respondidas numa quarta fase de investigação, por meio da farmacovigilância. Um produto que previna o desenvolvimento de complicações da COVID-19, mas não evite a infecção ou transmissão do coronavírus, por exemplo, pode ser muito útil para as populações de maior risco, mas terá pouca ou nenhuma serventia na contenção dos eventuais super-disseminadores. Em um campo com – idealmente – várias vacinas disponíveis, cada uma com suas qualidades e defeitos, o exercício científico e esforço político para obter a melhor, mais eficaz e equânime alocação de cada imunizante ficam mais complexos e difíceis.
Por fim, a chegada das vacinas contra a COVID-19 também será um teste da Humanidade, pessoal e coletiva. Países, instituições e empresas cumprirão suas promessas de acesso “justo e igualitário” aos imunizantes, ou cederão ao “nacionalismo vacinal” ou à “força do mercado”? Governos nacionais e locais assegurarão uma distribuição e alocação racional e eficaz das doses que obtiverem, ou as usarão como instrumentos políticos, inclusive endossando discursos obscurantistas e irresponsáveis, como dos movimentos antivacina?
Responsabilidade
Aqui, todo este debate sobre acesso e justiça na distribuição da vacina contra a COVID-19 nas esferas nacional e internacional acaba por cruzar com a moral, ética e responsabilidade social e pessoal de cada um de nós. Para trazer um efetivo fim da pandemia, é preciso que um grande número de pessoas seja vacinado. A proporção da população necessária para que se atinja esta tão falada “imunidade de rebanho” vacinal, ou nível crítico de vacinação (Vc), depende de diversos fatores, dos quais os principais são a taxa básica de transmissão do vírus (R0) – que difere da Rt por não levar em conta a diminuição da transmissão por medidas preventivas como o distanciamento social -, e a eficácia do imunizante (E), isto é, o percentual das pessoas que ficam efetivamente protegidas da doença.
Admitindo o melhor e mais otimista dos cenários, em que a vacina também impede que o indivíduo vacinado de transmitir o vírus, que o SARS-CoV-2 tenha um R0 = 2,5 e tenhamos uma vacina que atinja 97% de eficácia (equivalente ao regime de duas doses da vacina contra o sarampo, um dos mais altos índices de proteção vacinal entre as disponíveis atualmente), ao menos cerca de 62% da população deve ser vacinada para que a incidência da doença tenda a zero.
É pouco provável, porém, que as primeiras vacinas da COVID-19 cheguem a uma eficiência tão alta. Tanto a Agência para Drogas e Alimentos dos EUA (FDA) quanto a OMS admitem que um nível de eficácia de pelo menos 50% para o registro de uma vacina. Assim, presumindo um R0 numa faixa mais alta das estimativas iniciais da pandemia na China, de cerca de 4, e uma vacina com índice de proteção de 75%, a cobertura necessária para controle da COVID-19 abrangeria toda a população.
Pode-se argumentar que este modelo simples não leva em conta que a pandemia está em curso, e uma proporção significativa da população já foi infectada pelo vírus, tornando-se supostamente imune a ele. Mas, mesmo desconsiderando que a força e duração desta “imunidade natural” sejam menores que a vacinal na COVID-19, como acontece com outras doenças, ainda assim uma proporção muito grande da população precisaria ser vacinada, aponta estudo publicado no American Journal of Preventive Medicine (AJPM) que realizou simulações com diversos cenários e refinamentos do modelo básico de vacinação crítica. Em uma destas simulações, dado um R0 de 3,5 para o SARS-CoV-2, mesmo que 15% das pessoas já tiverem sido infectadas – algo em linha com as estimativas atuais - seria necessário vacinar 75% das pessoas com um imunizante com 80% de eficácia para reduzir em cerca de 62% o número total de casos e em 60% o de mortes esperadas para a pandemia, caso não houvesse vacinação.
Visto que pesquisa recente indicou, por exemplo, que cerca de 60% dos americanos não tomaria de imediato uma vacina contra a COVID-19 mesmo que ela esteja disponível e gratuita antes da eleição presidencial de novembro, por temerem a pressa na sua aprovação, os EUA dificilmente vão conseguir controlar a pandemia só com esta estratégia, ainda que o presidente Donald Trump faça como fez no caso dos ventiladores e de remdesivir: radicalize no nacionalismo vacinal e retenha doses para atender toda sua população, privando o resto do mundo de um produto que não vai usar.
Cenário que ainda é alentador no Brasil, mas pode desandar. Numa das poucas pesquisas sobre o tema no país, feita pelo Datafolha na primeira metade de agosto, cerca de 9 em cada 10 brasileiros se disseram dispostos a tomar a vacina contra a COVID-19 assim que ela estiver disponível. Mas no ano passado, pela primeira vez no século, o Brasil não atingiu a meta de imunização para nenhuma das vacinas indicadas para crianças com menos de 1 ano de idade.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência