Não bastassem as falsas promessas de cura ou prevenção da COVID-19 com remédios como cloroquina e ivermectina e tratamentos pseudocientíficos como homeopatia, ozonioterapia ou Florais de Bach, a comunidade científica enfrenta agora uma preocupação gestada em suas próprias fileiras, e em algumas de suas mais respeitáveis instituições. A iniciativa, intitulada RaDVaC (sigla em inglês para “colaboração para o rápido desenvolvimento de vacina”), promove a elaboração e autoadministração de um imunizante “caseiro” contra a doença, e é alvo de críticas de especialistas, que alertam para os riscos que representa para os indivíduos e à saúde pública, e destacam as questões éticas nebulosas em torno do projeto.
Revelada ao mundo em recente artigo da revista MIT Technology Review, editada pelo prestigiado Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, a RaDVaC foi lançada ainda no início da pandemia, em março, por Preston Estep, com a missão declarada de rapidamente desenvolver, testar e compartilhar com o público vacina e protocolos “simples o suficiente para serem produzidos e administrados por cientistas individuais ou profissionais de saúde qualificados, em qualquer lugar do mundo”.
Biólogo e doutor em genética pela Universidade Harvard, Estep amealhou o apoio e colaboração de diversos colegas e ativistas para o projeto, mais de 20 dos quais já tomaram a vacina que eles mesmos fizeram com base nas informações compiladas pela iniciativa, entre eles seu ex-orientador na Escola de Medicina de Harvard e também geneticista George Church, um dos mais respeitados cientistas do planeta neste campo.
Produzida a partir de peptídeos (sequências relativamente curtas de aminoácidos, os tijolos que formam as proteínas) sintéticos que refletem estruturas encontradas no SARS-CoV-2, o coronavírus causador da COVID-19, a vacina da RaDVaC é administrada por spray nasal. Mais do que uma resposta imune sistêmica, como acontece com as usuais vacinas por injeção, com a produção de anticorpos neutralizantes e o reconhecimento do vírus pelas células de defesa em todo o organismo, a ideia do spray nasal é despertar uma forte reação imune localizada nas mucosas, em especial dos tecidos do trato respiratório superior, e barrar a infecção pelo vírus em suas principais vias de entrada no corpo, estratégia que os integrantes da iniciativa dizem estar sendo negligenciada nas cerca de 200 vacinas para a COVID-19 atualmente em pesquisa e desenvolvimento formais no mundo.
“Acredito que estamos sob muito maior risco da COVID-19, levando em consideração as muitas maneiras como podemos ser infectados e como são altamente variáveis suas consequências”, justificou Church à MIT Technology Review. “Acho que as pessoas estão subestimando em muito esta doença”.
Mas o que parece muito simples e louvável também pode ser muito perigoso e prejudicial do ponto de vista da saúde pública, alertam Arthur Caplan e Alison Bateman-House, da Escola de Medicina Grossman da Universidade de Nova York, em editorial publicado nesta quinta-feira pela prestigiada revista Science.
“A inciativa ‘faça você mesmo’ da RaDVaC tem muito mais chances de contribuir com a crescente desconfiança do público com relação a todas as vacinas do que oferecer uma caminho para o avanço no combate à pandemia”, argumenta a dupla. “Aqueles que estão cada vez mais desconfiados de todo papo em torno da ‘velocidade de dobra’ das promissoras vacinas para a COVID-19 dificilmente se sentirão encorajados a mudar de opinião por cientistas rebeldes fazendo experiências sem supervisão, no limite do que é eticamente aceitável”.
De fato, a iniciativa da RaDVaC sofre de muitos dos defeitos que a comunidade científica defensora da medicina baseada em evidências aponta nos muitos anúncios de remédios “milagrosos” para tratamento e prevenção da COVID-19 já feitos e, mais recentemente, na decisão do governo russo de conceder registro para uma vacina sem a divulgação formal de quaisquer dados experimentais ou revisão por pares. Não há registros de testes em animais ou de segurança, grupo de controle formado por indivíduos saudáveis ou estudos de dosagem, e os únicos detalhes textuais sobre o produto da RaDVaC provêm justamente do relatório (white paper) publicado pela iniciativa para apresentar o racional em torno da vacina e instruir os interessados na sua fabricação "doméstica" e autoadministração.
