Entre cloroquina e ivermectina, medicina esquece sua história

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13 jul 2020
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A passagem da civilização europeia da Idade Média, às vezes chamada de Idade das Trevas, para a Idade Moderna, nos séculos 15 e 16, é denominada de Renascimento, que entre outros avanços abriu caminho para a Revolução Científica.

O que representou uma das mais significativas conquistas da Humanidade nesta época foi o reconhecimento da racionalidade como base do conhecimento científico, que significou uma mudança de paradigma, uma evolução disruptiva de expressão muito maior do que, por exemplo, a representada na era atual pela Internet.

Durante a Renascença foi desenvolvido o conceito de medicina baseada nas ciências naturais, a medicina classificatória (classificação das doenças a partir dos sintomas) e a concepção anátomo-clínica.

A primeira aproximação científica para a escolha de um tratamento data do século 18. James Lind (1716-1794), médico escocês a bordo do navio Salisbury, da Marinha Inglesa, usou seis grupos de dois marinheiros para comparar o efeito de seis tratamentos em uso para o escorbuto, observando que foram os dois marinheiros cuja dieta incluiu laranjas e limões que apresentaram o desaparecimento dos sintomas.

A Epidemiologia, por sua vez, é uma ciência que surgiu no início do século 20, promovendo avanços significativos no campo da saúde pública, como controle de doenças infecciosas e, na segunda metade do século passado, com o descobrimento dos fatores de risco para doenças e agravos à saúde.

No entanto, ao longo das décadas permaneceu uma dicotomia entre epidemiologia e o raciocínio clínico, aplicado na prática médica. O conhecimento de metodologia científica era de domínio restrito de epidemiologistas e sanitaristas. O clínico não se preocupava com isso.

Lentamente, os clínicos começaram a perceber que a decisão individual seria melhor embasada no conhecimento obtido por estudos da coletividade, ou seja, de amostras populacionais, que permitem se chegar a uma conclusão mais confiável do que considerar apenas algumas experiências individuais.

O termo epidemiologia clínica foi utilizado pela primeira vez em 1938, por John R. Paul (1893-1971) no sentido da aplicação de métodos epidemiológicos ao exercício da medicina preventiva. A epidemiologia clínica tornou-se um ramo da medicina clínica no final da década de 60, quando o recurso excessivo a medicamentos e exames começou a gerar desconforto na comunidade médica.

Os clínicos com formação em epidemiologia sugeriram, então, que a disciplina era essencial para orientar a avaliação diagnóstica e o tratamento sobre bases científicas.

O interesse pela epidemiologia clínica ressurgiu com a crise econômica na década de 70. O aumento dos custos da saúde exigiu que a decisão médica fosse tomada sobre bases claras, e aumentou o interesse por métodos que permitissem, a partir de critérios científicos, reduzir o desperdício em exames e tratamentos inúteis e, sobretudo, prejudiciais.

Apesar da nova ênfase na epidemiologia clínica, percebeu-se que a dicotomia permanecia: os clínicos em geral ainda resistiam à mudança de paradigma, pois não tinham aprendido a medicina desta forma.

Somente na década de 80 que os estudiosos no assunto começaram a discutir um termo que tirasse o estigma da epidemiologia e aproximasse a ciência médica da prática clínica. Foi então que David Sackett e seu grupo da Universidade de McMaster no Canadá cunharam o termo Medicina Baseada em Evidências.

Ainda hoje, quem mais entende de metodologia científica são os epidemiologistas, que em sua maioria não praticam clínica. Isso gera uma lacuna entre conhecimento científico e a prática clínica. Os clínicos, em sua maioria, se posicionam distantes deste conhecimento. Esta sequela histórica é a maior barreira à prática da Medicina Baseada em Evidências.

O que se observa é que as crenças pré-Renascentistas, pré-científicas, são semelhantes, em sua essência, a algumas crenças atuais:

 

A aplicação da tecnologia, do tratamento novo, do exame novo, da vacina nova, do novo procedimento fará bem ao paciente – postura de “ativismo médico tecnológico” (termo que cunhei para descrever este tipo de crença médica).

 

A experiência clínica pessoal do médico e a opinião dos especialistas podem (ou para alguns, até devem) ser consideradas quando da prescrição de medicamentos e tratamentos para os seus pacientes, mesmo que contrariem as evidências científicas.

 

Na ausência de evidências científicas, pode-se (ou para alguns, até deve-se) usar a compreensão da fisiopatologia da doença, os achados das pesquisas clínicas da fase I ou estudos in vitro e demais fases, até os preprints, ou seja, os achados de fases anteriores à conclusão e publicação oficial da pesquisa em periódico médico reconhecido.

 

Frente a uma situação clínica grave, seja em relação a um indivíduo, ou na saúde pública (como na atual pandemia), não há tempo para se considerar a Medicina Baseada em Evidências e deve-se utilizar medicamentos e tratamentos, mesmo que não haja evidências científicas da sua efetividade e segurança, pois “é melhor se fazer alguma coisa, do que não fazer nada”.

 

Defender estas crenças não é essencialmente diferente de se defender o uso de simpatias, encantamentos, sangrias ou de qualquer outra forma de crendice da Idade das Trevas.

Vale lembrar que dos estudos in vitro com resultados positivos, somente uma fração, não maior do que 10%, se tornam medicamentos, ou seja, a grande maioria não demonstra efetividade e/ou segurança no desenvolvimento dos estudos.

Prescrever medicamentos e tratamentos com base em estudos nestas fases pré-publicação, bem como prescrever o que não tem evidências clínicas de efetividade e segurança é algo que coloca em grave risco a saúde e a vida da população. Representa um verdadeiro atentado à saúde pública!

Infelizmente assistimos, com espanto, colegas médicos defendendo estas crenças, que nos remetem a tempos pré-científicos, ignorando que o respeito da sociedade à atuação dos médicos somente se estabeleceu com as conquistas da Revolução Científica, representadas na prática clínica pela Medicina Baseada em Evidências.

O conceito da Medicina Baseada em Evidências evoluiu para o conceito de Medicina Baseada no Paciente, que é aquela no qual o médico apresenta ao paciente as alternativas de tratamento, com as evidências, nível de efetividade e riscos de cada uma, para que o paciente exerça a sua escolha livre e esclarecida.

Lembrando que o paciente atual está, em geral, “empoderado”, devida ou indevidamente, pelo “Dr Google”, ou seja, poderá estar contaminado por “fake news”, entre as quais, as crenças acima descritas.

Atualmente, a Universidade McMaster do Canadá - Evidence-Based Medicine Working Group - conceitua que “a prática Clínica e Gerencial com qualidade é mais que uma obrigação, é um dever social.”

Infelizmente, a ciência geralmente não fornece as respostas que a sociedade deseja, nem no tempo desejado, mas segundo Albert Einstein “toda a nossa ciência, comparada com a realidade, é primitiva e infantil e, no entanto, é a coisa mais preciosa que temos”.

Já para Isaac Asimov “se o conhecimento pode criar problemas, não é através da ignorância que podemos solucioná-los”.

Para Hipócrates: “há verdadeiramente duas coisas diferentes: saber e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em crer que se sabe reside a ignorância”.

Sobre o infeliz retorno à Era das Trevas, afirma citação atribuída a Goethe (1749-1832): "nada sabe de sua arte aquele que lhe desconhece a história".

 

Eduardo Blay Leiderman é médico e gestor de saúde

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