Termômetros infravermelhos, do tipo que se tornou popular na atual pandemia de COVID-19, não emitem energia, captam-na. São detectores, não transmissores. Eles coletam ondas de infravermelho produzidas pelo objeto para o qual estão apontados, e estimam a temperatura da superfície a partir dessa leitura.
Os termômetros usados para medir a temperatura do corpo humano, e detectar febre à distância, são equipados com algoritmos que permitem converter a temperatura estimada da superfície (na maior parte das vezes, da pele da testa) numa estimativa da temperatura interna do corpo.
Eles são, em sua maioria, calibrados para medir a temperatura da artéria temporal, que como o nome diz, passa pela têmpora, na lateral da testa: medir a temperatura em outra parte do corpo é inútil. De fato, muitas dessas medições realizadas fora do lugar geram leituras sem sentido, como temperaturas abaixo dos 36o C, o que, se interpretado ao pé da letra, significa que a pessoa está morta, é um zumbi vagando pela cidade.
Alguns desses equipamentos têm miras laser, mas elas não são parte do processo de leitura, nem o laser tem potência suficiente para penetrar a pele ou causar efeitos no cérebro ou outros órgãos. Trata-se, apenas, de uma mira, para que o operador saiba para onde o sensor do dispositivo está apontado.
Dúvidas e temores quanto à suposta “radiação” dos termômetros infravermelhos e seus “possíveis” efeitos sobre a glândula pineal (uma estrutura que fica no centro do cérebro, onde produz melatonina, o hormônio que regula o ciclo do sono) têm se multiplicado a partir de uma mensagem apócrifa — isto é, de cuja autoria real é desconhecida —, geralmente atribuída a uma “enfermeira australiana” preocupada com a saúde da glândula pineal exposta a alguma radiação do termômetro, e/ou ao laser.
Mas não há motivos para preocupação: além de não haver radiação nenhuma e de o laser ser fraco, a pineal está muito bem protegida, atrás da pele, do crânio e do próprio córtex cerebral.
Agora, por que um boato de sabor conspiratório haveria de se preocupar com essa glândula em particular? Aí temos uma boa história.
Alma cartesiana
Depois do coração, a glândula pineal talvez seja a estrutura do corpo humano que mais aparece em especulações mágicas e esotéricas. Mas, ao contrário do músculo cardíaco — cuja importância simbólica nas artes, na religião e na literatura é amplamente reconhecida —, a pineal é mais misteriosa: suas implicações simbólicas a atribuições místicas parecem mais reservadas a “iniciados”.
Por exemplo, uma postagem de Facebook, citada pela Associated Press, diz que “há séculos a glândula pineal conecta-se à espiritualidade… e acredita-se que seja o meio de comunicação com Deus”.
Essas afirmações são parcialmente corretas, mais ainda se os “séculos” em questão forem quatro: em seu último livro publicado em vida, “Paixões da Alma”, concluído em 1649, o filósofo e matemático René Descartes (1596-1650) sugere, no artigo 31, que “há uma pequena glândula no cérebro onde a alma exerce suas funções de modo mais particular do que em outras partes”.
Em 1888, a grande charlatã russa Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891), unindo Descartes à mitologia hindu (e com uma pitada de darwinismo malpassado no meio), sugeriu, em seu livro “A Doutrina Secreta”, que a pineal seria um terceiro olho atrofiado, um órgão de visão espiritual, perdido ao longo da evolução.
“O terceiro olho está morto, e não atua mais”, escreveu Blavatsky. “Mas deixou para trás uma testemunha de sua existência. Essa testemunha é, hoje, a glândula pineal”.
Essa identificação da glândula com o “olho espiritual” (via Blavatsky) ou com a morada da alma (via Descartes) faz desse órgão um alvo atraente tanto para quem busca construir pontes metafóricas entre misticismo e ciência (seria a pineal a fonte do Sexto Chacra?) quanto para teorias de conspiração: o que eles podem querer, quando tentam manipular nossas glândulas pineais?
Do Além
Em seu conto Do Além, escrito há 100 anos, em 1920 (mas publicado apenas em 1934), o escritor americano HP Lovecraft (1890-1937) conta a trágica aventura de Crawford Tillinghast, um cientista que descobriu como “estimular a glândula pineal”, abrindo o terceiro olho para a visão de novas realidades e dimensões. Como é habitual na obra de Lovecraft (a imagem que ilustra este artigo é de uma estátua dele), nada de bom advém disso.
Quem, como eu, viveu a aventura de adolescer nos anos 80 talvez se lembre de ter encontrado, nas videolocadoras, a adaptação para o cinema dirigida por Stuart Gordon (1947-2020) e lançada em 1986, com Jeffrey Combs no papel de Tillinghast.
Basicamente uma tentativa barata de surfar na onda do terror explícito movido a deformidades prostéticas e bonecos de látex, lançada em 1982 com O Enigma do Outro Mundo, de John Carpenter, o filme transforma as glândulas pineais “despertas” em antenas, parecidas com vermes, que irrompem da testa das pobres cobaias dos cientistas malucos.
Caso alguém esteja se perguntando, Crawford Tillinghast não era um fabricante de termômetros.
Este artigo foi atualizado em 2/12/2020, para incluir a informação de que medições feitas no pulso ou em outras partes do corpo são inúteis.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)