Assim, a primeira preocupação dos especialistas é justamente com a segurança dos próprios integrantes da iniciativa e de outras pessoas que, convencidas por seus argumentos, decidam colocar suas instruções na prática. À MIT Technology Review, Caplan classificou o white paper e a RaDVaC como “loucura no mais alto grau”, afirmando não haver muita margem de manobra para a autoexperimentação, dada a importância do controle de qualidade na fabricação de vacinas, o que abre caminho para “potenciais danos” em meio a um “entusiasmo infundado”.
Entre estes danos potenciais mais temidos pelos especialistas, e reconhecidos pela própria iniciativa no termo de consentimento para download do documento e no texto, estão a chamada potencialização dependente de anticorpos (ADE), que pode fazer com que a doença se manifeste de forma mais severa em quem tenha usado a vacina, ou seu “oposto”, a tolerância imunológica, em que o organismo apresenta uma resposta atenuada a um antígeno “já conhecido”.
Church, por seu lado, respondeu que diante da simplicidade da formulação e do método de aplicação, a vacina provavelmente é segura. “Acho que o maior risco é ela ser ineficaz”, disse à revista.
Eficácia ou ineficácia, no entanto, que também serão difíceis de avaliar ou provar dada a forma como a iniciativa é tocada. Não há previsão de registro ou acompanhamento das “cobaias”, nem do que fazer caso alguma delas sofra algum agravo. Church contou estar realizando estudos sobre produção de anticorpos ao coronavírus, indicação básica da provável eficácia de uma vacina, em seu laboratório de Harvard, mas não apresentou nenhum resultado ainda. Já Estep disse à MIT Technology Review que busca atrair imunologistas para o grupo para fazer esta avaliação, mas que no momento “não está pronto para relatar” as respostas imunes observadas.
Outro problema levantado pelos críticos da iniciativa é a opção pela autoexperimentação e as implicações éticas desta escolha. Apesar de contar com um longo histórico de utilização na ciência para acelerar pesquisas, com casos emblemáticos de sucesso como o de Jonas Salk, virologista da Universidade de Pittsburgh que primeiro testou sua pioneira vacina contra pólio em si mesmo e nos próprios filhos, em 1952, ou do australiano Barry Marshall, que descobriu a ligação entre a bactéria Helicobacter pylori e a gastrite numa pesquisa nos anos 1980 que lhe rendeu o Prêmio Nobel de 2005, a autoexperimentação, em um momento de pânico global como desta pandemia, pode ser vista como uma maneira de fugir da regulamentação das pesquisas em seres humanos, com fins pouco nobres como a autopromoção.
Do individual ao coletivo, porém, o risco maior da iniciativa é dar subsídios para reforçar o discurso e o alcance dos movimentos antivacina. Isso porque, mesmo em face à pandemia e o crescente número de vítimas da COVID-19, levantamento recente do instituto de pesquisas Gallup aponta que um em cada três americanos não pretende se vacinar contra a doença. Já no Brasil, pesquisa também recente do Datafolha indica que uma em cada dez pessoas também não pretende se vacinar quando um imunizante estiver disponível.
“O ceticismo com a vacina da COVID-19 tem muitas causas, incluindo dúvidas sobre a credibilidade das alegações de segurança feitas por líderes governamentais que muitos não confiam; a percepção de incapacidade das agências reguladoras governamentais de se manterem independentes de pressões políticas para aprovar rapidamente produtos; e a impressão sobre conflitos de interesse e financeiros da parte dos que fabricam as vacinas”, escrevem Caplan e Bateman-House na Science. “A confiança é um ingrediente-chave em qualquer esforço para viabilizar uma solução vacinal para a atual pandemia. Ciência revisada por pares, avaliada de forma transparente por especialistas independentes em cuidadosos ensaios clínicos controlados, é a única maneira de cimentar esta confiança. Vacinologia do tipo ‘faça você mesmo’ é perigosa nestes tempos em que alegações de ‘cura’ da COVID-19 sem evidências não fizeram mais que semear a desconfiança na ciência e na saúde pública”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência